CINEMA FALADO, PARTE 2

CINEMA DE METIÊ / FANTASMAS E AUSÊNCIAS


LARM:
Acho que até agora a gente discutiu alguns filmes que não têm uma circulação muito ampla.

LCOJr: Isso é uma outra questão. Quando a gente falava da reciprocidade entre a crítica e o cinema, o que existe – e acho que nesse sentido aquela pauta da Cinética sobre curta-metragem marca um capítulo – é o que eu venho chamando de um “cinema de metiê”. Um cinema que circula internamente ou circula de uma maneira muito restrita. Tem a cena mineira, tem a cena cearense, tem Estrada para Ythaca, A fuga da mulher gorila. Filmes que só passam em festivais, mas que podem ser vistos como o cinema brasileiro que “está acontecendo”. Está-se lançando as bases para um novo cinema brasileiro, mas isso está acontecendo só para quem pertence ao metiê.

JGP: Mas eles também estão ganhando espaço. Estão tentando ganhar espaço.

AF: Lá fora também.

TM: Mas aí volta a questão do novíssimo cinema brasileiro. É um rótulo para legitimar, que inventa um espaço onde não há espaço a princípio. Um rótulo autoproclamado, o que pra mim remete à questão do conceito. Existe o conceito sobre o filme a ser feito antes do filme existir. O que entra na questão do fomento, do edital. Atualmente, antes de filmes serem filmes, eles são projetos. Mesmo que as pessoas façam o filme sem dinheiro, ou seja, com dinheiro próprio, sem edital. As pessoas pensam nos filmes antes como projetos que como filmes. Não estou pregando filmar sem roteiro, claro. É a questão do conteúdo ser a forma, a justificativa das coisas. O que tem que ser a justificativa, no final das contas? Qual é a justificativa para você propor um projeto? Ora, quero fazer um filme!

LCOJr: Existe uma total falta de pragmatismo no cinema e isso tem a ver com o sistema de editais. Essa questão volta todo ano. Todo Cinema Falado de que participei até hoje tem essa questão de como está estruturada a produção de cinema no Brasil. O filme está aí independentemente do que vai ser sua repercussão, independentemente de ele estabelecer um diálogo com o público, ou com um público. Isso não vai interferir na carreira desse cineasta, entende? Ele não precisa garantir o filme seguinte a partir do que ele fez agora.

LARM: Mas isso é geral.

LCOJr: Geral, mas convive muito bem com o cinema de autor.

LARM: Mas o sistema de autor é hegemônico hoje.

LCOJr: Para citar o autor-mor, o Godard: nos anos 60 ele era perguntado por que fazia determinado filme. “Para poder fazer o filme seguinte”, ele dizia. Isso é o pragmatismo básico de uma profissão. Você está ali fazendo um filme para poder fazer o filme seguinte.

LARM: Eu discordaria da tese de que esse cinema de metiê que rola hoje, que está um pouco representado pelas curadorias e por essa promoção de um novíssimo cinema, não seja pragmático.

LCOJr: Acho que não é pragmático, é programático. É diferente.

LARM: Olha, mas o programático está muito perto do pragmático.

LCOJr: Só na fonética.

LARM: Não só na fonética. Penso que é pragmático porque há ali uma consciência muito clara de que, de uma forma ou de outra, você está estruturando um pequeno núcleo onde idéias, filmes, produção e crítica podem circular. Claro que isso aí marca um espaço, marca uma presença, fundamenta alguma coisa. Nesse sentido eles são continuadores de uma história que vem da Cinearte ao Cinema Novo.

LCOJr: Mas sobretudo Cinema Novo. Até pelo perfil sócio-cultural das pessoas (classe média, elite intelectual).

LARM: O único que deu certo e que construiu um modelo de existência do cineasta brasileiro foi o Cinema Novo, porque até hoje somos obrigados a ser autores. Você é autor já no edital.

TM: Não é só a questão do autor, mas também do domínio dos meios de produção. Você ocupar os lugares estratégicos.

