DIA DE FESTIVAL
Diário de bordo dos editores no Festival do Rio

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Sexta-feira, 06 de outubro de 2006

O Festival do Rio chegou ao fim mas nossa cobertura ainda vai ficar por um tempinho, seja porque alguns – diversos – textos prometidos ainda estão para chegar, seja porque ainda tem repescagem e a chance de alguns comentários de última hora, e ainda por alguns juízos de conjunto que o fim de um período como esses, vendo e pensando cinema durante as vinte e quatro horas do dia, permite. Mas fiquemos por enquanto com os comentários do último dia de filmes. Em A Terra Abandonada, de Vimukthi Jayasundara, ajuda conhecer um pouquinho o pano de fundo da conturbada história recente do Sri Lanka, país com uma história de vinte anos de guerra civil. O filme utiliza um espaço desolado, amaldiçoado (Forsaken Land é o nome do filme em inglês) para evocar o estado de espírito de todo o território. O filme consegue alguns bonitos resultados, mas no geral funciona como aquele mesmo cinema recheado de tiques de "cinema artístico" que povoam o world-cinema que costuma estar presente nos festivais internacionais. Um lirismo fácil, situações soltas, fotografia vistosa e rapidamente o filme desanda, e enquanto os planos duram, duram, duram, a gente pensa nas coisas urgentes que tem que fazer depois do Festival. O pensamento vai longe. Era uma dessas apostas fortes do Festival – além do prêmio da Caméra d'Or em Cannes, que geralmente não conta muito, o filme teve elogios em
jornais bacanas e ganhou comentários muito positivos de Kent Jones, um dos melhores críticos americanos hoje – que não se confirmaram. Como, aliás, o Caméra d'Or desse ano, 12:08, Leste de Bucareste, em que a inspiração se esgota com alguhns poucos minutos e depois vira Zorra Total voltado para o público cult. Em seguida, ali onde não esperávamos tanto, vemos um Jafar Panahi em plena forma com Fora de Jogo, em que o jogo de futebol que daria a classificação ao Irã para a Copa do Mundo é o ponto de partida para um questionamento sobre as interdições da sociedade, aqui objetivamente dirigidas às mulheres, e como os mecanismos de poder se exercem e se perpetuam à revelia do desejo e da índole de seus executores. O parâmetro de Panahi, ainda e sempre, é Kiarostami, mas em seus melhores filmes ele sempre leva a estética kiarostamiana a um afrontamento político mais direto com o regime. E o que dizer do momento de epifania final, em que a comemoração pela classificação iguala a todos e suspende a culpa? Talvez seja meu momento preferido de todo cinema de Panahi – até então, era a seqüência close-upiana de O Espelho em que som e imagem se desarticulam. Em seguida, Palácio de Verão, quinto longa-metragem de Lou Ye, que virou diretor-revelação do cinema chinês com O Rio Suzhou e agora faz tudo para perder o título. Seu talento não foi confirmado com Borboleta Púrpura, e Palácio de Verão pode ser um filme simpático, bonito em momentos, mas é um filme tão frouxo esteticamente que até chega a dar dó. Confiança exagerada em jump cuts e câmera instável, reiteração de cenas de sexo filmadas sem maior gosto e sempre da mesma forma e uma narrativa que não se arranja muito bem com as passagens de tempo e com a atenção aos outros personagens que não a protagonista. Em seguida, claro, a cerveja da confraternização, com presença recorde de contracampistas numa mesa. Descanso merecido...

Quinta-feira, 05 de outubro de 2006
Camponeses rasgados e sujos, gestos pouco compreensíveis, a vida em seus aspectos mais primitivos, trabalhar para comer e ter abrigo. Estamos diante de um remake de A Balada de Narayama? Not really. Rapidamente a impressão se desfaz, e Mundo Novo de Emanuele Crialese se constrói através da busca de uma família camponesa italiana por um futuro melhor nos Estados Unidos, um país vislumbrado e marquetado como terra da fartura, em que animais e legumes ganham proporções agigantadas, uma espécie de Canaã dos tempos modernos. Primeira deficiência do filme: um contraste monumental entre a ignorância inocente dos matutos e a maldade dos aproveitadores ou o cientificismo dos aplicadores de testes. Relação entre humanidade vs. reificação meio primária, uma definição de "calor humano" e bondade meio clichezada (certamente já a vimos muitas vezes antes) e sem matizes. Segunda deficiência: uma enorme mão pesada que por vezes recai num inesperado academicismo. Mundo Novo sobrevive, então, a essas características tão desoladoras? Sim, definitivamente, porque apesar de toda carapaça oficialesca, do ritmo pesadão, do "tema nobre", Emanuele Crialese realmente tem o dom de usar a câmera para captar os sentimentos e os olhares dos personagens, e o faz de forma poderosa, rompendo a armadura de elefante branco que ameaçava se cristalizar sobre o filme. Outro cineasta que nos últimos filmes vem tendo que lidar com a síndrome do elefante branco é Martin Scorsese, e nessa negociação entre espetáculo de grande estúdio e estilo pessoal fez dois filmes apaixonantes na proposta mas irregulares em sua realização, Gangues de Nova York e O Aviador. Confesso que eu tinha muito medo de Os Infiltrados, e achava que poderia ser a capitulação definitiva de Scorsese à grandiloqüência unanimista à George Stevens. Mas nada disso. Em Os Infiltrados, o gênero vem se reinscrever de forma decisiva, e dá uma pulsação vibrante que me parece bem superior à de seus dois últimos filmes. Pode-se torcer o nariz com certos diálogos espertinhos que jogam pra galera, mas o filme consegue criar uma atmosfera de tensão que me eletrizou do começo ao fim, bem mais que o bom Infernal Affairs de Andrew Lau, o original de Hong Kong no qual Os Infiltrados se baseia. É sabida a paixão que Scorsese tem pelo sistema de estúdios da Hollywood clássica, e o amor que ele tem pelos cineastas que conseguiam imprimir sua assinatura mesmo que eles não pudessem escolher os roteiros que filmavam ou os atores que seriam as estrelas. Só que Scorsese começou a fazer filmes em outra época em que a configuração artesão/cineasta não se dava mais de forma tão cabal, e em que a própria economia do gênero já tinha sido desconsolidada e de certa forma, esgotada ao longo da década de 60. Daí refilmar Cabo do Medo, daí fazer filmes estrelados por DiCaprio, como uma maneira de se autodesafiar e aceitar-se nas mesmas condições desses diretores de uma época adorada. Me parece que Os Infiltrados é o primeiro filme que realiza a contento essa tarefa, porque, quanto mais Scorsese parece se esconder atrás da agilidade e da eficiência narrativas, da ausência de estilo pessoal, mais ele se mostra em suas marcas registradas (uso de música, por exemplo) e sobretudo na atmosfera criada, nos instalando num clima de paranóia urbana e um quase total descontrole sobre como agir, dado que a intervenção das coisas sobre nós é maior do que a intervenção que podemos ter sobre as coisas (não seria essa característica algo que perpassa toda sua obra, acompanhada do desejo, sempre frustrado, de ainda assim conseguir controlar tudo?). Não sou um scorsesesmaníaco, nunca fui, mas Os Infiltrados me pegou de jeito. (RG)

