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Identidade nacional e balanço inicial Daniel – Esse é o ano que o cinema brasileiro mais ousou, é o ano de Amélia, é o ano de Estorvo... Juliano – Mas você tá falando de um ou 2 filmes... Daniel – Mas quando é que não foram um ou 2? No ano passado não foram um ou 2? Juliano – Eu não concordo não. O problema é que esse modelo de produção favorece a um tipo de produção, que não é essa. Os filmes ousados, mais inteligentes, como a gente já falou, são feitos apesar desse modelo, não seguindo a regras desse modelo. E esse negócio de diversidade estética da retomada é uma tremenda balela, os filmes são quase todos muito parecidos. Se você for pegar o cinema brasileiro de 30 anos atrás, tinha vários modelos de produção, tinha vários caminhos pra um car que quisesse fazer um filme, coisa que não existe hoje em dia – e isso acaba influenciando também a estética dos filmes. Daniel – Tem muita coisa diferente, sim... Juliano – Eu não acho não. Daniel – Você tem o filme do Coutinho, que estreou agora. Juliano – Tudo bem, mais o Coutinho a gente sabe que vai ser semprer exceção, mesmo que todo mundo adore os filmes dele. E olha que, isso é importante, ele não filmou nem o Santo Forte nem o Babilônia 2000 com dinheiro de lei, porque não conseguiu captar nada, mesmo sendo filmes ridiculamente baratos. O Coutinho é exceção: se você for pegar os 28 filmes que foram lançados no Rio de Janeiro... Daniel – Mas foi sempre assim. Juliano – Desses 28, uns 20 são praticamente iguais. Os outros 8 a gente pode discutir. Eduardo – Agora, se vocês me permitem, o que eu acho importante é exatamente isso: tudo bem, a produção leva a isso ou leva àquilo, já discutimos isso, podemos discutir mais, só que mais do que discutir ao que a produção leva – que eu acho importantíssimo, que a gente tem que falar – eu acho que a ente tem que discutir o seguinte: os filmes que a produção faz serem produzidos, seja num sistema, numa ideologia ou no que for, esses filmes aqui, do ano 2000, são bons filmes ou são maus filmes? e os filmes que nadaram contra a corrente, são são bons filmes ou são maus filmes?, e por quê? Vamos falar um pouquinho dos filmes. Daniel – O Amélia consegue seguir o caminho no meio da corrente e eu acho um filme do cacete. Pegando os mais óbvios, o Estorvo é bem contra-corrente e também é do cacete. Quer dizer, aí você já vê que não é bem assim, que tem espaço pra ter 8 exceções em 28. E tem outros que são muito bons, cara. O Rap do Pequeno Príncipe e A Terceira Morte de Joaquim Bolívar são contra-corrente. Você tem Castelo Rá-tim-bum, Xuxa, Os 3 Zuretas e Um Anjo Trapalhão, são coisas completamente diferentes. Juliano – Peraí, não, Xuxa e Um Anjo Trapalhão são diferentes? Daniel – São sim, são. Juliano – Eu acho que em outro momento havia uma diferença, hoje eu não vejo não. E, Daniel, uma grande mostra, uma coisa que ninguém falou até agora, de que só existe basicamente um tipo de cinema brasileiro é a seguinte: no ano 2000, 2 terços do público de cinema brasilerio, foram dividiso entre 2 filmes, ou 3, os 2 da Xuxa e O Auto da Compadecida. Que são filmes ideologicamente muito parecidos. O Auto pode ter um verniz intelectual, de adaptação literária, e o Xuxa pode escancarar outras coisas, mas são filmes praticamente iguais, não é à toa que são 2 filmes da Globo. Os filmes que tentam ser diferentes são obviamente exceção, até em termos de contato com o público. Daniel – Os outros 26... 26 é um bom número. Juliano – Não é bem assim. Se a gente for pegar os lançamentos... tem, por exemplo, Iremos a Beirute: regionalismo barato, filme de turismo e propaganda do Ceará, coisa que já fazem há 40 anos, uma babaquice tremenda no esquema Bella Donna. Pô, essa é a diversidade? Em vez de fazer propaganda da Xuxa o cara faz das praias do Ceará, que com certeza também tinha gente "patrocinando" o filme... Pode até ser um pouco mais simpático, mas não dá. Eduardo – Tem filmes aí que são muito mais complicados, a gente tem que falar deles... Por exemplo, O Dia da Caça. Por que ele foi lançado do jeito que foi, e só fez 30 mil espectadores? Quando os próprios produtores e lançadores do filme esperavam no mínimo 500 mil. Acho que isso é um fenômeno muito mais interessante de se discutir, e muito mais rico, e tentar pegar esse filme e pensar: porque esse filme teve o resultado que ele