LARM: Nessa geração existem duas vertentes de um pragmatismo, uma que é de fato e outra que é de conceito, não sei, mas que é tão pragmático quanto, só que está elaborando por um outro lado. Uma é a geração que está no poder, que é o Newton Cannito, que é o Manoel Rangel, que é o Alfredo Manevy. Eles estão aí ocupando cargos oficiais na Secretaria de Cultura. Cargos burocráticos. Eles foram por esse lado. Geração da USP que conheci quando ainda eram estudantes e que tinham um jornalzinho chamado Novo cinema. Tem, por outro lado, essa perspectiva, mais carioca, de uma certa legitimação cultural, de ocupar cargos legitimamente, que passa pela curadoria, que passa pela velha tradição de aliar prática à teoria, ou seja, o crítico que teoriza sobre o próprio filme e sobre o filme dos outros, evidentemente não todos, mas apenas alguns, criando uma espécie de vínculo entre filmes-irmãos, um vínculo que no final das contas legitima toda essa operação.

LCOJr: Não podemos esquecer que é uma geração de cineastas-críticos, ou de cineastas que se aliam à crítica de alguma maneira.

LARM: Cineastas-críticos que se colocam como cineastas-críticos, então não é um rótulo que eu coloco neles. Eles se colocam como cineastas-críticos, que têm todas essas referências que a gente colocou no início do papo. Isso é também uma forma de trabalhar dentro de uma legitimação cultural, dentro de uma legitimação política. Eu vejo muito pragmatismo nessa postura, embora seja um pragmatismo bem diferente do pragmatismo paulista, mas eu identifico como uma atuação pragmática. Se ela é de longo prazo, de médio prazo... a curto prazo não é, mas a médio e a longo prazo ela vai se configurar, como já se configurou com filmes que vão para Cannes, com filmes que passam na Semana dos Realizadores.

LCOJr: Com Tiradentes como uma plataforma de circulação de “bons filmes”, da boa safra do cinema brasileiro contemporâneo.

LARM: Da mesma forma que a Contracampo, quando surgiu, se estabeleceu como um cânone, como uma instituição. A Contracampo já significou essa espécie de “plataforma” de legitimação de um determinado gosto, de determinados conceitos, de determinadas correntes. A tal ponto que se fizeram revistas que nitidamente queriam alfinetar a Contracampo, por exemplo, a Zingu, do Matheus Trunk, que aliás é uma revista muito interessante e importante pela quantidade de informações sobre o cinema brasileiro que ela disponibiliza, entrevistas com diretores e técnicos da Boca do Lixo etc e tal. Mas a Contracampo, depois de um certo tempo, deixou de ser essa plataforma, o que eu acho extremamente interessante e saudável, porque, nesse processo, ela volta a ser de fato um “contracampo” do que está acontecendo. O que isso significa em termos de um real debate com o “metiê”, eu não saberia dizer aqui com certeza. De qualquer maneira, me parece uma postura diversa do que simplesmente exibir um acordo feliz entre crítica e prática cinematográfica.

JGP: Ocorreu também uma glamourização da crítica. Uma certa chantagem intelectual em que a crítica é a plataforma de legitimação dos filmes. E não só filmes brasileiros, ou só de um contexto do cinema brasileiro, mas ao cinema (notadamente ao “cinema feito hoje”), em que a legitimação da crítica, o carimbado dela, é mais importante do que sua postura argumentativa, provocativa, especulativa...

LCOJr: De fato, rola uma glamourização da crítica. Quando falei de cinema de metiê e de critica de metiê, não soube me fazer entender. O que se criou é um universo em que crítica e cinema se imbricaram e você tem essa geração da crítica que é uma galera que cresceu junto...

LARM: Uma geração.

LCOJr: No princípio de tudo, as coisas estão sempre juntas e depois elas se dividem. Crítica e realização aparecem como duas instâncias meio que coladas, só depois que se separam. Hoje você tem esse circuito de festivais o ano inteiro. Os críticos vão aos festivais, é como se todo mundo fizesse parte de um mesmo metiê, de uma mesma galera, os realizadores, os críticos, os curadores. Se, por um lado, o crítico não precisa viver na montanha para ter a distância exata para julgar os filmes, por outro lado é problemático quando ele faz parte daquele momento, quando ele também depende, de alguma maneira, da repercussão dos filmes.

LARM: Isso é uma tradição do Cinema Novo.

LCOJr: Quando surge O Anjo Nasceu, em 1969, você vê os críticos que fazem o papel de porta-voz do Cinema Novo dizendo: esses sujeitos (Bressane, Sganzerla) são parricidas, são fratricidas, são os abortos do Cinema Novo. Esse tipo de crítico é o cara que não quer ver o metiê se esfacelar. Quando li a pauta da Cinética pensei um pouco isso: é a crítica e a realização se unindo para não deixar o momento passar; combinando, juntas, qual o cinema que elas querem ver desabrochar nos próximos anos.

