DAMAS DO PRAZER
Antônio Meliande, Brasil, 1978

Numa cena de Damas do Prazer, uma velha chata acorda uma menina que dorme a tarde inteira. A coroa, achando que ela não contribui o suficiente com as economias da casa, começa a importuná-la com assunto de dinheiro. “Então o problema é dinheiro?”, a menina resmunga. “E existe algum outro tipo de problema?”, a velha rebate. A menina puxa umas notas que guardava debaixo do colchão e entrega para a velha, que muda o tom: “Ah, sim, durma bem, quem trabalha à noite precisa descansar durante o dia!”. Diálogo perfeito. Todos os diálogos de Damas do Prazer são nesse nível.

O filme acompanha um grupo de prostitutas que trabalham no mesmo ponto, uma calçada na Boca do Lixo. Elas compõem um painel heterogêneo: a japa, a loira com ar de interessante (que fica ouvindo rádio de pilha enquanto aguarda os clientes), a veterana, a novata, a experiente etc. Cada uma possui sua história particular (será que Ody Fraga – autor do roteiro – se inspirou em A Rua da Vergonha, obra derradeira de Kenji Mizoguchi, que ele pode ter visto num daqueles muitos cinemas que existiam na Liberdade e exibiam exclusivamente filmes japoneses?). A loira está em guerra com o cafetão. A veterana tem um filho adolescente que vive em estado semi-vegetativo. A japa vai receber a visita dos pais e precisa trocar toda a cenografia de seu apartamento e fingir que leva outra vida. A novata se envolve com um cliente que está sendo traído pela mulher. A experiente se apaixona por Corsário, um jornalista desiludido que enche a cara no boteco que elas freqüentam e solta frases filosóficas de vez em quando. Na pausa para a janta, a pedida é sempre um PF indigesto. Os almofadinhas do cinema brasileiro contemporâneo ficariam com o estômago embrulhado. Eles não conseguiriam filmar esse universo sem estilizá-lo de alguma maneira. Não haveria nenhuma franqueza no olhar, nenhuma naturalidade na representação. Tudo viria mediado, fosse pelas boas intenções das ciências sociais, pelas boas referências de homens cultos e ilustrados ou pelo bom gosto da nova tradição de qualidade do cinema brasileiro. Mas na verdade eles não têm muito interesse em filmar o baixo meretrício.

Damas do Prazer é um filme distante da realidade atual do cinema brasileiro por uma série de motivos. O primeiro deles é o fato de ser um filme cru e direto, que só trata de questões concretas. Não há metáfora nem eufemismo. E não há fantasmas nesse filme. Ou melhor, todos os seus fantasmas, todas as suas assombrações são na verdade presenças, são questões relativas a pessoas vivas ou a dificuldades reais. Um filho deficiente físico e mental. Uma esposa infiel. Um cafetão explorador e mau caráter. Um aluguel para pagar no fim do mês. Cada um deve lidar com seu problema da maneira que pode.

O homem traído pela esposa faz psicanálise selvagem com uma das putas. Ele tem seu grande momento quando a mulher chega em casa e o pega na cama com a garota. A esposa discute com o marido, mas ele logo a manda calar a boca e se juntar a eles na cama. Ela aceita. Poderia haver contraponto maior ao papo furado que toma conta dos filmes de casal contemporâneos?

Numa outra excelente cena, a puta veterana pega o metrô na Estação da Luz. Uma música triste, quase fúnebre, acompanha seu trajeto. Para onde ela vai? Só descobriremos no decorrer da cena. O roteiro do filme se escreve ali, na verdade sensível de uma trajetória. O metrô é filmado em horário normal de funcionamento, a câmera entra no vagão e se aperta entre os passageiros como se fosse, também ela, um corpo posto em cena. Alguns olham para a câmera, outros não estão nem aí. Hoje os produtores telefonariam para a prefeitura e pediriam para usar o metrô fora do horário de funcionamento, ou então escolheriam um horário bem pouco movimentado, para evitar as pessoas. As pessoas atrapalham o filme. O cinema brasileiro está formal demais, burocrático demais. Um cinema que precisa pedir permissão para filmar – e que se programa todo antes de ligar a câmera. Ou seja, um cinema que não flagra a nudez do real.

Vendo filmes dos anos 1970, percebemos uma coisa que era muito forte neles e que agora praticamente inexiste: a sujeira da calçada, a atmosfera das ruas, a respiração coletiva das grandes cidades. Aquela poeira do tempo que circula no ambiente urbano não interessa mais aos cineastas?

Voltemos a Damas do Prazer. O destino da mulher que pega o metrô é a casa em que seu filho deficiente se encontra. Os planos que o apresentam são estranhos, “incorretos”, despudorados, no limite da crueldade. Carinho com o personagem é uma ova. Essa história de carinho e afeto, que virou a moeda de troca mais corrente no cinema e na crítica, encobre na maioria das vezes uma covardia diante das principais questões morais. Em vez de definir um ponto de vista sobre o personagem, o filme embarca com ele num universo de sensações. O plano-afeto é a dramaturgia das almas frouxas. A verdadeira moral do cineasta é sua crueldade, pois somente ela pode despertar no espectador uma consciência incontornável sobre as coisas, isto é, uma necessidade de estabelecer um ponto de vista, de afrontar. O olhar cruel é o oposto do olhar inocente; é o olhar que reconhece as forças obscuras que atravessam o mundo. Esse olhar consiste tão-somente em encarar as coisas de frente e admitir que toda ação tem uma conseqüência. Lang, Renoir, Mizoguchi, Eastwood, Pialat, Bresson: os grandes cineastas morais sempre nos mostraram que a existência tem um peso.

É o que faz Antônio Meliande na cena da eutanásia: as ações de pegar a seringa, preparar a injeção, injetar a substância letal e aguardar pela morte são mostradas em sua duração agonizante, em seu peso bruto. Os planos destacam das ações e das expressões o essencial, seguem uma decupagem dramática, constroem o tempo da cena. Saber decupar é saber entender o momento dos personagens.

Nessa cena de Damas do Prazer, uma mãe põe fim à vida de seu filho. Por amor e por desespero. “A eutanásia é a morte por amor”, Corsário lhe havia dito. Meliande decupa tudo, passo a passo. Escolha cruel, escolha moral.

Luiz Carlos Oliveira Jr.


Setembro de 2010