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A querela da produção Daniel – Se vocês querem abrir um pouco a discussão, eu acho o seguinte: não tem que discutir só produção, mas o problema todo tá na produção. Juliano – Peraí, eu acho que não, o problema vai muito além da produção. Daniel – O problema todo tá na produção, por que? Porque o filme do Barreto não precisa dar lucro. Esses filmes todos eles já estréiam pagos. A gente falou que o melhor da tv é que já estréia pago, mas os filmes brasileiros hoje em dia eles estão estreando todos pagos. Estão sendo pagos pela lei do audiovisual. Tá havendo uma coisa muito complicada: a gente vive num sistema capitalista, em que as pessoas defendem que o cinema é uma produção capitalista, e no entanto precisa de um puta investimento e não tem chance de prejuízo. Quando o cara faz um filme de 600 mil, você dizer que é um produto capitalista, às vezes é, às vezes não é. Então não é justo você distinguir. Agora, quando um cara faz um filme de 5 milhões, é óbvio que ele tem que ter um risco de prejuízo. E qual o risco de prejuízo que um filme desse tipo tem? Nenhum, os filmes são pagos pela lei do audiovisual integralmente, ou então pela Rouanet. Quer dizer, não tem nenhum risco de prejuízo, daí que o cara pode fazer filme pra classe média. Então o problema tá na produção sim. O que acontece é que há uma tremenda de uma mistura nesse negócio da produção que eu acho que a gente poderia dividir os filmes em 3 tipos: os filmes baratos, os caros, e os filmes médios. E eles misturam tudo num saco só. O que acontece com isso? É que os filmes caros, os filmes de grandes nomes, são muito mais privilegiados. E eles são feitos e exibidos, todos eles, pensados, divulgados, não como filmes caros, mas como filmes protegidos pelo governo, coisa que não deve ser. Quer dizer, o cara faz um negócio que é um produto totalmente industrial, e ele quer do governo uma proteção como se fosse arte, o que ele não é. O governo tem que proteger um produto cultural que não tenha esses investimentos, que não tenha esse interesse de retorno. Daí, você pode querer argumentar: bom, então precisamos de fato que o Barreto se pagasse. Agora, qual o problema? O Barreto, o filme dele custa 5 milhões, mas você acha que ele tem como conseguir 5 milhões pra pagar o filme dele? Ele ia ter que conseguir não sei quantos milhões de público, e qual achance de conseguir? Nenhuma. Então tá se protelando o problema. Juliano – Mas o problema foge em grande parte do terreno da produção por diversos motivos. Primeiro, porque tem uma certa cultura enraizada aqui no Brasil de não querer filme brasileiro, existe esse preconceito, que limita em muito o mercado do filme brasileiro. E esse preconceito, principalmente, existe nas pessoas que cuidam, que fazem esse modelo cultural que existe, que é um modelo que exclui certo tipo de expressão brasileira, talvez ainda mais no cinema. Esse é um primeiro problema que a gente tocou aqui e que ultrapassa, e em muito, o terreno da produção. Só isso é um ponto. Daniel – Eu acho que esse ponto é também uma certa piração. Que isso existe, existe, mas é aquela história: se você acabar com o imposto geral dos brinquedos, o pessoal que vende brinquedos, eles vão vender importados, porque é mais barato. Então, quer dizer, o produto industrial é protegido. E o Barreto, se der mais dinheiro que o cara do cinema americano, eles não vão ter pudor de dizer: ah não, o cinema americano é melhor, então eu não vou passar o filme do Barreto. O problema é que o filme do Barreto não dá mais dinheiro, como a gente falou. Juliano – E finalmente também, parte dos exibidores se tocaram que é bom ter um cinema brasileiro pra fazer concorrência, pra eles poderem abaixar uma pouco a parcela da bilheteria que fica com o distribuidor-produtor americano. Como a gente viu há pouco tempo a mulher da Art Films falando que tenha filme brasileiro, porque senão o distribuidor do X-Men vai ter o mercado só pra ele e vai querer mais de 60% da bilheteria. Daniel – Que dizer, viramos massa de manobra? Juliano – Eles se tocaram que é interessante ter um concorrente nacional... mas aí é que tá: a gente vai ficar dependendo do esclarecimento dos exibidores? É só ver o que o Severiano Ribeiro já fez com a Atlântida: na primeira adversidade, o cara deu no pé. Eduardo – Não adianta você querer discutir termos culturais com exibidor e distribuidor, tem que discutir com o governo. Mas se pra eles nós só devemos existir pra nos utilizarem como massa de manobra, pra baixar o preço dos americanos, eu acho perfeito. Com os exibidores e os distribuidores eu não tenho nada contra. Daniel – O problema é que eles tão com a faca e o queijo na mão, porque o governo deixou na mão deles: não tem nenhuma lei regulamentando. Então fica muito fácil, o filme americano entra aqui mais barato. O filme americano, o filme deles impresso aqui, a lata é mais barata que a lata de filme virgem. Juliano – Você deve lembrar também daquele escândalo que rolou quando anunciaram que o Guerra nas Estrelas ia pagar mil e cem reais de imposto pra entrar no Brasil, e que era o único imposto de importação de um filme que fez milhões e milhões. Daniel – É, o Titanic paga mil e cem, e um filme iraniano também paga mil e cem. Juliano – O que é um absurdo. E quando questionaram isso com o Weffort, ele disse então que ia passar o imposto de entrada pra 10 mil por filme – e aí acabava com o cinema alternativo de vez, porque pro Titanic pagar mil ou 10 mil, tanto faz, mas o filme do Kiarostami... Daniel – É um negócio muito simples, é você fazer um imposto que vai progredindo geometricamente: uma cópia paga mil, a cada cinco cópias a mais, paga sei lá, 5, 100, 300% a mais. Juliano – Mas aí é que tá: esse é um problema fácil, fácil demais de resolver, mas que tá aí, até hoje. E não é um problema da produção, como vários outros também não são. Daniel – Mas eu acho que é só na produção que a gente vai resolver isso, porque a gente tá numa armadilha que é essa lei do audiovisual. Ela é uma armadilha, porque ela é uma maravilha se ela for bem feita, se ela for bem transada. Juliano – Claro, ela é mal feita, ela deixa grande parte das decisões sobre a produção nas mãos das pessoas erradas. Mas o problema é o seguinte: não tem mercado pro cinema brasileiro, até hoje estão tentando conseguir encontrar um espaço. Mas isso não se resolve com lei de incentivo, nem só no terreno da produção – é importante a gente pensar nisso, porque senão a gente também, indiretamente, vai cair na idéia de que o filme tem público porque é bom, e que o cinema brasileiro é ruim. E a gente precisa pensar numa coisa: sempre que esse espaço foi aberto, não foi através da produção, mas trabalhando direto na exibição, no mercado. E daí você partia pra produção. A chanchada, o cinema novo e até, em parte, marginal só existiram porque havia um espaço de exibição que tava sendo construído há muito tempo, desde o Getúlio. Daniel – O espaço tem que ser criado por lei, é simples. A Globo passa 5 programas produzidos por ela própria, mas não dá espaço pro cinema brasileiro – tem que ter lei pra impedir isso. Juliano – Mas é exatamente o que eu tô falando: esse é um problema que ultrapassa a produção. Daniel – Sim, a coisa passa muito pela produção porque resolveram o problema pela produção. A gente não pode aceitar que um filme incentivado pela lei do audiovisual custe 10 milhões: isso é muito simples, é produção. É chegar e dizer: você quer descontar do imposto de renda, pode descontar até 2 milhões. E se o cara quiser fazer um filme de 10 milhões, se der prejuízo, deu. Agora, qual o problema? Quando você fizer um filme de 10 milhões, esse filme tem que ser protegido, sim, pelo governo. Como é protegido o sapato brasileiro, como é protegido o aço, os brinquedos. É um produto industrial que tem que ser protegido. O que não dá é o filme americano chegar aqui favorecido, como chega. Não é nem condição de igualdade, e o cinema brasileiro é que tem que ser favorecido, como o aço e o sapato brasileiro são. Eduardo – A gente sabe onde essa história vai acabar, Daniel, naquela velha discussão, que, a cada vez que se tenta aumentar o valor do imposto do filme importado, os caras vão dizer: ah é?, então o suco de laranja brasileiro não entra mais nos Estados Unidos. E o pessoal amarela quando chega a esse nível de discussão. A gente sabe disso, que cinema é questão de estado num país do mundo, o Estados Unidos. Juliano – E só aqui se diz que não é, fica o Vinícius Mainardi falando asneiras mal-intencionadas. Daniel – As pessoas sabem que é, mas como todo mundo acha o Schwarzenegger simpático... Juliano – Mas, Daniel, isso é muito maior que qualquer problema ou solução de produção, é uma questão cultural muito maior, e a lei é muito mais efeito do que causa disso. Eduardo – Essa é uma coisa que já existe há 80 anos, que evolui e chega num ponto que a gente tem que ver que o cinema, no mundo inteiro ele atravessa uma situação peculiar como forma de arte, porque ele é a única forma de arte de fato que pode se discutir realmente – tem a música, num sentido mais industrial, mas a gente sabe que a música também de faz em fundo de quintal, e isso faz muita diferença – mas o cinema é a única arte que é verdadeiramente uma indústria, que depende dessa ironia. Então, se voc6e não ligar a discussão de cinema com a discussão de país, seja politica ou economicamente, não anda. Não adianta o cinema totalmente fora do mundo. Mas houve um momento em que o Brasil tava disposto a comprar essa briga, na Embrafilme foram compradas brigas sérias, com as quais o cinema brasileiro evoluiu. Hoje em dia é o contrário disso. Daniel – Mas da boca pra fora o governo diz que vai comprar a briga. Agora, é aquela coisa de cobrar o discurso. Eduardo – E é aí que entra o segundo problema nesses 80 anos que eu falei, que é o pensamento da classe cinematográfica brasileira. A classe cinematográfica, ela mesma, está disposta a levar a briga até um certo lugar. É aquela velha história: o cara tá preocupado com a produção em 16 mm enquanto ele tá fazendo 16 mm, no dia seguinte, quando ele vai fazer curta em 35 mm, ele tá cagando pra briga de quem quer fazer um curta em 16. Porque aí o problema dele já é passar o curta em 35 mm nas salas de cinema, então ele se engaja nessa luta. Aí um dia ele faz um longa, ele quer se foda quem tá brigando pelo curta de 35 mm. Daniel – Já que a gente tá nesse papo, embora os jornais tenham publicado isso, deixa eu dizer que eu não sou contrário aos curtas, apesar de nunca ter feito curta de 16 mm. Sou favorável ao curta, e à exibição de curta antes dos longas nos cinemas. Juliano – E só pra colocar mais uma coisa, esse problema obviamente não é só brasileiro. Tem um dado aqui que na França, esse ano 2000 foi o ano que o cinema americano teve a maior parcela de público, foi quase 70%. Foi disparado o ano que eles mais ocuparam o mercado. Daniel – A estratégia deles é cada vez de ocupar mais, é aquele negócio que falou o Jack Valenti: queremos 100% das telas. Juliano – Por isso é importante a gente saber que cada vez menos esse não é um problema do exclusivo do cinema brasileiro, mas é um problema de todos os cinemas nacionais, inclusive o francês, que sempre teve uma certa tradição de resistência. Eduardo – Agora, o problema é o seguinte: em outros lugares, há incentivo pra várias coisas, inclusive pra renovação dos talentos. Na Rússia, por incrível que pareça, tem toda uma lei pra isso. Na Romênia, meu amigo, na Romênia, que deve produzir 6 longas por ano, tem um concurso anual de filmes de estreantes em longa-metragem, pro pessoal filmar. Daniel – Mas você quer saber qual é a minha proposta? Eu acho que a gente tem que saber aquilo que eu falei: o filme do Barreto... dizer que o filme do Barreto é industrial é até um sinal de respeito ao cara, que tá há 30 anos nessa. Juliano – Industrial... em termos. Porque não é indústria isso, e eu acho que nem vai ser. Daniel – É. Industrial no sentido que todo mundo é contratado como técnico, pra ter uma certa função, é isso que eu quero dizer. Mas os filmes do Barreto, do Resende, que os filmes que custam caro, eles têm que ter essa proteção é na chegada ao mercado: distribuição e exibição. Esses são produtos capitalistas. Os filmes médios, de 2 milhões, 1 milhão, tem que ficar na lei do audiovisual mesmo. Agora, o filme barato, que tem que haver, tinha uma maneira muito mais simples de você fazer, que é o seguinte: vocês já viram o preço de aluguel de câmera, de aluguel de equipamento nesse país? Putz grila. Compra 10 câmeras, compra um parque de luz e um pacotão de filme e faz um concurso que premia 20, 30 roteiros. O cara compra os equipamentos e diz assim: tais pessoas ganharam o concurso, o que dá direito ao cara pegar a câmera em tal período, a usar a moviola em tal período, ele recebe umas latas de filme e 50 mil e se vira. Eduardo – Aí agora a gente vai cair na história da detonação do CTAv. Juliano – E até agora o