LARM: Você não acha isso pragmático?

LCOJr: Acho programático. É um programa. Meu sentido de pragmático é o cinema da Boca do Lixo.

LARM: Mas isso hoje em dia não existe. Em ponto algum. A não ser As Brasileirinhas. Acho que talvez aí existam cineastas pragmáticos.

LCOJr: Meu sentido de pragmático abarca tudo: econômico, político, dramatúrgico.

AF: O que eu concordo com o Luís Alberto é que as mesmas pessoas que criam os filmes criam espaços de exibição e criam os espaços de reflexão do filme, e nesse sentido acho que é pragmático.

LCOJr: Pode ser, mas só nesse sentido. Longe de querer desqualificá-lo, a questão é: isso está abrindo esse cinema, ou está fazendo ele continuar a circular entre as pessoas que já pertencem ao grupo?

LARM: Mas, não sejamos ingênuos, qual desses movimentos surgiu para abrir o cinema?

TM: Quero voltar a uma coisa que você havia falado, Junior, de não deixar a coisa se esfacelar. O que eu sinto, e senti isso um pouco com a cobertura que fiz de Tiradentes esse ano, é que não importa o quanto você queira brigar, as pessoas não vão deixar que você brigue com elas. Não adianta você bater porque não vai ter briga. Porque não pode haver racha. Tenho essa sensação de que é todo mundo o tempo todo segurando as pontas. Isso não seria tanto no sentido de “a gente tem que fortalecer o movimento” – o movimento sendo o cinema no Brasil. É mais o seguinte: “Não estou interessado em embate, estou mais interessado em estabelecer uma certa cena e fazer com que essa cena seja estável para mim, já que eu a estou promovendo.” Isso é muito prejudicial porque estabelece um consenso.

AF: Voltamos ao início.

TM: Assim é impossível ter provocações ou respostas, inclusive de um filme a outro. “Vou responder ao filme do fulano”.

LARM: Mas aí acho o seguinte: não são as pessoas que estão eventualmente criando esse espaço ou ocupando esse espaço, não são elas que vão permitir esse embate de idéias ou esse choque. Elas não estão lá para permitir nada. Isso vem de fora.

LCOJr: Mas não tem o fora!

TM: Exatamente.

LARM: Aí entra um dos motivos de eu querer participar desse Cinema Falado, que é querer pensar a Contracampo. Acho que os últimos textos que o Júnior e a Tati escreveram para a revista são textos que contrapõem. São textos de discussão, de contraposição, são textos que não têm nada ver com o tapinha nas costas habitual. Se eles se fecham de um lado, isso é algo natural, esperável, previsível. Mas a gente não pode ter essa idéia de que eles estão lá para dizer “olha, nos contraponham” – estou me sentindo estranho falando aqui em termos de “eles” e de “nós”... É que a gente conhece a maior parte das pessoas, temos divergências de idéias ou de posturas, e, mal ou bem – não li tudo que se escreveu sobre os festivais ou sobre os filmes que passaram nos festivais –, a postura da Contracampo, embora a revista esteja passando por essa enorme crise, tem sido uma postura de contraposição.

AF: Mas quem está respondendo a isso?

LARM: Acho que a resposta não vem para legitimar a Contracampo, uma revista que não está mais legitimada como já esteve. Não é “legitimada” – usei a palavra errada – mas “institucionalizada”. O que existe é uma revista que está ali falando isso e aquilo. A Tati recebeu e-mails de resposta de realizadores que foram criticados por ela. Os caras responderam. Então não existe um grupo só, a coisa é mais dinâmica. Não é pensar em termos “blocados”, como se existisse uma corrente invariável de filmes e críticos e cineastas e, de outro lado, meia-dúzia de pessoas vendo problemas nisso tudo. Vejo uma coisa mais dinâmica nesse processo, vejo pessoas, também, não só grupos, e o fato de que as críticas que a Tati fez possibilitaram algumas respostas, me parece indicar que existem pessoas que também estão dispostas a dialogar.

TM: Em grande parte, nessa crise interna da revista, há também o reconhecimento de que boa parcela das coisas que a gente está criticando, de alguma maneira, foram defendidas pela Contracampo em determinado momento, e acatadas. E essa produção toda seja talvez alguma espécie de resultado.

LCOJr: Não sei se “resultado”.

TM: Usei uma palavra forte demais.

