ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ
Joel e Ethan Coen, No Country for Old Men, EUA, 2007


O chão é o lugar de onde brotam sangue, corpos,
dinheiro, pista, motivos para a trama de Onde os
Fracos Não Têm Vez
andar


Depois de uma série de episódios de extrema tensão, Llewelyn Moss (Josh Brolin) pára diante do quintal de uma mulher que o convida para tomar uma cerveja - e o instiga a algo mais - diante da piscina. É um diálogo aparentemente displicente, aparentemente um desvio, um respiro em uma trama que até ali seguia centrada em uma perseguição implacável. De súbito, entretanto, algo mais poderoso ocorre: um fade, recurso até então ainda não usado no filme, abraça a imagem e cria um tom de fechamento de capítulo, de mudança de etapa. Logo depois, em vez de Moss, nos daremos conta que agora acompanhamos o xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones). Vemos o homem da lei no carro, rumando justamente para o local em que estava Moss. Para logo depois encontrarmos o fugitivo, morto no chão, sob uma câmera semi-subjetiva que representa Tom Bell.

Curiosa operação em um filme até ali centrado em uma câmera de acompanhamento. Nossa referência vinha sendo Moss até essa ruptura. Era ele quem ocupava o lugar de protagonista. De súbito, esse posto sofre um abalo e é ocupado por outra referência, agora o xerife. É uma operação ainda mais curiosa se pensarmos que o filme até então seguia duas referências: uma, de certo modo narrativa, que acompanhava Moss e que servia de guia do filme, dizendo que o que avançava em sua história era o que fazia o filme avançar; a outra era mais tateante e acompanhava Anton Chigurh (Javier Bardem), o assassino que, sabemos, se dirige rumo a Moss. Chigurh é um assassino. Mas não é o que se pode chamar de serial killer. Ele não mata em série. Ele mata muito. Só isso. Sua matança não se ordena logicamente como a de um assassino serial. Ele não é um psicopata dotado de uma regra de matança. Ele quer matar Moss aparentemente porque foi contratado para isso. Mas nesse percurso, está pronto a matar tudo mais que encontrar pela frente - inclusive quem o contratou. É um homem determinado.

Palavra-chave, "determinado". Ao falar sobre Barton Fink (1991), aqui mesmo em Contracampo, propus que o cinema dos irmãos Coen é "marcado pela construção de sistemas, sistemas de cinema" e que nele se dá sempre uma operação em que "um personagem central se vê desafiado por sua incapacidade de lidar justamente com o sistema" criado pelos cineastas. Essa idéia de um "cinema de artifício" que parece central em suas obras é, em Onde os Fracos não Têm Vez, o elemento central da trama. De fato, este compõe, ao lado de Barton Fink e O Homem que não Estava Lá, a galeria dos filmes dos Coen sobre si mesmos, sobre os próprios filmes. Era surpreendente que o cinema dos Coen não tivesse feito até hoje um filme sobre um grande assassino. Seus personagens estão sempre atrelados a uma força maior que eles, uma força cósmica, que acaba por se confundir com as determinações estruturais dos gêneros nos quais os "sistemas de cinema" dos Coen mergulham.

Veja: há duas frases-chave em No Country for Old Men. A primeira: "What is he supposed to be, the ultimate bad-ass?", dita por Moss na cama de hospital a Carson Wells (Woody Harrelson). A outra, a mais determinante: "You can't stop what's comin", dita pelo velho Ellis (Barry Corbin), espécie de eremita amigo do xerife que apresenta sua tese com expressão e tom lacônicos. As duas falas são sobre Chigurh. O filme é.

A operação promovida pelos irmãos cineastas nesta obra é bastante complexa no que diz respeito a sua obra em geral. Desta vez, em vez de colocar seu personagem central como uma vítima de sua estrutura artificial, eles criaram - ou adaptaram do livro, que seja - um personagem que é, ele mesmo, a estrutura. Chigurh é não apenas o "ultimate bad-ass", o supremo detonador. É ainda "what's comin", aquilo que não se pode parar, que não se pode evitar. Como pura-forma, puro personagem, Chigurh assume um caráter simbólico forte: ele é a determinação, ele é... a morte. Chigurh é o emissário da estrutura, ele está a serviço daquilo que é incontornável para os personagens. Não à toa, claro, ele mata com uma carabina com silencioso - suprema contradição de uma arma nada discreta em seus efeitos, mas que se quer discreta em sua "aproximação". E mata ainda com uma arma de ar comprimido, um sistema que não é de assassinato, mas de abate de gado. Isso confere um forte caráter banalizador a suas vítimas e se soma ao mecanismo da moeda - a escolha das vítimas em um cara-ou-coroa, ícone maior do "tentar a sorte" - como forma de torná-lo alguém a serviço de "algo maior".