Quarta-feira, 04 de outubro de 2006
Ótimo entrar num filme de festival em que você não sabe nada além da nacionalidade e da temática, não tem nenhuma referência, jamais ouviu falar do título ou do nome do diretor. Ótimo? Peraí. Neve... criancinha... filme sensível... trilha sonora de pianinho... efeitos devastadores da Segunda Guerra na vida familiar de um grupo de pessoas... imigração forçada... trauma infantil... mãe boazinha e madrasta malvada... mise-en-scène que faz Ron Howard parecer Otto Preminger... Entre o zZzzZzz e a porta de saída, preferi a segunda, e essa é a história de por que Minha Vida Sem Minhas Mães, filme finlandês de Klaus Härö, não terá nem pílula na revista. Aproveito o tempo livre para fazer compras, reabastecer os DVD-Rs, comprar alguns DVDs (Cassino e Spartacus, ambos em edição de colecionador, vinte merréis cada um), e em seguida rumo ao Palácio, onde vejo pela primeira vez o excelente Eletrodoméstica de Kleber Mendonça Filho e revejo o igualmente belo Eu Me Lembro de Edgard Navarro. O Kleber, creio, todo leitor da revista conhece pelo quadro de cotações, e também pelo site Cinemascópio. De filme em filme, comendo bem pelas beiradas, ele vai se transformando no melhor curta-metragista brasileiro da década, pelo menos até agora e até prova em contrário (pois há alguns contendores que brigam dignamente pelo "título"). Eletrodoméstica fala de tédio, de vida cotidiana e regrada, do poder dos objetos técnológicos sobre nossas vidas, mas é sobretudo um filme que faz delirar tudo isso retirando a transcendência a partir do prosaico. Alain Bergala fala do agenciamento kiarostamiano, de acoplamentos que permitem que se ultrapasse os obstáculos. Aqui, a mesma coisa: o aspirador de pó deixa de aspirar o chão e aspira a fumaça de um cigarro de maconha (afinal, dona de casa não pode dar bandeira para os filhos), a máquina de lavar se transforma num vibrante parceiro sexual. OK, a notícia não é nova, o filme já circulou por uma série de festivais, mas eu perdi todos e só vi agora. Além do mais, é tão raro ver curtas-metragens realmente bons no Festival (há sempre exceções, claro, como A Miss e o Dinossauro 2005 e o filme de Allan Sieber, mas a seleção do Festival se esmera em trazer para o espectador obras inassistíveis a cada ano) que a simples aparição de um deles já é motivo de destaque. Em seguida, a sessão continua entre a moralidade e a transgressão com Eu Me Lembro, belíssimo filme memorialista de Edgard Navarro, conjugando o sentimental e o anarquizante, o libertário com as agruras familiares, a adorável indisciplina infantil com a necessidade do crescimento ("Quero crescer para fazer tudo que é proibido", diz o personagem de Guiga). Um filme que acha seu ritmo no tranco e nunca mais abandona, maravilhoso, passando de memória em memória com desenvoltura e sem a necessidade das colagens atenuantes do "bom tom". Um lirismo apaixonante ("Foi minha primeira decepção religiosa", fala Guiga quando vê que pelo vidro fosco, quebrado por uma pedra lançada de estilingue, existe apenas o quintal da vizinha, e não a casa de Deus, como escutara de sua irmã), uma índole que foge de qualquer parasitismo "histórico" (ou seja, estamos diante de um território totalmente diferente dos Zuzu Angels da vida) e uma sensibilidade distintiva transposta para o cinema com talento e rigor. É o meu filme brasileiro do ano. Num ano que ainda tem Crime Delicado e O Céu de Suely, a briga é bem boa. Em seguida, vi a nova papagaiada de Patrice Chéreau, Gabrielle, em que a provável maior qualidade do filme, a fotografia de Eric Gautier, era estragada pela exibição em digital de uma matriz pra lá de vagabunda. Se a mise-en-scène já parecia a de um telefilme metido a besta, a exibição em vídeo faz parecer que estamos vendo uma daquelas soporíferas minisséries do Eurochannel. Em seguida, Os Anjos Exterminadores, filme misterioso que se arroga e cumpre o desbravar de um terreno pantanoso e controverso, a relação entre desejo sexual feminino e transgressão, e ao mesmo tempo a conseqüente questão da representação do sexo no cinema. O filme usa com astúcia algumas facilidades estilísticas que aproximam o filme de um pornosoft (trilha musical vagabunda, iluminação idem, protagonista canastrão) mas o questionamento do filme vai muito além do que simplesmente mostrar duas ou três moçoilas se pegando. Belo filme, espécie de companion piece de Coisas Secretas – mas talvez, e nesse momento é o que me parece, melhor do que ele –, e também, a seu jeito, um filme extremamente perturbador ao traçar as relações entre prazer e ridículo, gozo e transgressão, tabu e sanidade, sedução e mentira e uma série de outras chaves que o filme insere meio que sub-repticiamente na intriga. (RG)

Terça-feira, 03 de outubro de 2006
Bons tempos em que a dúvida insistente de um filme era se um homem e uma mulher tinham se encontrado no ano anterior em Marienbad. Esse ano, a insistente questão, levada às raias do insuportável, é saber se houve ou não gente na praça de uma cidadezinha da Romênia antes ou depois de 12:08. Dependendo da resposta, vai ser confirmada ou não a existência de uma revolução que se anteciparia à simples continuação dos festejos começados em outras cidades a partir da viagem de Ceausescu para fora do país. A maneira como 12:08 Leste de Bucareste realiza essa "investigação" para mostrar o absurdo da questão da nova independência do país é até simpática, mas esse lance de filmar um simples episódio para mostrar o absurdo total de uma situação já foi feito inúmeras vezes antes (exemplo: Terra de Ninguém de Danis Tanovic), e revela sinceramente uma apreensão muito cômoda e confortável de um "tema grande", claro, posando de "crítica" a um estado de coisas. Mas o pior de tudo é a forma como o filme ultrapassa muitas vezes a simples caricatura para tirar umas risadas fáceis do espectador, sobretudo no programa de televisão que ocupa a segunda metade do filme. Em seguida, salva o dia Exiled, belo filme de Johnnie To (que alterna sua grafia o tempo todo com "Johnny", então fica difícil estabelecer um padrão), uma pistol opera evocativa dos filmes da década de 60 de Seijun Suzuki ou da trilogia dos dólares de Leone, claro, vertidas ao ultraestiloso e carregado jeito-Hong Kong de filmar. Quem já viu Breaking News, Fulltime Killer ou Eleição sabe que To é um cineasta que não se contenta com as formas mais convencionais de transpor uma história para a tela. Ao contrário, a história é apenas um fio de atenção para o balé de imagens a ser criado. Nesse sentido, o filme do Festival que mais se compara com Exiled é Dália Negra, de Brian De Palma, em que a narrativa visual segue em paralelo com – e, no caso de Brian De Palma, funciona até contra – a historinha a ser contada. Num debate sobre cinema contemporâneo no começo do ano, mencionei uma separação dos cineastas de ação entre cineastas do estático (em que o quadro é mais importante do que o movimento), como Tarantino, King Hu ou Sergio Leone – ao qual acrescentaria tranqüilamente De Palma e Melville –, e os cineastas cinéticos, em que o movimento transborda a limpidez do quadro, como Chang Cheh, Tsui Hark e Robert Rodriguez. É um cinema menos "elegante", em que o equilíbrio e a harmonia contam menos que a velocidade das ações filmadas, e essa própria instabilidade do quadro em conter as ações faz com que os filmes ganhem, e muito, em fruição. Johnnie To está definitivamente entre os cineastas cinéticos. E é tranqüilamente um dos melhores realizadores de gênero hoje no mundo. Dia seguinte, vou à Barra para continuar o encanto com Juventude em Marcha, filme que se conquista e sobre o qual não se pára de pensar com facilidade. Em segunda visão, fica ainda mais impressionante a construção visual do filme, e como cada imagem mantém seu mistério, com sua pouca luz, seus enquadramentos complexos, sua duração, o ritmo de seus planos. E fica ainda mais clara a complexidade da organização conceitual, em que o realojamento de uma favela para um novo bairro evoca possíveis relações com a transição de Cabo Verde para Portugal, com a hipótese de se sentir estrangeiro para sempre, deslocado pela questão da nacionalidade ou pela classe. O filme de Pedro Costa é em muitos aspectos um filme de fantasmas, de espectros que persistem, de sombras móveis, ma ao mesmo tempo não há nada de imaterial no filme, pelo contrário. Pela duração dos planos, pelos enquadramentos, pela iluminação, temos a sensação contrária, a de uma materialidade forte, um contato quase direto, "não filtrado", com as pessoas e as coisas. Em seu maravilhoso livrinho sobre Abbas Kiarostami, lido na primeira semana do Festival, Alain Bergala indaga: "O que é um autor verdadeiro? Não é um cineasta que impõe suas obsessões a sua obra, mas alguém que acaba por encontrar suas imagens obsessivas no mundo sem mesmo ter procurado por elas, como um presente que se ganha do real". Ele continua: "Uma tal chance – encontrar por acaso seu sujeito de predileção na realidade – se merece. Essa graça só pode advir a um cineasta que crê num cinema mais forte que seu próprio controle". Essas palavras cabem perfeitamente a Pedro Costa e a Juventude em Marcha, filme do Festival que, até agora, mais se aproxima da epifania kiarostamiana do real, aidna que não tenha relação direta ou indireta, a propriamente dizer, com a estética de Kiarostami. Terminado o livro de Bergala, editado na coleção "Les Petits Cahiers" da editora dos Cahiers du Cinéma, e tendo visto Juventude em Marcha, é a vez de retomar, mesmo porque não tinha lido inteiro, um livro sobre Cézanne, um pintor que a partir de seu ideal de fidelidade e por seu estilo particular de pintura, também almejava um contato bruto, originário, com a materialidade das coisas. Daí termos hoje, além de uma "foto do dia", uma "tela do dia". As artes se comunicam. (RG)