LCOJr: Eu não sei o alcance que a Contracampo teve no sentido de influenciar pessoas que vieram a fazer cinema e que de alguma forma se inspirariam. Mas voltando à questão do “fora”: embora os meus textos recentes, e os da Tati, exponham esse olhar contestador, essa insatisfação, essa provocação que é uma dimensão indispensável da crítica, a Contracampo não pode ser vista como fora porque ela também é o dentro.

TM: Sim, claro.

LCOJr: É um grande problema você analisar essa nossa geração e ver que ela não tem um fora. Ela não tem uma pressão externa moldando-a, dando porrada nela, no sentido de “você não pode ser só isso que você já acreditou que é”. Não tem pressão externa. É uma geração que cresceu dentro dela mesma, está criando seus próprios espaços – a exemplo da Semana dos Realizadores –, o que é bom, por um lado. Mas, por outro lado, você vê como é centrípeto, que é uma expansão a partir de seu próprio umbigo. Acho isso muito perigoso.

LARM: Eu estava lendo há pouco tempo um livro do Jean-Claude Bernardet chamado Trajetória crítica, que é interessante porque ele publica as próprias críticas e as analisa. Ele é rigoroso com ele mesmo. Lá pelas tantas ele menciona uma crítica que causou uma polêmica total no meio cinematográfico. Ela dizia: “Vocês têm por um lado a pornochanchada, e por outro lado um cinema-Academia-Brasileira-de-Letras” – é aquele momento em que estavam se adaptando os grandes autores nacionais – “e por outro você tem cinema experimental. O radicalismo está na pornochanchada e no cinema experimental.” Aí dividiu, criou uma polêmica, etc. No texto, no livro, Bernardet diz o seguinte: “Esse texto crítico não criou essa polêmica. Essa polêmica já existia. Esse racha entre os realizadores, essa recusa que um tem do projeto do outro já existe naturalmente. A crítica não provoca isso”. No fundo ele está dizendo que a crítica é inútil diante desse quadro. O quadro já estava instalado. Esse quadro já existia. E esse quadro é um racha. Uma coisa que o Jr. está colocando, e que é muito interessante, é o seguinte: ao contrário dessa época, hoje você não tem racha nenhum; você tem uma concordância geral. É nesse momento que a crítica pode ser útil, nesse momento é que ela pode rachar e funcionar nesse sentido. Só para colocar como as épocas estão diferentes. A gente estava falando de Damas do Prazer, a gente está com uma pauta “Clássicos e Raros”, mas veja como a época é diferente, como a gente está percebendo as coisas de uma maneira diferente. E as relações do cinema de metiê aí são outras.

LCOJr: Mas a pauta nasceu desse choque. Estar vendo outra realidade, outro cinema. Vendo outra coisa. O meu texto é um relatório fiel do que foi a sessão de Damas do Prazer pra mim. Algumas sessões da mostra Clássicos e Raros, as de Gregório 38, Caveira My Friend ou Juventude Sem Amanhã, foram tranqüilas, mas algumas outras não foram, Damas do Prazer principalmente. Eu não consegui simplesmente olhar e dizer: “que cena, que filme!”. Tinha uma amargura de fundo. E isso é horrível. Aí tem o que discutimos a partir dessa pauta, que é estar trabalhando no limiar do reacionarismo. Eu argumentei que eu vejo nesse consenso, na forma como as pessoas estão se esquecendo de fazer filmes para afrontar o mundo, uma postura, aí sim, reacionária. Criar uma contraposição a isso, portanto, é ser contrário ao reacionarismo. E eu diria que a conseqüência disso é uma certa amargura. É ver Damas do Prazer e, ao invés de simplesmente se deliciar com o filme, ficar se revoltando porque isso é algo impensável em termos de cinema atual.

TM: Uma coisa que eu falo volta e meia é que estou extremamente decepcionada com a nossa geração, que prometia muito e que já está desabrochando meio podre. Essa sensação da amargura de que você está falando, eu compartilho completamente.

LARM: Então acho que isso é um problema da geração.

TM: Esse é o momento da divisão de que você falava, Junior: há um ponto em que ou se embarca nesse projeto coletivo, ou se dá um passo para trás, pára, olha e pensa: “para onde a gente está indo?”.

LARM: Eu, por exemplo, que não sou etariamente da geração de vocês, percebo o contrário. Estou sempre percebendo as coisas que estão se plasmando. Eu fico percebendo às vezes em pessoas muito novas uma identidade de pensamento, uma identidade de idéias que eu não tenho com pessoas da minha geração.