teve, com o lançamento que ele teve? Porque aí a gente vai tentar entender não de uma forma teórica as questões do cinema brasileiro,mas de uma forma prática. Foi um filme que teve um lançamento bastante, dentro do lançamento normal de um filme brasileiro, abrangente, que investiu numa campanha diferenciada – eu digo as pré-estréias nas universidades etc e tal –, que lançou no Brasil inteiro, tinha uma conexão com o SBT e, fora isso, foi lançado sim nas principais salas que existem hoje nos subúrbios, na Baixada, que são poucas. Agora, nas poucas que tem, ele foi lançado, e fracassou. Juliano – O Dia da Caça com certeza é um dos grandes filmes pra gente discutir o cinema brasileiro de hoje, por esses problemas todo que ele teve, mesmo com um bom lançamento. Eu acho que o que aconteceu com o filme é que ele tem tudo que as pessoas não querem ver, que associam de ruim ao cinema brasileiro: tem travesti, tem sexo, tem violência. E as pessoas que vão ao cinema hoje em dia não querem ver isso, eles já associam uma suposta ruindade ao filme com o fato de ter sexo, violência... Ruy – O problema é que o filme foi vendido como um filme de ação.. Mas, sinceramente, pro sucesso de um filme ou não, pouco importa a qualidade. Pouco importa um padrão de qualidade, e pouco importa se o filme teoricamente é bom ou não. O que eu acho é que as pessoas não estão acostumadas a exigir do cinema brasileiro o que o cinema americano dá a eles, que é uma intriga que oponha... Juliano – Será? Não é o contrário não, as pessoas esperarem algo que estão acostumadas a ver no cinema americano? Ruy – Um filme com o Humberto Martins andando de helicóptero e salvando a mocinha no Cristo Redentor não vai fazer sucesso, porque se esse filme se levasse a sério ia ser sem querer um pastiche, e a coisa que o brasileiro mais detesta é uma paródia querendo se levar a sério. Juliano – Isso é verdade. A maior crítica que se fez ao Dia da Caça foi que o filme tentava imitar um modelo do cinema americano, que era o do thriller, um modelo que não pode ser feito aqui no Brasil, que vai levar a um fracasso porque o filme nunca vai tem isso nem aquilo do cinema americano. Eduardo – Mas aí eu acho que a questão é um pouco mais complicada, aí eu contextualizo com, especificamente, O Auto da Compadecida, mas não só, com Eu Tu Eles também. São filmes que de uma forma ou de outra se inscrevem numa tradição de lidar com o que a gente pode discutir ideologica e teoricamente, com o que se refere a um modelo de Brasil, que tem sim características claras de Brasil. E esses filmes, sim, fizeram um sucesso bastante grande. O Auto da Compadecida muito maior do que se esperava, o Eu Tu Eles um pouco menos do que alguns esperavam, mas ainda assim muito grande. O que a gente tem que analisar é que hoje em dia o público exige um padrão de qualidade em algumas áreas que é moldado pelo cinema americano, mas por outro lado, aos produtores cabe entender que esse padrão de qualidade se refere a questões absolutamente técnicas. E que em termos de linguagem, eles não exigem dos filmes que copiem o modelo americano, pelo contrário, os que tentam copiar o cinema americano falham... Ruy – Quem Matou Pixote? é claro nisso... Eduardo – ... se afundam constantemente. E aqueles que se preocupam com esse padrão de qualidade, e ainda investem numa temática brasileira, são os que têm mais chance. A Xuxa, e agente pode discutir isso criticamente, ela investe diretamente em algumas coisas que são claramente o que o brasileiro gosta de ver, seja na televisão, seja no cinema. Eu acho que a gente tem que investir contra ela, mas ela é muito inteligente como produto mercadológico. Que é o quê? A cultura brasileira no que ela tem de mais popular, o seja, botar as bandas que tocam no programa da Xuxa, do Gugu, do Faustão... Juliano – Popular, supostamente... Eduardo – Sim, supostamente... Esse popular que eu tô dizendo não é como expressão do povo. Juliano – No caso, é o que é consumido por essas pessoas... então seria melhor a gente falar em cultura de massas. Eduardo – Tudo bem, o nome não me importa, o que importa é que ela lida com coisas que são tipicamente brasileiras. Você pode gostar ou não, mas elas são brasileiras. Eu não acho que nenhum dos filmes que fez sucesso foi seguindo o modelo norte-americano... Juliano – Bom, tem não muito longe O Que É Isso, Companheiro?... Eduardo – ... pelo contrário, tanto que os filmes nacionais que fazem mais sucesso são os infantis, que enfrentam uma concorrência do cinema americano, e bate ele todo ano, investindo num lado brasileiro. Se alguém disser que o filme da Xuxa e dos Trapalhões não são brasileiros... A gente pode falar de vários outros filmes, mas não desses dois. Eu acho que o Castelo Rá-tim-bum, que utiliza diversas influências de um cinema internacional de qualidade, mas na verdade se for pensar nas outras áreas da criação, principalmente na música, eu garanto que ninguém ia parar pra reclamar de alguma coisa que teria sido influenciada por algo estrangeiro. Ruy – A própria questão da identidade nacional, eu acho que ela, em todo o pensamento do cinema brasileiro, ela é problemática de tentar criar mitos de origem a partir dos quais pode nascer um povo. Eu acho que o principal problema político do século XX aconteceu nos anos 30 por conta disso, da tentativa de criação de uma identidade nacional. Eu acho que é preciso justamente dizer que povo não é uma essência, povo não é nada mais que a soma de indivíduos. O que existe é uma diversidade de indivíduos, e dizer que eles compartilham uma mesma essência, ou algo que possa brotar neles com algum filme ou temática, é uma mistificação profundamente grande, e como tal é politicamente muito problemática, porque tem tendência totalitária. Juliano –E se a gente quiser discutir, isso sim, os filmes que tentaram pensar o Brasil, pensar os rumos recentes, ou o passado, que nem foram tantos assim, qual foi o tipo de preocupação deles? Ruy – Você pode pensar nas exceções: Amélia, Cronicamente Inviável, Auto da Compadecida, Eu Tu Eles... O Rap do Pequeno Príncipe, todos filmes que tentam criar uma ontologia da existência do Brasil, O Rap é um filme que tem que ser pensado nesse ponto, porque é aí que ele cria verdadeiros problemas, quando ele coloca a figura do marginal social, do assassino social como representante recalcado de uma sociedade, e tenta igualar, através de uma montagem paralela, a vida de um músico de rap e a de um assassino, que pode ser bom ou pode não ser, querendo dizer mais ou menos que a baqueta do baterista é a arma, do mesmo jeito que o revólver do pequeno príncipe. Veladamente, o filme discute a questão nacional, mas é preciso trazer a frase do Godard que diz que uma câmera não é uma metralhadora, é muito diferente, essa metáfora não pode ser feita. Eduardo – Agora, o Quase Nada não discute o país não, Daniel... Ruy – O Quase Nada tem pressupostos sobre o país. Eduardo – Quase Nada acha que você filmar o interior do país é ser mais autêntico, então você tá discutindo o Brasil. Daniel – Mas a relação entre as pessoas, entre o patronato... Eduardo – É a relação entre as pessoas sob um olhar de cinema europeu psicologizante, onde o indivíduo podia estar ali como no Quartier Latin em Paris. A relação entre elas ia ser igual. Pô, pra quem tá vendo Candeias como a gente tá, você não pode imaginar que aquilo não representa nada. Juliano – Representa a expressão do cara de Ipanema, que é onde ele mora. Os dois planos que resumem o filme são os de abertura e de encerramento, que são dfeitos num helicóptero saindo do Leblon e indo pro interior de férias. Quer dizer, não é nem as férias do burguês, mas o burguês de férias. Cá entre nós, sou 100 vezes mais o Manelão do candeias. Daniel – Além da Terceira Morte de Joaquim Bolívar, tem o Mário também... Ruy – Eu acho A Terceira Morte de Joaquim Bolívar e Mário representam o mesmo problema, que é uma esquerda que não sabe mais colocar questões que sejam válidas hoje, e eles conseguem afundar nos mesmos problemas. São filmes teoricamente frágeis, e esteticamente frágeis. Juliano – Já que a gente tá nessa, vamos tentar separar então quais são os modelos de expressão que, direta ou indiretamente, revelam algo do país. Quais vão ser os primeiros filmes, o primeiro padrão a entrar nessa? Daniel – Diz aí. Juliano – Bom, o Xuxa Popstar é um filme absolutamente problemático e importante, mas aqui quem viu foi eu e o Eduardo. Daniel – Heróis... Juliano – Heróis mesmo... mas é o que eu falei na crítica: meu amor pelo cinema brasileiro me faz ver tudo, até os abacaxis da Xuxa. Daniel – Eu prefiro preservar meu amor pelo cinema brasileiro não indo ver Xuxa Popstar. Juliano – Mas o Ruy viu Xuxa Requebra, o que é suficiente, então eu acho que a