Segunda-feira, 02 de outubro de 2006
Domingo de eleição, domingo de poucos filmes. Assim foi o dia de ontem para mim. Só saí de casa à noite, para assistir ao simpático filme romeno, 12:08 Leste de Bucareste. Simpático pelos belos momentos de comédia, e também pelo jeito com que filma personagens fracassados e espaços decadentes (sem miserabilismo, sem falsas distâncias). A revolução de dezembro de 1989 aconteceu ou não aconteceu na pequena cidade em que eles vivem? Essa pergunta é refeita incessantemente no programa de TV que ocupa praticamente toda a segunda metade do filme. A fotografia da praça deserta, compondo o cenário de fundo do estúdio, parece ter essa resposta. Num plano arriscado, a câmera se fixa na foto e o filme põe realmente em risco o que construía (mas os planos dos postes de luz se acendendo recolocam o filme nos trilhos). Demorei a embarcar na proposta do diretor Corneliu Porumboiu, mas comecei a gostar do filme quando, a um só tempo, finalmente achei uma cena engraçada e percebi que havia um conceito mais forte do que eu imaginava por trás daquele mini-painel de anacronismo e derrota social. Falo da cena em que a bandinha toca uma música latina no estúdio de TV, para a irritação do diretor da emissora, que pede que toquem uma música romena. A câmera então faz o contraplano, mostrando o outro lado do estúdio, e fica de costas para a bandinha enquanto é tocada a música romena. Daí em diante começou um filme interessante para mim. Depois de 12:08 Leste de Bucareste vi Backstage, de Emmanuelle Bercot, drama musical que tem seus momentos. Aguardem minha crítica. (...) Mas eu gostaria mesmo é de falar um pouco sobre um filme visto no sábado. Flandres, de Bruno Dumont, que já está muito bem analisado no texto da Tati Monassa, começa parecendo ser mais do mesmo, mais da mesma paisagem, da mesma violência latente, do mesmo apagamento de expressões, do mesmo choque entre a animalidade pura e a aura quase mística de seus personagens, enfim, mais do mesmo Dumont dos filmes anteriores. O universo dele é solo material: pés filmados em detalhe enquanto pisam o chão, sons captados do ambiente em primeiro plano, agredindo o ouvido, sobrenaturalismo dos gestos e das paisagens. Mas é também terreno simbólico, mais precisamente cenário do apocalipse bíblico. Quando o rapaz vai para a guerra, e aparece de cabeça raspada, percebemos a grande influência de Dumont para realizar este filme, o que apenas se confirma na cena seguinte: Flandres retoma toda uma seqüência de Nascido para Matar, de Stanley Kubrick, e a interpreta segundo a forma-robô do cinema de Dumont. Lá onde Kubrick havia realizado seu filme-cérebro (como o definiu Bill Khron), Dumont tenta filmar eliminando o pensamento, como se o projeto exigisse um olhar estritamente pulsional, uma certa crueza ou brutalidade imanente. Mas não se filma um estupro como se filma um chão repleto de folhas secas, ao menos não sem escapar da hipocrisia. O paralelismo entre o cenário de guerra e a cidade de onde os soldados saíram, e a afirmação de que os espaços se equivalem, não traz 1/20 da força de O Franco Atirador, de Michael Cimino. Dumont, que muitos comparam a Robert Bresson desde A Vida de Jesus, na verdade é o contrário dele: Bresson dava a um radinho de pilha ou a uma flor murcha a mesma vida que dava a seus "modelos" (como chamava os atores), enquanto Dumont esvazia a vida de tudo, desertifica o mundo e seus seres. (LCOJr.)

Domingo, 01 de outubro de 2006

Dia de eleição, e surge uma bela novidade: o diretor de Eleição, Johnny To, terá seu mais novo filme, Exiled, exibido no lugar de Sem Gás, Sem Rumo, hoje, na terça e na quarta-feira. É Estação Botafogo 2, então corram logo. Dois dias sem escrever nesse diário, e dois leitores escrevem comentando a nossa cobertura. Wellington Liberato pede comentários sobre os filmes da Première Brasil, em especial sobre O Cheiro do Ralo. Feliz ou infelizmente, ninguém viu o filme do Heitor Dhalia, que, sim, recebeu diversos elogios, mas ao mesmo tempo muitos comentários reticentes ou inteiramente negativos, como o de um professor amigo meu, de gosto impecável, que saiu no meio do filme porque não agüentava mais a estética e a adaptação, que segundo ele fez o filme virar infanto-juvenil, da obra do Mutarelli. E, convenhamos, quem viu Nina não pode ser culpabilizado por fugir do novo filme de Heitor Dhalia. Quanto aos outros filmes, já temos vários comentários na página de críticas. Quanto a Antonia, exibido ontem, fico bastante dividido. O filme encanta muitas vezes, mas ao mesmo tempo é muito pouco coeso, o timing é apressado demais, por vezes a ficção se ancora demais a motivos previsíveis – a dissolução do grupo, sobretudo. Mas é um filme vivo (como tudo que a Tata faz, aliás). E isso conta bastante. Já outro leitor, o Fran (não o Mosquera), elogiava a cobertura do diário e pedia comentários sobre Juventude em Marcha. Bom, já temos o meu texto e temos também aqui os comentários do Júnior. Ontem, o destaque negativo absoluto é Enquanto Isso, um filme idiota do Diego Lerman (que tinha feito antes o interessante Tão de Repente) que basicamente copia os enredos multiplot de acavalamento de situações constrangedoras à maneira de 21 Gramas e Crash – No Limite. Bomba total. Em compensação, The Host salvou o dia, num filme multigênero total, um hibridismo que só os coreanos parecem hoje saber fazer, um filme que casa comédia, acidez política, drama, cinema fantástico num todo coeso, delicioso de se assistir e extremamente bem filmado. Bong Joon-ho já tinha impressionado em Memories of Murder, e The Host consolida seu nome como uma das figuras decisivas do cinema de gênero hoje no mundo. Talvez ainda seja cedo para dizer, mas Bong Joon-ho desponta como autor de maneira muito semelhante ao modo como John Carpenter e David Cronenberg apareceram no final dos anos 70, fazendo filmes de terror e ficção que iam muito além das implicações mais convencionais do gênero. (RG)

Sábado, 30 de setembro de 2006
Nossa dica do dia é Bamako, que hoje à noite passa pela última vez. Há uns dias eu havia prometido falar sobre o filme, mas acabei desistindo da crítica (Ruy e Raphael gostaram mais que eu do filme, e por isso "mereciam" mais escrever a crítica). Com o belo texto do Ruy já no ar, acrescento apenas umas coisinhas. Eu tenho quase certeza de que os multiculturalistas de plantão não devem apreciar tanto o filme. O deslocamento político que Sissako faz em relação ao hibridismo cultural e à fluidez de signos (pensar na cena spaghetti, ou nos meninos com uniformes de futebol do Kaká e do Batistuta) é de uma ordem que frustra a maioria daqueles estudos, tão eufóricos ao exaltar os dribles culturais que volta e meia emergem das mazelas africanas e terceiro-mundistas. Em Bamako, isso serve apenas para reforçar a idéia de opressão, de eterna colonização (a própria vizinhança é barrada na porta do "tribunal", não pode acompanhar o processo em que seu destino está sendo discutido), da posição ingrata que o continente africano ocupa no mapa social, político e econômico do mundo. Naquela cena em que um ancião levanta do meio do grupo de testemunhas do julgamento, pequena obra-prima dentro do filme, Bamako revela uma força subterrânea, que precisa se impor como estranhamento, como desvio radical de linguagem e de expressão do corpo. Não consigo ver aquilo como teatralidade: a voz, a entonação, o canto expressivo, a falta de legendas, a falta de mediação entre aquela linguagem e os códigos do dispositivo jurídico, tudo aquilo me parece de uma vida para além dos limites que o próprio filme tinha se colocado até então. O que o ancião "fala" só pode ser entendido por nós na medida em que não entendemos nada. Ele diz, e isso é de uma tristeza profunda, que a fala africana jamais será percebida pelos brancos como fala, mas apenas como tagarelice, lamentações indesejadas, ruído que interfere no bom andamento do processo regido por intelectuais e senhores da lei. Um povo condenado a cantar sua condição de opressão? Para que isso não se confirme, Sissako acredita ser necessário um esforço de reconstrução das próprias formas de entender aquele povo e sua relação com o mundo. (...) E ontem foi dia de Juventude em Marcha, de Pedro Costa. Simplesmente uma experiência sublime e aterrorizante ao mesmo tempo. Preciso rever o filme mais umas dua vezes só para tentar começar a entender a sua luz, ou ainda, a sua briga interna entre a luz e a escuridão (sem qualquer clichê expressionista nisso). Pedro Costa nos mostrou um continente desconhecido, podem ter certeza. Ainda falaremos muito desse filme por aqui. (LCOJr.)

