CINEMA FALADO, PARTE 5

PERSONAGENS DA ERA LULA / "É TUDO ABSTRATO HOJE EM DIA"


LARM:
Uma coisa que eu acho muito interessante – linkando com o papo sobre a fantasmagoria – é uma determinada recorrência de filmes que estão aí hoje em dia trabalhando com esses personagens fantasmas, essa dramaturgia construída em torno de personagens fantasmagóricos, mas de um outro ponto de vista: é desde A Mulher Invisível até Chico Xavier. Uma certa fantasmagoria, uma cera imaterialidade. O que eu acho interessante – só colocando uma questão em relação ao Chico Xavier – é que o filme me pareceu altamente materialista, altamente concreto.

NM: Um cinema da matéria.

LARM: Não, não... É que, apesar do Chico Xavier falar do espiritismo, não existe ali uma tentativa de criar personagens fantasmagóricos. O que existe ali é uma coisa muito real: é um drama de um cara que tem uma característica que é ver espíritos, ele precisa se adaptar a essa situação, que é uma situação que diferencia ele do resto, e o drama é isso, é o drama de um cara que tem esse destino, não pediu para ter esse destino, mas ele vai ter que assumir esse destino. Esse drama, no fundo, é um drama que está sendo recorrente nos últimos tempos, que é o drama do personagem que não pediu para nascer, mas nasceu. E nesse sentido o Chico Xavier é como o Lula, o Filho do Brasil. Os dois têm um destino, os dois nasceram para alguma coisa, não queriam aquilo – ou pelo menos não faziam questão de ter aquilo...

LCOJr: E foram cooptados pela vida.

LARM: E foram cooptados pela vida. É o drama do personagem passivo, na verdade.

LCOJr: Dois filhos de Francisco também é assim.

LARM: Exato! Então existe uma série de filmes, agora não estão vindo outros na cabeça, mas eu tenho quase toda certeza de que existem outros filmes que trabalham com esse personagem que não queria ser o que ele é, mas acaba sendo e na verdade isso se reverte adiante como uma glória.

LCOJr: Existe um roteiro do destino...

LARM: Um roteiro do destino, eles foram cooptados pela vida, e a vida reserva a eles um lugar de honra. Isso é o Lula, é o Chico Xavier, isso é Dois filhos de Francisco.

AF: Isso é a nossa cultura sebastianista.

LARM: E há também isso no documentário. É o Loki... Há vários nomes e vultos da arte e da política brasileira que chegaram , ou que acabaram indo para aquele ponto.

LCOJr: Um culto à personalidade, de alguma forma?

LARM: Mas ambíguo, porque é uma personalidade que na verdade não queria ser essa personalidade. Ela é passiva.

LCOJr: Algo como: até o herói do Brasil é por acidente?

LARM: Não. É o Brasil que está predestinado a dar certo. É um cinema altamente positivo.

LCOJr: Positivista, até.

LARM: Espírito positivista. Porque o Brasil nunca foi tão espiritualizado no cinema brasileiro quanto agora, em todos os sentidos, isso é no documentário, isso é na ficção. O grande personagem épico hoje em dia é o personagem que não queria estar, mas está na situação simplesmente porque se tocou que o Brasil é maior do que ele.

LCOJr: É como se o Brasil tivesse se reconciliado com aquele horizonte grandioso para o qual ele estava destinado, e no entanto do qual a História o havia afastado durante muito tempo. É como se ele retomasse um fio da meada do progresso, do futuro, da predestinação.

LARM: O que é muito diferente quando você, por exemplo, vê O Príncipe ou mesmo Deus é Brasileiro, que eu acho que é o filme da era Fernando Henrique Cardoso, é a biografia dele. Mas o Deus brasileiro é o quê? “Eu estou de saco cheio e preciso de um substituto. A desgraça é que não há quem me substituta”. De qualquer maneira, um personagem como Deus é um personagem ativo, afinal de contas ele criou o mundo, ele fez alguma coisa. Mas esses personagens – o Lula, o Chico Xavier, o Luciano e o Zezé, quer dizer, os personagens da era Lula – são passivos. São personagens que foram alçados pela História ao que eles são. É um tipo de leitura que não tem a ver com a esquerda dos anos 60.

LCOJr: É verdade. Podemos incluir também o Matias do Tropa de Elite. Ele é esse personagem passivo, que a circunstância coloca num lugar que ele acabará ocupando.

LARM: “Eu não queria estar ali, mas eu estou, acabei ali.” Um personagem como O Invasor é um personagem completamente diferente disso, ele vai para outro lado; no caso de O Invasor, o personagem do Paulo Miklos, o Anísio, se mete em ambientes aos quais não foi chamado, se posiciona, atropela os outros, se coloca e ocupa um lugar. Não é um personagem passivo. Há outros personagens assim também, não sei, não estou me lembrando, mas que enfim, não têm essa linha da passividade, do estou-aqui-porque-fui-predestinado, sou uma vítima da circunstância. Mas, por exemplo, um filme como Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Eu Dei: um cara que é predestinado para o sucesso, mas aí a História o condenou porque ele não cabia naquele momento da maneira como ele era.