TM: Não quero dizer que todas as pessoas não estejam incomodadas. Vejo muita gente que compartilha deste incômodo, que sente a falta do “fora”. Mas a face visível é a que se autoproclama, e é a que bem ou mal ocupa os espaços.

LARM: Mas a face visível de 2010 não é a face visível de 2006, de 2007. Estrada para Ythaca [Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, 2010], que é um filme sobre o qual a gente tem opiniões divergentes, ou convergentes em vários aspectos, e que é um filme que a maior parte aqui viu, não tem nada de oba-oba. Ele pode ser isso ou aquilo, mas não é um oba-oba. Não é um filme de celebração de uma alegria vazia, etc. Ele pode ser criticado por outros aspectos.

TM: Mas esse cinema de que a gente está falando não é de oba-oba.

LCOJr: Pelo contrário. É de uma melancolia...

TM: Não são os filmes que são de oba-oba, mas sim a postura.

Liciane Mamede: Acho que Estrada para Ythaca não tem nada de melancólico. É oba-oba. Eles não conseguem transpor uma tristeza no filme. Eles são tão amigos, se idolatram e idolatram tanto o cinema, que querem ser cineastas. Mas não conseguem transmitir nenhuma verdade com aquele filme.

LARM: Mas é também uma curtição.

LM: Eles estão curtindo, pegando dinheiro dos pais e fazendo cinema, e nesse sentido é oba-oba. Eles não conseguem fazer um filme sobre quatro amigos que perderam um amigo. Não tem nada no filme que transmita uma verdade sobre a tristeza da perda.

JGP: Verdade do quê, dos sentimentos deles?

LM: Não fico convencida de que eles estão tristes porque perderam um amigo.

LCOJr: O filme é sobre fazer um filme. É sobre quatro amigos fazendo um filme. Essa é a história de Estrada para Ythaca.

TM: Quase todos os filmes hoje são sobre fazer um filme. No caso, falo dos curtas-metragens e longas-metragens sem orçamento oficial. Parece que todos eles são filmes sobre fazer um filme.

LM: A coisa está tão no oba-oba que eles não percebem que Ythaca é um filme caseiro, amador. Não há nada do filme em que eu acredite. Não entendo que eles estão de luto.

LARM: Mas talvez aí a gente esteja recaindo na questão da dramaturgia.

TM: Com certeza.

JGP: No filme que o Júnior citou, Apenas o fim, não parece que eles já namoraram ou estão namorando. Não tem nenhum sentimento. Não é que o filme não consiga descrever um sentimento – “o diretor não consegue fazer uma boa interpretação com um ator e não consegue transparecer aquele sentimento” – não: o sentimento simplesmente não existe. Essencialmente, ele não existe.

LARM: Tem um problema no Ythaca, que é um filme do qual eu não desgosto tanto quanto vocês...

TM: Eu também não desgosto.