Sexta-feira, 29 de setembro de 2006
Foram poucas horas de sono de ontem para hoje. A ansiedade é grande: Juventude em Marcha, de Pedro Costa, passa no Espaço Unibanco 3 às 14:15 e às 19:00. Estarei na segunda sessão, pois antes disso ainda pretendo ver Vagas Estrelas da Ursa, um dos filmes de Visconti que não dá para perder. A partir de hoje o festival entra num ritmo mais intenso, pois haverá em todos os dias, até a quinta que vem, ao menos um filme que deve ser visto agora, no festival, sob o risco de não mais poder ser visto em cinema. Pedro Costa hoje, amanhã Flandres e The Host, domingo 12:08 Leste de Bucareste (aposta de uma boa parte da redação que se entusiasmou com o romeno do ano passado, A Morte do Sr. Lazarescu, filme do qual eu fui um dos únicos a não gostar), segunda El Topo e Os Deuses Malditos (e Juventude em Marcha de novo), terça Os Anjos Exterminadores (Brisseau comprado não significa Brisseau a estrear) e Flandres de novo, quarta Zidane e The Host, quinta Um Casal Perfeito, Terra Abandonada, Fora de Jogo e Palácio de Verão... E outros que esqueci agora. Daqui em diante, teremos dias de Festival do Rio. Dias em que veremos filmes que realmente precisam de um evento como este para chegar até nós. Por falar nisso... E Find Me Guilty, do Sidney Lumet, será que entra em cartaz? Ou ontem foi a última chance de vê-lo em cinema por aqui? Caso as respostas sejam, respectivamente, não e sim, uma pena. Pois é um filmaço. A pergunta do Rodrigo de Oliveira ao final da sessão continua ecoando: como, depois de um milhão de filmes de tribunal, boa parte deles feita pelo próprio Lumet, o cara ainda consegue achar uma geometria de olhares e de enquadramentos tão especial, toda uma nova forma de construir o espaço-tempo de um julgamento? Find Me Guilty tem essa resposta na mise en scène. E traz alguns dos melhores momentos de comédia deste ano (afinal, trata-se de um filme sobre um gagster). É triste pensar que muitos desmerecerão o filme só por ter Vin Diesel como protagonista. Ele está excelente, provando que se sai infinitamente melhor que um Stallone, por exemplo, nessa passagem de resgistro (da ação truculenta para a comédia/drama). É torcer para que entre em cartaz. (LCOJr.)

Quinta-feira, 28 de setembro de 2006
Um filme que só passaria no último dia do festival, e que estava entre os mais aguardados por nós, substituiu ontem a sessão de meia-noite do Estação Botafogo 1. Um Casal Perfeito, de Nobuhiro Suwa, é um filme imperdível do festival, mesmo que não trate de uma obra 100% brilhante e incontestável – e seus detratores certamente surgirão aos montes. Na verdade, é tão fácil gostar como não gostar do filme. O diretor de M/Other encena uma ficção conjugal espelhada em modelos do cinema moderno ou do “pré-moderno”. O Desprezo (mais especificamente suas cenas entre quatro paredes) e Viagem à Itália, neste caso, foram os dois filmes que mais me vieram à mente – o modo digressivo como a narrativa caminha lembra muito a obra-prima de Rossellini, sobretudo na visita dela ao museu do Rodin. Valeria Bruni-Tedeschi e Bruno Todeschini interpretam o casal que, prestes a se separar, vai a Paris para o casamento de algum amigo. Eles são arquitetos, e desde os primeiros minutos estamos diante de um filme sobre a separação de um casal, bien sûr, mas também sobre arquitetura, sobre formas de habitação e de estetização do espaço. Os quadros compostos por Suwa ao lado da diretora de fotografia Caroline Champetier (que já tinha trabalhado com ele em H story) são de fato incríveis, uma geometria de interiores que recorta e restitui a vida do casal através de paredes, portas, espelhos, camas. A luz é também um recorte, quase nunca preenche o ambiente todo, sempre escolhe seus pontos de incisão e reserva um lugar para a escuridão. As formas de enquadrar e apresentar os lugares em que eles estão são formas de exprimir os sentimentos dos personagens: uma decupagem sensível do espaço. Há, por exemplo, aquele plano magnífico e angustiante, que termina com a porta que separa os dois cômodos do quarto do hotel fechada (ver foto ao lado). Eles estão hospedados no mesmo quarto, mas ele dorme em uma pequena cama improvisada e ela fica sozinha na cama de casal. Entre os dois, a porta que se fecha após uma briga. A câmera permanece fixa durante um bom tempo na porta, enquanto os dois personagens, um de cada lado do quarto, ambos fora-de-quadro, fazem sons em off, multiplicando a distância entre eles pelos dolorosos minutos do plano. Não apenas nesse, mas em cada plano do filme, Nobuhiro Suwa pensa uma forma sempre distinta de construir sua mise en scène do divórcio – entre um e outro personagem, logo entre um e outro compartimento do espaço, entre a luz e os rostos, entre o quarto e a rua, entre o casal e o mundo. Tudo conspirava no filme para o fechamento de um círculo perfeito sobre o casal imperfeito: a precisão dos planos, sua duração insistente, o rigor das composições, a iluminação extremamente calculada, tudo isso transformaria o filme em um aquário perverso, onde a ironia do casal-modelo que se desfaz de forma ordinária e sem grande explicação (pouco sabemos sobre a vida de casados que eles tiveram) seria recoberta por um filme-conceito, este sim, inquebrantável – o filme se alimentaria da situação, seria tão mais forte quanto maior fosse a fraqueza do casal. Mas antes que o problema do casal pareça única e exclusivamente endógeno, e antes que os personagens se transformem em marionetes bergmanianas, o filme se vê atravessado por linhas de fuga que estabelecem um tecido mais complexo. Em primeiro lugar, o trabalho dos atores afronta as paredes imóveis dos espaços fechados: ao contrário da estudadíssima composição dos quadros e da iluminação, as atuações modulam ao ritmo instável de suas improvisações. Se isso cria um disparate nas cenas com outros atores que não Valeria e Bruno, porque nem sempre as improvisações se equalizam, por outro lado é uma escapada importante em relação à rigidez da encenação. Em segundo lugar, as cenas fora do quarto do hotel, quando ele ou ela se encontram “ao acaso” com outras pessoas (ele e a recém conhecida, na cena do bar; ela e o amigo/namorado do passado distante, que reaparece, emblematicamente, no museu), são cenas de uma força inacreditável – as melhores ficções de interiores são assim: quando saem da sua rotina narrativa é de maneira decisiva. Da mesma forma que, dentro dos espaços fechados, volta e meia o plano se abre por uma janela, uma porta (os acessos à rua, ao fora, ao exterior) ou um espelho que redobra o espaço sobre si mesmo (o magnífico enquadramento na cena do restaurante, com a luz incidindo quase exclusivamente sobre Valeria Bruni-Tedeschi, e o espelho ao fundo reproduzindo as mesas ao infinito: o casal perfeito são todos os casais e nenhum ao mesmo tempo). Na plataforma do trem (ver também foto ao lado), o filme faz uma espécie de confissão, emocionante e perturbadora: ficar junto é impossível, dizer adeus também. Um casal como aquele não se separa, jamais. O que não quer dizer que fique junto para sempre. (LCOJr.)