único incentivo que foi dado a filmes baratos, foi aquele empréstimo ridículo do BNDES. Quer dizer, empréstimo. Eduardo – A fundo perdido, mas na verdade... Daniel – Isso é o maior caô, o cara pedir o currículo das pessoas... Tem que ter currículo da produtora. O cara não tem nem produtora, é coisa de pessoa física que tá lá com o roteiro dele. E não basta ter uma produtora, tem que ter um longa nas costas. Vai enganar. Juliano – E tem outro negócio também: esse esquema da lei do audiovisual facilita muito a produção que não a do cara que seja melhor diretor, dos caras que tenham, vá lá, um currículo melhor do que o outro, do cara que a princípio poderia fazer filmes melhores e mais relevantes, mas facilita sim a produção do cara que sabe captar. O cara que sabe captar é o que sabe badalar melhor, que tem os "contatos", que é Sérgio Resende, o Barretão, ou seja lá quem for. Desse jeito essa lei exclui muita gente que é boa, e que deveriam estar filmando. Eu nem preciso falar o nome dos diretores aqui, que todo mundo sabe. Eduardo – Aí você vai cair na questão do Sérgio Bianchi, que já dizia uma vez que se a gente quiser discutir produção de cinema no Brasil nos anos 90, não venha me falar quem é o diretor do filme, quem é o roteirista, qual é a proposta, me diga qual é o corretor da CVM que tá fazendo a captação do filme. Daniel – Isso é fartamente verdade, mas ao mesmo tempo certos diretores botaram certos projetos nas costas e ficaram 3, 4, 5 anos fazendo o filme, e fizeram. Juliano – Mas essa é a exceção, é o tipo de caso em que o cara fez o filme "apesar da lei", porque se dependesse dela... Daniel – Não, ele fez com a lei, apesar dos problemas da lei. Ele fez com a lei, porque sem a lei ele não fazia. Juliano – Tudo bem, pode ser que ele não fizesse sem essa lei, mas ela não incentiva nem um pouco esse tipo de produção. Daniel – Quer dizer, o Amélia não teria sido feito sem a lei, o Estorvo também, o Dois Córregos. Eduardo – Mas não se enganem, porque nenhum desses filmes foi feito com o Carlos Reichenbach, nem com a Ana Carolina, nem com o Ruy Guerra com o projeto nas costas correndo atrás de grana. Foi feito através de produtores como os que eles têm por trás deles, seja a Sara Silveira, seja a Marisa Leão, que aliás nem foi o caso do Estorvo, que ela tava fazendo o Quase Memória, que inclusive fracassou o projeto, mesmo com a Marisa Leão. Mas na verdade é o seguinte: mesmo que o cara tivesse ficado 3 ou 4 anos com o projeto nas costas, a gente não pode se dar por satisfeito com isso. O cara ficar anos com o roteiro dele pronto, correndo atrás de migalhas pra fazer um filme, não pode ser um argumento de que a coisa tenha algum lado funcional. Até porque tem um lado da criação artística que tem que ser considerado. Eu só queria, se vocês me permitem, acho que a gente já destrinchou vários pontos importantes, mas eu acho que essa discussão não termina, ela tem 17.413 questões onde a gente tem que atuar. E o principal talvez seja a gente perceber que se não agira nesses 17.413 pontos, ao mesmo tempo, não vai se resolver nada. Porque sempre se age em um, e se esquece todos os outros. A gente sabe que as coisas não vão ser solucionadas com uma canetada. Algumas coisas sim, mas as outras 17 mil.. como nessa Lei do Audiovisual, que resolveu duas coisas, e acharam que resolveram o problema do cinema brasileiro. Mas a gente não pode escapar de discutir aqui, e que se for perguntar pros diretores mais sérios, mais interessantes que a gente conhece, eles vão afirmar isso, que é um dos principais problemas do cinema brasileiro: isso tudo leva o diretor a ser tudo menos um diretor de cinema. Ele passa 5 anos com um projeto nas costas, quando na verdade, na hora que ele chega na época de filmar, ou de lançar o filme, esse projeto já nem lhe diz tanto, porque a gente sabe que em arte é assim que a coisa funciona. O projeto é feito durante um certo tempo, e depois de tanto encher o saco, você já evoluiu, ou involuiu, você já é outro e o projeto continua a mesma coisa durante 10 anos. Então eu acho importante a gente parar e discutir um pouco de estética, no sentido de a gente parar e se diferenciar, porque a produção artística tem que ser discutida. para ir para a continuação do Cinema Falado, clique aqui Voltar
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