LARM: O Ricardo Pretti esteve lá na UFF e a gente passou o filme em aula e depois fez um debate. O problema que eu vejo no filme é uma questão conceitual mesmo, porque o Ythaca é um filme que está muito dentro dessa linha de filmes de conceito. Uma das cenas-chave é quando eles são abduzidos e depois vêem a figura do amigo deles. Aí baixa o Glauber no amigo deles, o Glauber naquela cena de O Vento do Leste em que ele aponta duas estradas, uma vai para o cinema desconhecido, para o cinema da aventura, e outra vai para um cinema perigoso, um cinema do terceiro mundo, um cinema divino e maravilhoso. E quando eles são abduzidos e voltam sem barba, eles vão direto para o caminho do cinema do terceiro mundo. Pra mim fica uma coisa confusa, cria um impasse. Quando o Glauber aponta esse cinema do terceiro mundo em 1970, ele está apontando para um cinema de indústria. Ele está no meio de uma polêmica na qual ele diz: você, Godard, que é um burguês, um cineasta europeu decadente etc e tal, você quer destruir as câmeras, enquanto nós, cineastas do terceiro mundo, nós queremos construir o cinema; o nosso rumo é o da indústria, o rumo de um cinema que vai se afirmar. Então, quando os personagens de Estrada para Ythaca seguem direto esse rumo apontado pelo Glauber, eles estão seguindo o rumo de uma industrialização, de um cinema que está querendo se afirmar como indústria. Ao menos é assim que devemos interpretar naquele contexto de O Vento do Leste. O que significa que essas palavras (“aventura”, “desconhecido”, “terceiro mundo”, “cinema”, “indústria”) ou mudaram completamente de sentido ou não estão sendo entendidas. Esse é o momento, para mim, em que o filme se desarticula. E eu fico me perguntando o porquê dessa filiação imediata, da parte dos realizadores do Ythaca, ao Glauber, ou melhor, ao discurso do Glauber de 1968/69. Na verdade, a questão é: o que é que o Glauber (quer dizer, a “entidade” Glauber) está fazendo naquele filme? E justamente um Glauber que está propondo o cinema industrial em contraposição ao cinema underground! Nesse ponto eu também me divido: fico me perguntando se a questão que eu coloco não é uma questão “antiga”, também. Mas se ela for antiga, então aí eu entendo menos ainda a menção a Glauber. Não conheço todos os filmes que estão sendo feitos no Ceará pelos cineastas mais jovens, como os irmãos Pretti, vi alguns, um deles inclusive eu gostei bastante, que é o Sábado à Noite [Ivo Lopes Araújo, 2007], um documentário pro DocTV, então eu não sei se essa filiação glauberiana existe em outros trabalhos. No Sábado à Noite, pelo menos, essa filiação não existe, como não existe também filiação cega e mal-digerida com o Coutinho, o que é outra coisa muito saudável em um documentário atual. Estou insistindo nisso porque o Ythaca se coloca, pelo menos a princípio, como um filme que quer manter um diálogo de outra ordem com a tradição do cinema brasileiro, ele não me parece querer bater nas teclas mais tradicionais; ao contrário, quer buscar outras referências em outros autores, o que eu acho bacana. Mas de repente você dá de cara com o “Glauber” dizendo pra onde eles têm que ir...

LCOJr: Acho que é uma coisa ainda relacionada a esse momento atual da cinefilia. Nesse grande oceano de filmes em que as obras estão boiando, perdeu-se um pouco o sentido histórico da coisa. Eu falei para a Tatiana outro dia: precisamos urgentemente de bons historiadores do cinema. Historiadores panorâmicos, que não apenas se enfurnam numa época, num aspecto, num cineasta, num conjunto de documentos, mas que traçam uma visão panorâmica da coisa. Só que se você fala isso hoje, soa regressivo, reacionário, porque o paradigma vigente é o do “plano de imanência”: está tudo aí, está tudo na superfície móvel do presente e você não tem uma história do cinema no sentido de uma sucessão de escolas estéticas, momentos, estilos etc. O que se tem é um devir infinito, um conjunto instável de forças, de potências, o cinema como um conjunto de signos. E aí, nesse plano de imanência, muitos filmes perdem o sentido e o que resta deles é só o signo. A apropriação que se faz desses filmes se dá apenas no plano dos signos, dos significantes. Mas o sentido, o significado, isso se perdeu. Aí se criam esses ruídos bizarros, como essa citação de O Vento do Leste no Estrada para Ythaca. Ninguém sabe ao certo o que aquela encruzilhada significa, mas aquilo baixa ali como se fosse um alien. É só uma imagem que ficou de uma longínqua aventura do cinema.

LARM: Aí eu me lembro do André Sampaio contando que estava na platéia vendo esse filme lá em Tiradentes e gritou: “Peraí! Dá uma olhada na outra estrada, vê o que tem pelo menos!”. [risos] Essa imagem da encruzilhada representa essa nossa discussão, na verdade: é o cinema da dramaturgia ou o cinema do conceito, quer dizer, eu acho que ela representa exatamente o que a gente está discutindo aqui desde o início.

TM: Não se sabe o que é essa encruzilhada exatamente porque não se entende o que é um conflito. A mesma coisa que você falou no caso do texto do Bernardet: aquele conflito lá em O Vento do Leste já existia, na verdade. E como isso agora não existe, eles não poderiam compreender o verdadeiro sentido dessa encruzilhada, porque esse embate não existe na realidade de produção, ou na realidade do meio no qual o filme está sendo feito. Eles nunca vão conseguir entender o peso ou o significado dessa encruzilhada. Na verdade, hoje em dia não existe encruzilhada. Aquilo, para eles, é de fato só uma imagem com a qual você pode brincar e que não tem grandes conseqüências. Eu acho que aquilo é só uma brincadeira.

LARM: Mas é uma brincadeira solene.