Quinta-feira, 28 de setembro de 2006
URGENTE, URGENTE: quem estiver pensando em ir ver Luchino Visconti na Caixa Cultural vai se deparar com um piquete da greve dos bancários. Foi minha triste descoberta quando ia ver O Inocente nesta quinta às 13:00. É bom ligar antes para não dar com a cara na porta. (RG)

Quinta-feira, 28 de setembro de 2006
Revisto ontem, Bamako se revela uma verdadeira obra-prima. Mesmo com tanta falação, Abderrahmane Sissako cada vez mais mostra-se como um grande poeta lacônico. Em seguida, The Holy Mountain, de Alejandro Jodorowsky, que ganhou sabe-se lá por que o título de La montaña sagrada mesmo sendo um filme de língua inglesa. Foi minha verdadeira apresentação ao cinema de Jodorowsky, uma vez que eu só tinha visto Fando y Lis, que está longe de ser um grande filme. Fãs de Buñuel que ainda não atentaram para o fato: o filme é uma espécie de adaptação não confessada de A Idade do Ouro para a época do hippismo e da pop art. Grande poder das imagens, uma força icônica incomum, criando planos que seduzem, muitas vezes ao mesmo tempo, pela beleza e pelo desagrado que provocam. Em seguida, veio um desses momentos de improviso que sempre fazem a graça de um festival. Entro na apresentação de O Cheiro do Ralo, num Palácio 1 inteiramente lotado, com suas mais de 800 poltronas ocupadas e muita gente em pé. Selton Mello chora emocionado e agradece a oportunidade de ter feito a adaptação do livro de Lourenço Mutarelli. Com Almodóvar, Eastwood e Nelson Pereira dos Santos a gente aceita o desafio de ver o filme sentado no chão, mas assistir por duas horas ao novo filme do realizador de Nina não pareceu um bom negócio. Já que ninguém da Contracampo estava na sessão (pelo menos que eu tenha visto), o filme não deve constar no quadro de cotações, mas nosso ex-editor Eduardo Valente estava lá e sua cotação foi bola preta. Bruno Porto, mais bonzinho, deu uma estrela. Saio do Palácio e checo no Odeon, que estava com filme a programar às 21:30. "Qual o filme, Gilberto?", pergunto ao gerente e amigo. "Nenhum Corpo É Perfeito. O filme já vai começar, o diretor está apresentando". Não, obrigado. Vou correndo para Botafogo na Festival-highway em que se transforma o Aterro em época de Festival. Cinco minutos depois, desço do ônibus e vou correndo para o Espaço Unibanco, onde algumas pessoas, entre elas Tati Monassa, fazem cometários desencorajantes a respeito de A Fórmula de Peter Pan. Não, obrigado. Para ver um filme que só vai me dar dez minutos de respiro até o filme de Nobuhiro Suwa, à meia-noite, só se fosse muito bom. Entro então em A Segunda Noite de Núpcias, de Pupi Avati, no Botafogo 1. Foi a minha apresentação ao cinema de Avati, e agradeço se for também a minha despedida. Cada país tem o Sergio Rezende que merece. Por fim, vamos ao principal: Um Casal Perfeito, programado em caráter de emergência para meia-noite. Já tínhamos visto M/Other e nos apaixonado, mas até então, Nobuhiro Suwa nunca tinha tido qualquer de seus filmes exibidos publicamente no Brasil, festivais ou não. Um Casal Perfeito começa meio mal, numa estética do plano fixo e longo que vem se tornando uma espécie de novo academicismo cult dos filmes de festivais internacionais. Mas logo o filme desmonta a facilidade inicial de composição e se estrutura entre planos-conjunto fixos e closes de câmera na mão que fazem a partilha das lentas ações e dos turbilhões de sentimentos que avassalam os personagens. O filme trata de uma relação conflituosa, um casamento de quinze anos que chega a um impasse. Qualquer ocasião banal é motivo para um desentendimento, mas ao mesmo tempo eles são sentimentalmente incapazes de dar o último passo. Mais de uma vez o filme evoca Viagem à Itália de Rossellini (o filme anterior de Suwa, H-Story, é uma retomada de Hiroshima mon amour de Alain Resnais), e um pouco Cenas de um Casamento de Bergman. Poder dos silêncios, das sombras quase negras que tomam o quadro, dos momentos de indefinição. Iluminações delicadas em digital e enquadramentos de uma beleza complexa nos guiam e nos instalam pela tortuosa viagem entre separação e reconciliação que faz esse belo filme. Para quem ainda não se programou, o filme só passa novamente no último dia, em dois horários. É um desses filmes obrigatórios do Festival. (RG)

Quarta-feira, 27 de setembro de 2006
É curioso que uma mostra chamada "O cinema que reinventa a política" tenha acontecido na Maison de France poucos dias antes do Festival do Rio. Curioso porque, se há uma faceta que, chegando no meio do Festival, se torna cada vez mais insidiosa e determinante no contato com os filmes é essa idéia de reinvenção do político nos filmes, de como os filmes possibilitam um contato maior com as "questões da cidade" (política em grego não significa outra coisa) às quais os diretores se dirigem. Existe, naturalmente, a faceta mais convencional e batida dessa relação, o famoso filme de temática política, ficcionalização solene de temas importantes, do qual encontramos alguns exemplares em The Wind that Shakes the Barley ou As Torres Gêmeas (falo isso, confesso, sem ainda ter visto nenhum dos dois, apenas fragmentos de ambos). Mas o que nos interessa aqui não são esses filmes, mas aqueles que propõe ao cinema novas relações com a política, que estabelecem uma relação mais direta com os fatos da cidade (do país ou mesmo do continente), que a partir de uma determinada urgência do dizer reformulam a ficção e evidenciam um contato menos filtrado, mais brutal com as questões que tratam. Anteontem foi Bamako, ontem foi O Crocodilo, de Nanni Moretti. A pergunta que parece povoar o filme é: como fazer, a partir da política, algo que potencialize a ficção, como purgar um estado de coisas – no caso de Moretti, a Itália e seus últimos 30 anos dominados pela figura de Berlusconi – de forma que isso se preste à abertura de questões e não à resposta definitiva, professoral delas? Se um docudrama sobre Berlusconi seria um atestado de falência do cinema em relação à realidade (assim como em Aprile o documentário sobre as eleições é abandonado em prol de um musical), façamos um drama sobre a impossibilidade de fazer um filme. E, no caminho, joguemos na cara do espectador uma série de imagens de arquivo e reconstituições do político/bufão italiano em seus "melhores", mais vergonhosos, ditatoriais e patéticos momentos. O Crocodilo cria ressonâncias com alguns filmes brasileiros, do Blá-Blá-Blá de Andrea Tonacci ao personagem de Tarcísio Meira em A Idade da Terra de Glauber Rocha (que por sua vez também queria purgar seu país e sua relação com o mundo) e, ao mesmo tempo, tem o mesmo poder de Bamako em trivializar – e no limite, mesmo desqualificar – a solenidade com que os "temas políticos" aparecem. Neste jogo entre o trivial e o solene é que se exerce com mais força e pregnância a política nesses filmes. Voltaremos a isso mais tarde. Visto, também, As Leis de Família, belo e delicado filme de Daniel Burman sobre como um homem aprende a ser pai, marido e filho. A fascinação pela figura paterna faz lembrar O Abraço Partido, filme anterior do cineasta, mas o que mais encanta são os passos de um homem – advogado e professor de direito, que se leva a sério demais e revoga sem mesmo perceber todas as tarefas da vida familiar, em particular as que dizem respeito à criação do filho – em busca de uma harmonia familiar mais equilibrada e igualitária entre os papéis do homem e da mulher. Curiosamente, talvez seja esse o grande filme – ainda que o tema se insinue de forma sub-reptícia – sobre alienação do Festival. (RG)

Terça-feira, 26 de setembro de 2006
Bamako é realmente um belo filme. Falarei mais na crítica. Sobre O Céu de Suely, escrevi o texto que já está no ar. O filme é o meu predileto do festival até agora. Há até uma maior fragilidade em relação ao Madame Satã, uma coesão ligeiramente menor, mas ao final minha emoção era suficiente para derrubar qualquer suspeita de que haveria um uso estratégico e fácil de certos procedimentos estéticos. Vi também Pro Dia Nascer Feliz, filme com vários momentos muito interessantes. Uma coisa que se confirma é a cafonice do João Jardim. Em particular nas cenas em que a câmera passeia pelo espaço ao som de músicas dignas de reportagem do Fantástico, ou na cena em que a menina conta em off como matou a outra, e uma sucessão de planos “poéticos” mostra gotas de chuva, poças d’água (tangente visual muito da dispensável). Ele não chega a articular um discurso oposicionista redutor através da montagem, mas o filme fica sim se equilibrando sobre uma corda bamba, entre a aquisição de uma dialética forte e complexa e a absorção do material em simplismos frustrantes (a tomada aérea que vai da área nobre à favela e volta é sem propósito dentro do jogo bem mais sutil e inteligente que a montagem antes fazia). Se a platéia ri dos dramas existenciais das meninas ricas, após ter escutado as mazelas materiais e sociais dos estudantes pobres, isso a princípio não é induzido pelo filme. Agora, um fator a se pensar: o maior plano de depoimento do filme é o da cdf do colégio rico de SP. Ali a montagem não saltou adiante como fazia nos outros depoimentos. Será que ele levantou pra platéia cortar? (...) E ontem cometi minha primeira gafe do festival: Milena Kaneva, a diretora de Negação Total (documentário sobre a denúncia do trabalho escravo na construção de um óleo-duto em Myanmar – olha a ex-Birmânia aí de novo), tentava se comunicar com os funcionários do Espaço Unibanco sem sucesso. Após bancar uma de tradutor de improviso, entrei para ver o filme dela e dormi na segunda metade. Quando acordo, quem está sentada ao meu lado? (LCOJr.)