O mais curioso é como o roteiro, a montagem e, sobretudo, o olhar do filme, criam todos uma tensão entre uma trama profundamente imanente e uma metáfora de transcendência. Porque, no fundo, todo o filme é uma espécie de ensaio sobre a determinação, sobre o inexorável fim de todos. Nesse sentido, fecha-se o ciclo da mudança de protagonista. O xerife Ed Tom Bell é o old man para quem não há mais chão, para quem não há mais território a percorrer. Ele é, um bocado como os personagens de Clint Eastwood vêm sendo, como já disse, um homem idoso em busca de sobrevida. E é ele que vive dificuldades com a estrutura proposta pelos diretores. O que torna o filme peculiar na obra dos Coen, entretanto, é que o espaço de artifício e determinação que eles escolheram como lousa é, agora, existencial. Morrer é aquilo que se dobra sobre os personagens. E diante dessa determinação, o que se coloca é um personagem que conhece já todos os atalhos da vida, que já até se entedia com ela. Não há mais nada sobre o chão que o surpreenda. Sua perplexidade com o mundo que já não é mais o mesmo, que é capaz dos maiores horrores, o compõem como um olhar de estranhamento para uma estrutura em precipício. É como se o filme fosse uma intensificação, uma forma de fazer o homem se lembra de que o inexorável virá.

Por isso mesmo, a estrutura montada como um filme de percurso é central. Centrado no deslocamento, apesar disso, No Country for Old Man não é um road movie. Não segue a metáfora da estrada como conjunto de estações nas quais os personagens se deparam com interregnos simbólicos. Em vez disso, é um walk movie, um filme em que o essencial é os personagens se moverem. E em uma operação de artifício. Por exemplo, em nada surpreende o diálogo absurdo de Llewelyn Moss e sua mulher Carla Jean (Kelly Macdonald): "Se eu não voltar, diga a minha mãe que a amo"; "Sua mãe está morta, Llewelyn"; "Então eu mesmo direi a ela". Sim, poderia ser apenas uma maneira engraçadinha de o marido deixar claro para a esposa que ele corre risco. Mas é claramente mais que isso, é certamente uma demonstração de que a estrutura artificial é o que dita a lógica do filme.

Sim, há um quê de western contemporâneo em Onde os Fracos não Têm Vez. É o que dá a sustentação formal para o artifício. Regras de gênero são as grandes parceiras dos Coen em suas empreitadas. Temos aqui, então, o "velho truque" da maleta de dinheiro perdida - os próprios Coen já a haviam utilizado em outros momentos - e encontrada por um homem comum, o que o tornará alvo de uma perseguição. Mas essa perseguição viria de um jeito ou de outro. A morte viria de um jeito ou de outro. A maleta no filme não é a justificativa para Moss ser morto. É a justificativa para ele querer viver. O ponto fora da curva nessa história é deixar de ser vítima de Chigurh. O diferente é a não aceitação da morte. E, supremo jogo simbólico do filme, a opção por não morrer é uma opção por também matar. A atitude dramática do filme é a da criação de Moss como caubói, como alguém disposto à luta.


A atitude de se erguer contra a morte é a atitude
de estar pronto para matar, na construção de um
caubói estritamente lógico


Este é um western, então, em que o duelo supremo não será visto - dele veremos apenas o resultado, se considerarmos que ele corresponde à luta final entre Moss e Chigurh - ou no qual o duelo supremo será travado sem tiros - se considerarmos que ele corresponde à seqüência em que o xerife e o assassino quase se cruzam.

Mas talvez o duelo supremo do filme seja mesmo aquele entre Chigurh e... Carla Jean. Isso porque ela é aquela que não admite a arbitrariedade absoluta da estrutura. Não, em vez de objetar a morte, ela a aceitará. Mas ao acaso, o cara-e-coroa, ela não se curvará. É preciso que seja pessoal, que ele tome a decisão sobre a morte assumindo responsabilidade. Esse é o grande oponente do assassino, a distância entre ele e o que há de maior e que nele manda. Nessa cena, inclusive, Chigurh aparece transformado, algo que vai se construindo ao longo da projeção: ele vai perdendo o ar cool - marcado pela voz macia, pelo sotaque estranho que, por mais que saibamos a origem do ator, não permitirá que o personagem seja identificado como tendo origem, pelo corte de cabelo de vizinho esquisitão de filme, pelas óbvias roupas pretas - e vai se desmontando, se descarnando, até aparecer nesta cena de maneira absolutamente cadavérica, desumanizada. Nesse sentido, este talvez seja o grande filme em que a morte vira personagem. É aquele em que, ao assumir um duplo estatuto, daquele que mata e daquele que é a própria determinação de matar, cria um grau de complexidade na lógica da película que raramente esse recurso já produziu.