TM: Pois é. Eu, quando vejo aquela encruzilhada, aquela referência, a coisa adquire imediatamente um sentido político. E a partir do momento em que o filme não se posiciona diante da encruzilhada de uma maneira conseqüente e política, eu não entendo nada. O próprio efeito-encruzilhada, o próprio efeito-citação se dilui logo em seguida no filme, e você fica se perguntando: então, por que citar? O filme não assume as conseqüências de colocar aquela referência, aquela citação, e de propor aquele discurso – porque é um discurso. E aí o filme se dilui e fica realmente parecendo uma brincadeira. A gente volta àquela questão da brincadeira do cinéfilo. Sendo que O Vento do Leste é um filme do Grupo Dziga Vertov, tem um contexto muito específico, muito radical. Não é qualquer filme do Godard. Não é Uma Mulher é uma Mulher.

LCOJr: Por ser Estrada para Ythaca um “filme de grupo”, talvez eles não procurem inocentemente citar um outro filme de grupo.

TM: Mas aí volta o que você estava falando: não há história. O Vento do Leste não é história; é mais um filme do oceano de filmes.

LCOJr: É só uma reatualização de signos. Hoje existe uma grande apologia da inocência, do olhar inocente. Todos querem afirmar que estão olhando para o mundo – ou para o cinema – sem qualquer tipo de pré-concepção, de pré-julgamento, é um reencantamento do mundo através da inocência.

LARM: Como se o cineasta fosse quase um santo...

LCOJr: Quase um santo. Mas ver e citar um filme do Grupo Dziga Vertov na base da inocência é um tremendo contra-senso. O filme pede justamente o olhar não-inocente, o olhar crítico, inquiridor. Outra coisa que me intriga: e quando os personagens do Ythaca aparecem sem barba, com rosto liso, eles se tornaram o quê, anjos? É como se, ao fim daquela jornada de purgação de uma dor pela perda de um amigo, as pessoas se purificassem. Depois tem a cena do bar, com o fantasma do amigo: a ausência se presentifica. Eu vi esse filme no festival de cinema latino-americano em São Paulo, em seguida ao A Falta que Me Faz, da Marília Rocha, e me impressiona essa coisa da ausência: o núcleo dos filmes é uma ausência, é alguma coisa que não está ali, é o fantasma, é alguma coisa que assombra o filme, que está no fora-de-campo.

LARM: Mas isso a princípio não tem problema.

LCOJr: Tem problema a partir do momento em que vira piloto automático. É uma certa moda do fantasmático, do espectral. Essa coisa do fantasma, da aparição, foi um dos fetiches da década – fetiche da crítica, inclusive. Todo mundo virou fantasma de repente. Isso se explica, em parte, porque o fantasma vem ao encontro da dissolução do peso das coisas. Vem ao encontro dessa coisa de desmaterialização do mundo. O fantasma vem a calhar. Ele é esse estado etéreo.

LARM: Ele é a matéria conveniente.

JGP: Eu acho que isso pode ser bom.

LCOJr: Pode ser bom, claro. Não condeno o fantasma como um elemento dramático, não condeno o personagem-fantasma (que já rendeu vários grandes filmes, de Mankiewicz a Rivette). O que eu falo é que quando você pode fantasmatizar tudo, como se você pudesse sempre trabalhar nesse mundo etéreo, onde as coisas não têm peso e estão aí só como um vapor, uma sensação, então há algo de estranho e é preciso tentar entender por que isso está acontecendo. Os filmes me passam a impressão de que se trata simplesmente de uma moda: o fantasma aparece não porque impôs sua presença por algum motivo ou sentido forte, mas porque o diretor viu uma série de filmes contemporâneos em que essa figura é recorrente – Mal dos Trópicos, Brown Bunny, Last Days, Adeus Dragon Inn, os últimos filmes do Oliveira, Philippe Garrel, Eugène Green etc – e aderiu a essa tendência. É a moda do fantasma, da mesma forma que, num outro nicho, de séries e filmes comerciais, existe a moda do vampiro emo. Ou então, para repor uma palavra recorrente na conversa, é um “conceito”.

AF: É uma dificuldade também de lidar com a materialidade.

TM: De lidar com o conflito.

LCOJr: A presença implica o conflito. Quando você pega aquele elemento que está na origem de um sentimento, de um estado, e o coloca no centro do quadro, e não no fora-de-campo ou no lugar abstrato em que ele é só uma dimensão virtual do filme, você necessariamente obriga que se faça alguma coisa com aquilo. O que você vai fazer com essa presença que está aí? A presença cria um problema, um conflito que precisa ser resolvido.