Terça-feira, 26 de setembro de 2006

Surgiu a primeira paixão coletiva da revista: é Bamako de Abderrahmane Sissako. Seus filmes anteriores, A Vida Sobre a Terra e Esperando a Felicidade já haviam sido defendidos com avidez por nossa equipe, e agora surge essa verdadeira surpresa. Surpresa não porque seus filmes anteriores não tivessem anunciado o surgimento um verdadeiro cineasta, mas porque Bamako envolve tantas questões sobre vida, arte, política, representação e mundo que é impossível ficar indiferente. A primeira coisa que eu falei quando o filme acabou foi que o filme redefinia, ou pelo menos ampliava a famosa frase de André Bazin de que o cinema era – e isso era um grande elogio – uma arte impura. Raphael Mesquita foi certeiro: "Me lembra um pouco Um Filme Falado, do Manoel de Oliveira. O Bamako é uma falação interminável, em que até mesmo os (personagens) envolvidos se cansam deste discurso já bastante batido e pisado, mas extremamente importante e necessário. No entanto, as grandes seqüências do filme, as que mais me emocionaram, são as do senhor sem dentes falando/cantando e a mulher que canta no bar, na noite, deixando rolar uma lágrima. E em ambas não há traduções (pois são desnecessárias). Eles falam na língua local e nós compreendemos. Tanto no Oliveira quanto em Bamako, os discursos (histórico no primeiro e político no segundo) são importantes (diegeticamente inclusive). Mas os grandes planos são "música" (literalmente). Essa contraposição funciona bem nos dois, causando um impacto emcional bastante forte". O que resta dizer é que existe uma ironia muito fina na maneira como o posicionamento de câmera evidencia uma irreverência de Abderrahmane Sissako com tudo que encena, certos enquadramentos que servem como gags visuais (os europeus brancos de toga falando em seus celulares enquanto alguns, negros, africanos, do outro lado da parede, exibem apenas suas cabeças, dissociadas do corpo pela linha do muro: o que mais dizer sobre privilégio da comunicação?) que tem um humor amargo, tão amargo quanto politicamente ácido. Um humor nascido do casual e que nessa casualidade lírica encontra a política, e isso tem a ver naturalmente com Intervenção Divina de Elia Suleiman, diretor palestino que é inclusive ator do filme-dentro-do-filme Death in Timbuktu, contracenando com Danny Glover. Volver ou Dália Negra são grandes filmes, mas de certa forma já estão estabilizados em seus patamares artísticos. Bamako é vivo, questionador, e opera um desequilíbrio potente e verdadeiro no panorama do cinema contemporâneo. Visto também Man Push Cart, belo registro intimista sobre um paquistanês e seu carrinho de chás e bagels, em que a visibilidade da câmera, filmando de perto demais, escuro demais, sem foco demais, sem visão geral das coisas, já dá toda a dimensão política do papel desse personagem marginal dentro da cidade de Nova York, tomada mais como espaço da confusão do que como um lugar das oportunidades. Já Alice me pareceu muita pompa para pouca polpa, um filme estiloso que começa como um estudo de personagem mas que aos poucos revela todas as suas afetações, utilizando certas obsessões de imagem da contemporaneidade já transformadas em clichês (paredes cheias de fotos perfeitamente alinhadas, aparelhos de televisão empilhados, câmeras de vigilância, etc.) e transformando a trama principal – a busca de um ator por sua filha de três anos que desapaceu em circunstâncias misteriosas – em mero joguete de um certo estado de espírito que, bem, não é exatamente original. Gilberto Silva Jr., o Gilbertão, manda avisar: "Não há dúvidas que em festivais é importante buscarmos a renovação do cinema, novos valores e coisa e tal. Mas verdade seja dita, quem está mandando bem são os velhinhos. Os filmes mais interessantes até agora vêm de cineastas já da chamada terceira idade. Então vejamos: Sidney Lumet, 82 anos; Robert Altman, 81 anos; Claude Chabrol, 76 anos; e o garoto Brian DePalma com 66". Em tempo: Abderrahmane Sissako fará 45 no dia 13 de outubro. (RG)

Segunda-feira, 25 de setembro de 2006
Muitas vezes o destino de um dia de festival é definido pela hora em que se acorda. Às vezes se acorda atrasado, cansado do esforço contínuo dos dias anteriores. Às vezes, acontece o contrário e se acorda mais cedo, por ansiedade ou simples nervosismo geral, adrenalina constante batendo no sangue. Hoje foi assim, e um dia que poderia começar às 12:00 com Bamako ou até 15:30 com Sedução da Carne começou às 10:30 com a cabine de imprensa de O Céu de Suely, de Karim Aïnouz. O filme é a comprovação – como se precisasse – do talento de Aïnouz, e a lógica de protagonista que se estabelece lembra a de Madame Satã: a intensidade da personagem principal desestabiliza a vida do lugar em que ela habita, e ela prova todos os gozos e as tristezas dessa situação diferencial. Raro talento para o intimismo, O Céu de Suely se inventa a partir do corpo de sua personagem, mais captando as intensidades do que ocorre do que propriamente narrando uma evolução. No entanto, o filme acaba encontrando algumas soluções fáceis, sobretudo na montagem, abusando um pouco das bruscas passagens dardennianas entre instante de espera e ato em marcha (como o corte da dança pré-sexual com o vencedor da rifa, "Careless Whisper" ao fundo, para o coito já em processo). Decididamente Karim Aïnouz pensa seus filmes, pensa em como se aproximar daquilo que vai filmar, como enquadrar, como filmar, e vamos admitir que isso já é algo que lhe dá uma posição de destaque no cinema brasileiro. Mas O Céu de Suely tem uma forma que parece nascer meio já pronta, independente do que existe a ser filmado. Pensa-se muito em Jia Zhangke, em Hou Hsiao-hsien, nos Dardennes, talvez até em Pedro Costa (um breve plano no breu que evoca No Quarto da Vanda), mas não se sente uma inteireza de propósito entre o timing de Hermila e o do filme. Em todo caso, essa é a percepção imediata de um filme exigente, que pede sem dúvida uma segunda visão. Vistos também: Acidente, de Cao Guimarães e Pedro Lobato, com muito interesse pela proposta mas uma indiferença quase total à realização (que está MUITO longe do acidental, e essa é sua maior deficiência); Pequena Miss Sunshine, peça ridícula de cinema americano metido a independente cuja mensagem é a mesma de uma música da Pitty: seja você próprio, mesmo que seja bizarro. Junte a isso uma intriga de família desfuncional on the road com humor feito a partir das excentricidades de cada um e você tem um daqueles filmes que fazem o sucesso do circuitinho cult mas são inapelavelmente desprovidos de interesse. Quem sabe em cinqüenta anos as pessoas vão ver Pequena Miss Sunshine e rir não das piadas, mas de como o filme é tosco, da mesma maneira como fazem hoje com um filme como A Múmia Azteca Contra o Robô Humano, visto em seguida, que não tem méritos cinematográficos maiores, apenas a curiosidade de que num dado momento numa dada época as pessoas tinham relações com certas imagens que hoje são impossíveis de existir. Talvez a solidão sentida a cada piada óbvia em que as pessoas caíram de rir seja também sentida por um espectador de sessão midnight daqui a cinqüenta anos numa mostra trash. (RG)