Chigurh em seus dois extremos, como todo-poderoso
senhor dos destinos (alto) e como desafiado pela
lógica de Carla Jean, o personagem determinado não consegue lidar com o lado de fora da determinação


O que conduz para a economia imagética do filme. O que se vê é a utilização de uma visualidade de clarões. O céu e, mais que isso, sua relação com o chão é sempre muito determinante. O firmamento é sempre um horizonte de luminosidade excessiva - inclusive à noite, quando nele veremos raios, holofotes, tiros, formas de cegar. Há algo de luciferiano em Chigurh. A comparação feita entre ele e a peste bubônica por Carson Wells não é puro jogo de retórica. Ele é efetivamente uma praga, uma praga de dimensões bíblicas. E o chão não é um espaço onde se anda apenas. É um lugar em que se encontram coisas. Tudo no filme são pistas, são achados. Por isso mesmo, a imagem que se transformou em ícone da obra é a do chão pedregoso e seco coberto por um rastro de sangue. Do chão brotam corpos, do chão brota dinheiro, do chão brota tudo aquilo que fará os personagens mudarem de lugar. E o céu, por sua vez, é o espaço que tudo vê, que está em todo lugar, que pouco muda (não à toa, talvez a imagem mais sintética do filme esteja fora dele, esteja no cartaz, em que vemos os olhos de Chigurh orwelianamente no firmamento, a observar Moss que corre). Daí os Coen - mais uma vez com Roger Deakins - oferecerem constantemente o horizonte ao olhar - e, não raro, as costas dos personagens que para longe olham. É com esse tipo de olhar que se pode ver o chão e o céu. E daí o contraplano ser sempre esses olhares "ao longe". Os do xerife são os principais. Mesmo dentro de uma sala, ele olha sempre para o horizonte.






O horizonte é o que se dá aos olhares, permitindo
que céu e chão estejam em vista; no contraplano,
os olhares ditam os caminhos e os desafios lógicos

A cena final, então, é o supremo exercício desse mecanismo. Não há outro elemento visual senão a imagem do olhar de Bell. Ele descreve dois sonhos, mas do primeiro ele se lembra pouco. Recorda-se apenas que ele envolvia dinheiro que ele o perdia. No fundo, os dois são o mesmo sonho. Ambos com seu pai, que é, no sonho, mais novo que ele é hoje. E, no sonho, o pai faz com que ele retorne ao passado. Essa cena faz par com outra célebre dos Coen, a da mulher na praia de Barton Fink. Nela, o escritor vê uma jovem deitada na areia em uma pose idêntica à da foto que ele via todos dos dias pregada na parede de seu quarto de hotel enquanto tentava sem sucesso escrever seu roteiro. Assim como passado e presente da história se sobrepõem ali naquele momento praiano, aqui também parece que o filme dá uma volta sobre si. Ser mais velho que seu próprio pai, um pai que provoca um retorno ao passado, estar em busca de um dinheiro que se perde nesse retorno ao passado, atravessar espaços. Tudo ali remete para o "algo maior" que pulsou no filme todo o tempo. Mas há sempre algo de não dito em todas as coisas. Não sabemos de fato a motivação de Chigurh. Não sabemos de fato qual é o plano de Moss. Não sabemos quem, afinal, é Carson Wells e porque ele promete tanto e nada consegue cumprir. Não conhecemos muito da lógica do bandido que fica em um escritório e é executado por Chigurh. E se somos retirados do discurso pelo corte seco que encerra o filme é para que nada mais seja dito mesmo. Fica claro ali que a mecânica do filme opera - como de hábito nos Coen - por uma redução ao absurdo, mas que é sustentada por uma seqüência tão frenética que evita o reconhecimento do absurdo. Mais que frenética, aliás, ela é aparentemente lógica, uma vez que segue regras - de cinema, ora. Essa redução ao absurdo e esse interdito do debate - pelo próprio Chigurh, que suborna o menino, para não ter sido visto ao sofrer um acidente - e ser, ele também ameaçado pela possibilidade de morrer. O centro do cinema de artifício será sempre um acobertamento da lógica interna: não é que não haja nada a se dizer. Não há é como dizer fora de sua mecânica.

Alexandre Werneck