Um curta-metragem de que eu gosto, mas que eu acho que esbarra nessa questão da ausência, é o Rosa e Benjamin, do Cléber Eduardo e da Ilana Feldman. O filme mostra um casal de terceira idade que mora bem ao lado do aeroporto de Congonhas. Surge na vida deles um novo vizinho, que é viúvo (ou “sozinho”, como o Benjamin define). Rosa volta e meia diz que encontrou o novo vizinho por acaso. Benjamin sente ciúmes, mas não enfrenta a questão. Ele faz comentários evasivos e tal. Nas primeiras vezes em que o ciúme invade a conversa, um avião abafa o som ambiente, atrapalha o diálogo – é uma forma de representar a pane emocional do ciumento. O vizinho nunca aparece, é praticamente uma assombração do fora-de-campo. A dúvida fica no ar. O mais interessante do filme, pra mim, é o curto-circuito que ele estabelece entre a catástrofe íntima e a catástrofe coletiva, ou seja, entre o ciúme reprimido do Benjamin e os dois grandes acidentes que ocorreram em 2007 em São Paulo, separados por mais ou menos seis meses, e que tiveram grande repercussão na mídia: o desabamento daquela estação de metrô que estava sendo construída em Pinheiros e o desastre com o vôo que pousava em Congonhas vindo de Porto Alegre. O desastre do avião, por ser ali do lado da casa dos personagens, marca o momento mais carregado da história. Tem uma imagem instigante no filme, que é a do quintal lateral da casa vazio, uma imagem que se repete à la Ozu. Mas não tem confronto, o vizinho se evapora, se muda do bairro da mesma forma fantasmática que chegou. A exclusão do termo conflitante a um extracampo radical torna obrigatório o tom ambíguo do filme, a irresolução. A narrativa é flat, minimalista (detalhes de figurino e cenário constroem a trama), o drama se cola na personalidade do Benjamin, calado, fechado. Embora plenamente justificável dentro da proposta do filme, isso nos faz voltar àquela questão: o que acontece hoje que ninguém mais encara o drama de frente? Impossibilidade real de confrontação dramática ou prisão dentro de um modelo (do minimalismo, da ambigüidade, da contenção, do extracampo maior que o campo) que se oferece como o mais pronto pra uso?

A facilidade que advém de lidar com o espectral me incomoda profundamente. Isso está no Estrada para Ythaca e de certo modo está também no filme da Marília Rocha, conforme o nome já diz: A Falta que Me Faz. O filme é sobre uma falta. Foi engraçado o que ela falou no debate: iria fazer um filme completamente diferente, um documentário sobre uma atividade extrativista praticada ali naquela região onde o filme se passa, mais especificamente sobre as meninas que trabalham nessa atividade. No meio do caminho, à medida que foi conhecendo as personagens, a diretora viu que todas elas estavam passando por um mesmo momento afetivo, que era a coisa de projetar o grande amor da sua vida – e é natural que elas estejam pensando sua vida muito em função disso: são jovens de dezoito, vinte anos. Uma vez que ela, diretora, também estava passando por um momento assim, o filme se encontrou. Eu acho que a Marília Rocha até se destaca do restante da produção da Teia na medida em que ela tem um interesse pelo Outro, ela tem um interesse em buscar o que está acontecendo ao redor, e não só se fechar no próprio universo de sua sensibilidade. Por isso ela vai fazer esse filme sobre as catadoras de uma plantinha que existe ali no interior de Minas. Mas no meio do caminho descobre algo que partilha com esse Outro, descobre o “afeto”. Aí o documentário deixa de ser sobre uma atividade econômica e passa a ser um documentário sobre um estado afetivo, o que é automaticamente paralisante. Todas as determinações – políticas, econômicas, sociais – são diluídas no plano afetivo. No afeto, todo mundo se entende. O Outro só interessa de verdade a partir do momento em que revela algo de você mesmo.


Parte 1: O consenso / "Cinema de qualidade" / Filmes de conceito

Parte 3: Cinema de gênero? / Os meios de produção / O paraíso do autor

Parte 4: A conciliação / O paradigma do afeto e da inocência / Alternativas de mercado

Parte 5: Personagens da era Lula / "É tudo abstrato hoje em dia"

Parte 6: Serras da Desordem e O Signo do Caos: ruídos / Considerações finais


 Setembro de 2010