Domingo, 24 de setembro de 2006
Com a palavra, Leonardo Levis: "Ontem foi um dia de belos filmes, mas também um dia um pouco decepcionante. Minhas únicas sessões de inéditos foram de filmes esperados há meses: Volver e Black Dahlia.
Os dois são compostos de belíssimos enquadramentos, movimentos de câmera, etc. Volver, como era esperado, mistura bastante bem humor e drama, tem ótimas atuações, caminha perfeitamente nesse registro um pouco exagerado de realidade. Enfim, tudo que se espera de um Almodovar em forma. Black Dahlia tem seus planos virtuosos, algumas soluções cênicas geniais, uma reconstituição perfeita da década de 40, ótima atmosfera noir (as luzes da persiana nos rostos dos personagens por exemplo são fodas). Enfim, tudo que se espera de um De Palma em forma. Ainda assim, ficou faltando, nas duas obras, o que não se espera, o surpreendente, o assombroso. Não que os filmes sejam feito em piloto automático (pelo contrário), nem que o leque de possibilidades dos dois diretores seja reduzido (como o Ruy, por exemplo, considera o Tsai Ming-liang, apesar de eu discordar), mas nenhum dos dois busca algo além do conhecido, do sabido, do certo. E, nesse caso, tanto Almodovar quanto De Palma, já fizeram melhor. Depois de ver Black Dahlia e Volver, fiquei pensando em Alice e Man Push Cart. Dois filmes menos bem filmados, cheios de problemas, enfim, piores. Mas esses dois, ainda assim, me transmitiram bem mais coisas que os diretores consagrados. Há, neles, a tentativa de caminhar por um registro desconhecido, de mostrar as cidades de uma forma que não estamos acostumados, de procurar soluções inesperadas. Enfim, acho que isso que é legal no Festival do Rio. Saber que Almodovar e De Palma são gênios, mas preferir Marco Martins e Rahmin Bahrani".
Se toda a equipe de Contracampo concorda que Volver é lindo mas não siderante, e quase todos consideram Dália Negra da mesma forma, Find Me Guilty está enchendo os olhos de muita gente. É bom atentar para o fato de que o filme, apesar de ser dirigido por Sidney Lumet e ter Vin Diesel no elenco, não está ainda comprado para exibição nacional. Visto, também, Pro Dia Nascer Feliz, filme que dividiu as opiniões entre os muitos redatores que estavam entre a primeira e a segunda filas de um Odeon lotado. De minha parte, gostei um bocado do filme, que trata de muitas questões pertinentes, é muito inteligente em não fazer uso "dialético" dos registros de diferentes classes sociais (ao contrário de O Chamado de Deus, de José Joffily, que cai na controvérsia fácil), mas trabalha com seus personagens buscando um efeito um pouco fácil. Em todo caso, um filme encantador para professores e todos aqueles interessados de alguma forma na idéia de transmissão. Confesso que sou público-alvo desse tipo de filme. Voltaremos a ele de forma mais abrangente na crítica do filme, a aparecer nos próximos dias. (RG)

Sábado, 23 de setembro de 2006
Ontem foi um primeiro dia de festival atípico, o que se deu em grande parte pela programação dos filmes. Este ano não havia aquela escolha óbvia de início – como no ano passado, que era bater o olho na programação e dizer: “Ok, eu começo meu festival vendo O Mundo”. Está certo que havia O Leopardo no Odeon, mas só consegui sair de casa por volta das 3 da tarde, e o filme começava um pouco antes disso. Rumei para o Méridien (as credenciais estavam prontas, para meu alívio) e dali para o Espaço Unibanco em Botafogo. Clima ameno, com bastante gente mas sem a confusão e as filas que há três ou quatro anos davam a marca registrada do primeiro fim-de-semana do festival. Após retirar uma enormidade de ingressos, restavam-me duas horas até o filme da Doris Dörrie, A Esposa do Pescador, que na falta de outro melhor já havia sido escalado para dar o ponta-pé inicial. Para matar esse tempo, entrei na sala 1 do Unibanco, onde estava para começar o canadense Mystic Ball. Greg Hamilton, diretor e protagonista do filme, apresentou a sessão. Um sujeito simpático, que soube levar na esportiva o fato de que a sala estava praticamente às moscas. “Ainda bem que tem lugar para todos”, ele disse risonho para as cinco ou seis pessoas que estavam lá para assistir a seu filme. Mystic Ball é um misto de ego-trip com turismo exótico e documentário etnográfico. Já nos primeiros minutos, Hamilton antecipa sua tese: ele descobriu nas interessantes manobras do chinlone (bonito esporte praticado na ex-Myanmar ex-Birmânia agora de novo Myanmar) uma via de elevação espiritual e uma forma de amor. Essa certeza e essa convicção quanto ao assunto do filme, que ele põe diante dos espectadores logo de início, prejudicam bastante o seu desenvolvimento. Há cenas realmente interessantes, sobretudo quando ele vai à Birmânia e pratica o chinlone ao lado de mestres e gênios do esporte (que é também – ou talvez até mais – uma dança). Documentado em primeira pessoa por um canadense de Toronto, o filme vai para o outro lado do mundo e encontra uma outra paisagem, outra cultura e tudo mais. O problema deste tipo de filme é que todo o encontro com o “outro”, toda relação de alteridade é uma desculpa para o realizador falar de si mesmo. Um lance bem “é tudo vaidade” mesmo. Mas o pior nem é a parcela ego do filme, e sim seus tiques colonialistas-publicitários: o desbravador Hamilton levará ao primeiro mundo esse tesouro escondido nas rústicas moradias de Myanmar; ele termina o filme com imagens dignas da mais fajuta propaganda de plano de saúde (jovens em contra-luz praticando o chinlone em câmera lenta enquanto o sol se põe num céu clichê, musiquinha new age rolando) e dizendo que seu projeto é espalhar ao redor do planeta essa arte que tanto o fascina, e na qual descobriu uma família de verdade (ele narra no início seu histórico de órfão de pai, de mãe e de universo cultural). Fiquei até o final de Mystic Ball, o festival está só começando e minha paciência ainda está em alta. E, no fundo, há algumas cenas que entusiasmam no filme (a bolinha passando de um pé para o outro, como se todos participassem de um mesmo movimento/pensamento, compõe um balé bonito mesmo). Sobre A Esposa do Pescador, bom, já há uma pílula do P.R. de Almeida no ar, mas acrescento apenas que a Dörrie piorou do último filme que vi dela para este. Em Sou Bonita? (1998), apesar da construção esquemática de filme-painel e da gratuidade ao inserir momentos mundo-cão, havia uma atmosfera de viagem, de encontro com o desconhecido, que era bem captada nas partes com a personagem da Franka Potente. Em A Esposa do Pescador tudo se resume a dizer que o mundo é sempre um aquário – não importa se você faça planos ou não, seja neo-hippie ou estilista de renome, viva na Alemanha ou no Japão. Há um esforço enorme para parecer fofinho, mas no fundo é mal encenado e lugar-comum. Num desses raccords curiosos e involuntários de época de festival, saio de A Esposa do Pescador para entrar num filme indiano em que é tocado diversas vezes o mesmo instrumento musical que o personagem do filme alemão tocava. Leite e Ópio, de Joel Palombo, é ingênuo, arrastado e despropositado. Houve muitas risadas do publico na seqüência final – que de fato é engraçada, porém mais involuntariamente do que por acertos de comédia. Os outros filmes terão de se esforçar para mostrar planos mais feios que alguns dos vistos em Leite e Ópio. Já cansado de filme ruim, fechei o dia com a primeira surpresa positiva do festival: Man Push Cart. Foi também a primeira sessão em que vi o filme acompanhado de companheiros de Contracampo. Leonardo Levis, que também gostou, escreverá a crítica. Tatiana Monassa viu cansada e não se entusiasmou tanto (entrego logo: ela dormiu em boa parte!). Ramin Bahrani fez um filme bem instigante, construído sob um ponto de vista absolutamente inusitado de Nova York: as esquinas em que imigrantes vendem café, donuts ou jornais. Fotografia escura, muitos planos fechados, muita fumaça, muito barulho, muita movimentação riscando o plano e confundindo a visão: uma cidade enclausurada e regida por mecanismos complexos. Man Push Cart é um estudo de personagem, e em se tratando de Ahmad (o protagonista paquistanês), isso equivale a dizer que o filme é um estudo sobre a opacidade. Se NY é realmente a cidade que não dorme, Ahmad é quem vive isso literalmente. Filme melancólico ao extremo, com um ou outro momento dispensável, mas que se mantém forte no todo. A cena de Ahmad procurando pelo mini-trailer em que vende café e chá, que é roubado para seu desespero, já valeria o filme mesmo que sozinha. Passará de novo amanhã (Estação Barra Point, às 19h) e segunda (Espaço Unibanco 2, 17h15 e 22h). Um filme importante de ontem era A Scanner Darkly, cuja sessão lotou antes de eu chegar à central de ingressos. Rodrigo de Oliveira, que é fã número 1 do Linklater, disse que teria de rever o filme hoje, pois o achou ruim e ainda não sabia o exato porquê. Aguardemos pela crítica dele... (LCOJr.)