LCOJr: Volta a um assunto que a gente já abordou aqui. Numa década que começou sob a égide da conciliação, é interessante mapear uma galeria dos não-reconciliados.

LARM: Muitas vezes esses personagens não-reconciliados são tratados de formas reconciliadoras pelos cineastas, pelo próprio fato de ser uma homenagem.

LCOJr: No documentário tem muito isso. O personagem que sofreu com a história do país, ou que não foi tão reconhecido da forma como merecia, ou um personagem que foi taxado de louco como o Arnaldo Batista, agora você presta homenagem a ele.

LARM: É o momento do reconhecimento.

JGP: Ele é o “loki” – “tudo bem, sabe?”.

LCOJr: É o “loki”, mas a loucura é potência. Você positiva isso pelo viés da potência artística. Mas tem uma perversão terrível nisso, porque não interessa se você está reconhecendo ele como artista ou não – o cara já se ferrou muito por conta de pessoas como as que agora o estão homenageando...

LARM: Nesse sentido, quando se homenageia o Sganzerla hoje, é um pouco isso.

LCOJr: Eu também acho. Você mata o cara, asfixia o cara, e aí quando ele morre, você fala “ah, ele foi um grande”... Isso é uma lógica perversa da cultura. Esse negócio de você pegar o cara que é maldito e dizer “não, tudo bem, agora a gente sabe que ele é gênio”.

LARM: Eu acho que a obra do Sganzerla tem mais é que ser difundida mesmo, mas a questão não é o Sganzerla ou outro, a questão é o sintoma que está regendo esse tipo de coisa e que pode ser com qualquer um: foi com o Glauber, o Sganzerla, o Simonal. Eu li uma pichação em Curitiba sensacional: “as idéias precisam voltar a ser perigosas”. Eu achei isso revelador – as idéias hoje em dia são totalmente inofensivas.

LCOJr: Eu lembro que no Clássicos e Raros, antes de começar a mostra, eu peguei o folder e li todas as sinopses. Havia uma assim: homem se torna amante de sua madrasta, eles assaltam um banco, o assalto dá errado...

LARM: Os Desclassificados, Clery Cunha.

LCOJr: Aí você constata: isso aqui está correndo o risco da ficção. É um filme que está correndo o risco de contar uma história.

LARM: O problema é que hoje em dia não se corre o risco nem do documentário, quanto mais da ficção.

LCOJr: Você lê as sinopses dos filmes [de hoje] e é assim: “Um lugar. Uma tarde. Uma conversa ao crepúsculo”. Os diálogos também são coisas completamente abstratas. No curta Areia, do Caetano Gotardo, tem aquele casal na beira da praia, aí eles falam: “Seu nome é fulano: dá pra comer, mastigar esse nome. Seu nome é fulana: dá pra vestir, usar como uma roupa”. É o afeto em estado puro. É o cinema do carinho.

JGP: Mas é como se ele pudesse tocar mesmo o afeto, como se o afeto fosse algo concreto – ao invés de vago e disperso como na maioria dos outros “filmes do afeto” já mencionados aqui.

LCOJr: Só acho impressionante como não há erotismo nenhum. E não interessa se são fantasmas: são antes um homem e uma mulher numa praia deserta! Acho incrível que o contato sexual esteja completamente ausente desse filme.

JGP: Mas eu acho que esse filme não se propõe a isso. É um filme abstrato.

LCOJr: É tudo abstrato hoje em dia. Eu acho até que o Areia tem coisas bonitas. Mas esse diálogo que mencionei, assim como aquela fotografia de estúdio em plena praia, aquela luz de publicidade, isso me desagrada – embora conceitualmente você possa justificar essa escolha fotográfica: o filme é todo feito em externa, mas é filmado de um jeito que pareça interna, porque na verdade é o espaço abstrato, paisagem interior, é o espelho da interioridade.

LARM: O cinema brasileiro vai mudar quando os editais pedirem: “conte a história do seu filme”, “descreva a trajetória do personagem do seu filme, com começo, meio e fim... E não esqueça das tensões que existem entre os personagens”. “Aponte clímax e desenlace do seu argumento.”

NM: Isso seria uma política cultural.

LCOJr: O problema dos filmes-de-conceito é o seguinte: tudo bem, colocou a dramaturgia de lado, beleza, vamos ver o que o cara vai dar em troca. Mas aí quando você vê o que vem em troca.... tudo perfumaria.

NM: É que tudo vem de uma insegurança, ninguém quer se expor, todo mundo tem medo de levar um “não”, e vai sempre pelo mais seguro. As coisas não aparecem, ficam na elipse.

LARM: É elegante não filmar.

LCOJr: Essas figuras de evanescência e desaparição se tornaram uma praga.

NM: Isso é uma tendência, é algo recorrente. Denota um medo de não colocar a cara para quebrar. Isso é a escolha mais fácil, mais segura.


Parte 1: O consenso / "Cinema de qualidade" / Filmes de conceito

Parte 2: Cinema de metiê / Fantasmas e ausências

Parte 3: Cinema de gênero? / Os meios de produção / O paraíso do autor

Parte 4: A conciliação / O paradigma do afeto e da inocência / Alternativas de mercado

Parte 6: Serras da Desordem e O Signo do Caos: ruídos / Considerações finais


 Setembro de 2010