gente pode discutir isso: qual é o olhar, qual o tipo de proposta que a Xuxa coloca? Qual o problema do Brasil segundo esses filmes? O problema do país é que, como fica dizendo a filha dela no filme, são as pessoas "bobas, feias e horrorosas" que boicotam desfile de modelo, sabotam escola de dança, isto é, que estragam e impedem as boas intenções da Xuxa. Esse é claramente o tipo de conflito que há nos filmes: os maus que sabotam um projeto de mundo supostamente alegre, livre e de oportunidades pra todos criado pela Xuxa, projeto que é o se conhece de ver na Tv. O que vocês acham disso? Ruy – Eu acho que era possível se criar um cinema popular colocando Grupo Molejo, colocando Chiclete com Banana, As Meninas, e ao mesmo tempo ter uma outra linguagem, ter uma outra moral... Juliano – O Xuxa tem um modelo narrativo, de direção, bastante parecido com o da chanchada, que é uma história vagabunda, interpolada por números musicais e às vezes cômicos. Mas o que faz o Alô Alô Carnaval, que é um pioneiro desse estilo, ser um puta filme, maravilhoso, e o Xuxa Popstar ser um filme de merda, nojento, que me fez sair deprimido do cinema? O Alô Alô Carnaval revela, entre outras coisas, uma questão local, em oposição a uma questão universal, de fora, mas não em termos meramente dualísticos. Ele coloca diversos problemas de colonialismo, de subordinação cultural, que o Xuxa não ia colocar nunca, ele ignora isso ridiculamente. Nas chanchadas existia uma margem muito grande pra uma certa malandragem carioca, um jeito de viver... Ruy – É, o Brasil já não consegue mais rir de si mesmo. Juliano – É, chanchada reconhecia esse problema, nem que fosse indiretamente, e tem aquela frase do Sganzerla que diz: "quando a gente não pode fazer anda, a gente avacalha", e que resume em grande parte, também, o tipo de resistência que havia na chanchada. E em grande parte do melhor cinema brasileiro também. Daniel – Há ainda a lógica da velha no Amélia. Ruy – É verdade, é o que tem de mais forte no filme. Juliano – Com certeza. Mas continuando o que tava falando, o Xuxa Popstar escamoteia os problemas escancaradamente, não coloca problema nenhum. O problema do Brasil é que tem umas pessoas más, horrorosas, que por serem más atrapalham tudo. Tanto o filme escamoteia tudo que não tem cenário natural nenhum, o único cenário natural é na Barra, num parque aquático e a Barra a gente sabe que é um bairro que tem seus problemas... Daniel – Mas as chanchadas eram filmadas em estúdio também... Juliano – Mas, nas chanchadas tinha filmagens na rua... Daniel – Mas quase nada gente! Eduardo – Peraí, Quase Nada é do Sérgio Rezende... Daniel – Não, peraí, as chanchadas eram quase todas passadas em estúdio. Juliano – Tudo bem, mas existia uma tentativa de você pegar o que está na rua e passar para o estúdio, o que no filme da Xuxa não existe. Tinha uma expressão da malandragem carioca... Daniel – Mas o que o pessoal do Cinema Novo mais criticava era isso, que eles ficavam lá enclausurados no estúdio, não havia contato com a vida real... Eduardo – Pô, mas se hoje em dia a gente for dizer que o que o pessoal do Cinema Novo defendia, ou melhor, atacava, no início do movimento, que eles estavam com a razão, a gente vai estar bem mais atrasado que eles... Daniel – Mas por mais que se questione a postura do Cinema Novo, foi a primeira vez desde Favela dos Meus Amores que o cinema nacional subiu o morro. Eduardo – Não, eu não tenho nenhum problema com a postura do Cinema Novo, eu só acho que o Cinema Novo mesmo problematizou os problemas que ele tinha... Daniel – Mas o que eu estou tentando dizer é que o problema do filme da Xuxa ser todo feito em estúdio não me parece ser o problema em si... Eduardo – Eu concordo porque inclusive uma das maiores críticas que eu faço ao filme anterior, o Xuxa Requebra, é justamente ela utilizar o tempo todo imagens do Rio de Janeiro como se aquilo identificasse automaticamente o filme como autenticamente brasileiro. Só que os ângulos que as câmeras do filme filmam do Rio de Janeiro é como se fosse uma filmagem feita por qualquer turista de passagem por aqui. Então, a paisagem, eu concordo com o Daniel, é uma questão menor, mas eu também estou entendendo onde o Juliano quer chegar no conjunto da argumentação. para ir para a continuação do Cinema Falado, clique aqui Voltar
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