Sábado, 23 de setembro de 2006
Drama intimista, épico filosófico e comédia histórica, O Leopardo é um desses raros filmes que conseguem mesclar o individual e o coletivo sem que um exista em detrimento dos outros, mas, ao contrário, um se prestando à perfeição ao outro. Para isso, o trabalho dos atores e o uso da conotação nas roupas, cenários e acenos de câmera é determinante na co-pertinência das duas camadas, o molecular e o molar. Príncipe Salina, o aristocrata, o Leopardo; Tancredi, o nobre que faz a passagem para a nova política, e troca de crença política da mesma forma que troca o cortejo de Concetta pelo de Angelica, representando a exuberância por vir de uma burguesia que tomaria na época vindoura as rédeas do mundo por vir. A seqüência de imagens que segue à direita, além da maior entrada de personagem feminino na história do cinema, exprime à perfeição como o trabalho de câmeras, olhares e gestos é crucial para a composição dos quadros individuais/históricos. 1,2: Desvelamento de Angelica, que sai da sombra e revela toda sua beleza (vale lembrar, já se passou uma boa hora de filme antes de ela aparecer pela primeira vez); literalmente, Visconti faz com que ela apareça das sombras; 3,4,5: reações dos personagens a Angelica: Concetta que fica apreensiva, Alain Delon cujo olhar obstinado pode revelar tanto a cupidez quanto o interesse prático (a família de Angelica é mais rica que a dos nobres), e Salina que, como bom aristocrata, observa e reconhece com altivez a beleza da moça (que será, mais tarde, coroada com a valsa final); notar, naturalmente, como Visconti usa o zoom para realçar a mudança nos rostos dos personagens, assim como o caráter dúbio do interesse de Tancredi; 6,7,8: Primeiro close em Claudia Cardinale: sensacional plano que revela ao mesmo tempo uma candura infantil e o máximo de provocação erótica, ao fazê-la morder os lábios (7) e baixar a cabeça (8), num terrível medo de adentrar uma corte que não é a sua, uma gente que não é a sua, e, ao mesmo tempo, a consciência que ela será o centro das atenções. Ela manterá o mesmo caráter dúbio na risada à mesa de jantar, misto de impulso infantil e desenvoltura de mulher feita. Eis como a chegada da burguesia afeta os nobres, e eis como individual e coletivo podem se coabitar e servirem-se mutuamente sem que uma camada precise sobrepor-se em significação à outra. Entre outras coisas, isso também ajuda a fazer de O Leopardo uma obra-prima absoluta.
Vistos ontem: 1972, que todo mundo menos eu parece ter detestado, apesar de eu conceder que o filme é constrangedor em momentos (todos aqueles com Toni Tornado, por exemplo), mas ao mesmo tempo cativante por instantes. Depois, Wood & Stock, bem bacana, bem simpático, ótima atração para a meia-noite, ainda que não convença totalmente.
Outros redatores viram diversos filmes e dois chineses que se mostravam como apostas já se mostram como não tão interessantes: A Estrada e Sonhos com Shangai, ainda que esse último tenha tido uma defesa tímida. Mas a primeira descoberta de filme a não perder é Alice, filme do português Marco Martins que em breve ganhará texto na revista. (RG)

Sexta-feira, 22 de setembro de 2006
Começo a escrever as primeiras linhas de nosso diário às dez pras duas, sem saber se termino a tempo de re-re-re-re-ver O Leopardo no Odeon e começar com o pé direito o Festival. Nesse momento, as preocupações são conferir se todos os textos dos colaboradores chegam direitinho, fazer as atualizações necessárias, e claro, pegar a credencial que, como de costume, chega apenas na sexta-feira, sempre num hotel distante dos filmes (agora é o Le Méridien, já foi o Copacabana Palace), num horário sempre incerto (são freqüentes as histórias dos marinheiros de primeira viagem esperando horas e perdendo seus filmes um a um enquanto esperavam a chegada dos crachás...). Quanto à festa de abertura, Dália Negra, black-tie e quetais, só posso dizer dei uma passada em frente ao Odeon – inundado de paparazzi e gente querendo aparecer – e o Palácio – que exibia uma iluminação vermelha em seu corredor que de longe parecia muito bonita –, mas é porque ficava no caminho entre a Escola Darcy Ribeiro, onde dei aula, e o Beco do Rato, onde tem a tradicional festinha-mesa de chorinho-cineclube montada pelo Frederico Cardoso. OK, era cerveja e não uísque. OK, era pago e não boca livre. Mas a freqüentação de um e de outro compensa tranqüilamente a escolha pelo Beco, sem titubear. Ainda mais porque tinha que se fantasiar de pingüim, ou algo perto disso, para entrar. Preferi a companhia dos píngüins da Antarctica na salgada proporção de R$3,50 a garrafa. Quanto ao filme do Brian De Palma, bem, repetindo o começo do texto que eu fiz sobre Miami Vice para O Globo, o filme é um deleite visual. Vai desagradar aqueles que esperam um filme centrado na narrativa, porque o De Palma está claramente interessado em outra coisa, e num momento a trama principal chega a ser quase esquecida em prol de outras, que possibilitam mais ao cineasta fazer a construção de climas e atmosfera, além, claro, de seus belíssimos planos tour-de-force elaboradíssimos. Diante das grandes porcarias vistas nas cabines de imprensa, é um oásis para os olhos ver o filme de alguém que sabe exatamente o que quer de um movimento de câmera, sabe exatamente o que faz com um reenquadramento, com um corte, com uma fusão, com a duração de cada plano. Nada em Dália Negra é frufru de esteta frouxo (ao contrário de Fonte da Vida). Esse filme não tem nenhuma daquelas cenas de tirar inteiramente o fôlego típicas do cineasta – os começos de Femme Fatale e Olhos de Serpente, a cena do baile em Carrie, a "visita guiada" do final de Missão: Marte, a perseguição no museu em Vestida para Matar, Tom Cruise por um fio em Missão Impossível –, mas o filme se desenvolve como uma sinfonia visual, harmônico, cadenciado, elegante. Ao final, a necessidade de fechar tudo que se abriu – obrigatória nos moldes narrativocêntricos de Hollywood – dá uma ligeira desritmada no filme, e o próprio De Palma passa a trabalhar em outra chave, parodística, que muito lembra a maneira que o Fritz Lang tinha de fazer seus finais acabarem rápido demais, de forma a ironizar a própria idéia de fim de filme, da resolução redentora. Aliás, por ser um noir, por ter seu tempo diegético nos anos 40, mas sobretudo pela maneira como trabalha os reenquadramentos, Dália Negra lembra muito Fritz Lang, em geral. Hora de sair, nada de credencial ainda, mas ainda a tempo de ver Visconti. Começa o Festival do Rio. Mãos à obra. (RG)

 

 

 






Foto do dia (06/10):

Fora de Jogo de Jafar Panahi

Foto do dia (05/10):

Os Infiltrados de Martin Scorsese

Foto do dia I (04/10):

Eu Me Lembro de Edgard Navarro

Foto do dia II (04/10):

Os Anjos Exterminadores de Jean-Claude Brisseau

Foto do dia/tela do dia (03/10):



Ventura em Juventude em Marcha de Pedro Costa e
O Jardineiro de Paul Cézanne
:
nova materialidade frente ao real.

Foto do dia (02/10):

Humanos filmados como naturezas mortas
(Flandres, de Bruno Dumont)

Foto do dia (01/10):

The Host, de Bong Joon-ho,

Foto do dia (30/09):

Ventura em um dos muitos quadros desconcertantes de Juventude em Marcha, de Pedro Costa,
obra-prima do Festival até agora

Foto do dia (29/09):

Jack DiNorscio (Vin Diesel) enquadrado em plano-americano,
com os outros réus ao fundo, em um de seus geniais
discursos em Find Me Guilty, de Sidney Lumet

Foto do dia II (28/09):

A porta fechada separando o casal:
um dos grandes momentos do filme de Nobuhiro Suwa

Foto do dia (28/09):

Bruno Todeschini e Valeria Bruni-Tedeschi em
Um Casal Perfeito, de Nobuhiro Suwa

Foto do dia (27/09):

Nanni Moretti no set de O Crocodilo

Foto do dia II (27/09):

Um Rosto na Noite, de Luchino Visconti,
em cópia estalando de nova

Foto do dia (26/09):

Abderrahmane Sissako filmando Bamako

Cena do dia (23/09): O Leopardo, de Luchino Visconti:

(1)

(2)

(3)

(4)

(5)

(6)

(7)

(8)

Foto do dia (22/09): Dália Negra, de Brian De Palma

O ideal seria uma fotinho da Mia Kershner nos testes filmados,
em preto & branco e formato 1:1,37, mas todas as cenas
com a família de Hilary Swank são ótimas, sobretudo o
plano-seqüência que apresenta todos os membros da família
(e, claro, a seqüência final)