As 4 aventuras de Reinette e Mirabelle
de Eric Rohmer, Les quatre aventures de Reinette et Mirabelle, França, 1987

Aventuras do registro cinematográfico


Em seu registro cinematográfico “de superfície”, Eric Rohmer está sempre em busca de um momento revelador, de um quê que signifique muito sem explicar quase nada. Num determinado instante, Mirabelle se queixa a Reinette que a vida diária é monótona e lamenta que ela não seja como nos romances, em que sempre algo de extraordinário acontece. Reinette, menina do campo que aprendeu a escutar os menores ruídos e a conhecer cada gesto dos animais, retruca a fala da amiga dizendo que é preciso saber enxergar, porque tudo está acontecendo à nossa volta o tempo todo, e que sair na rua pode ser por si só uma aventura, se prestarmos atenção aos pequenos e múltiplos acontecimentos que colorem a vida de uma cidade. Ao contrário do que a princípio tal diálogo possa sugerir, a contraposição campo/cidade de As 4 Aventuras de Reinette e Mirabelle, personificada pelas duas moças, não é ilustrada por Rohmer em uma escala valorativa que privilegie a inocência de uma sensibilidade perdida pelo progresso sócio-econômico. Sua cuidadosa percepção está atenta às especificidades dos espaços e aos encantos característicos de cada um deles. Num só movimento, o cineasta pinta cores e luzes de momentos vividos pelas personagens, que desfilam diferentes matizes de suas existências próprias no mundo, e organiza uma narrativa extra-ordinária a partir de situações corriqueiras e banais.

As quatro aventuras que experimentam Reinette e Mirabelle constituem quatro pequenos contos a partir de dados simples do cotidiano transformados em objetos de grande interesse para uma narrativa ficcional. Sem apontar propriamente uma predileção, Rohmer nos indica que a “sensibilidade campestre” é um dado do olhar e, como pintor-cineasta que é, carrega-o consigo para além do espaço privilegiado da arte impressionista – a natureza e suas sutis variações – para onde for se instalar sua câmera. Porque se o cinema ”resolveu” a questão do movimento, ele preserva – e amplia – o fascínio por ele, podendo registrá-lo tanto no vento que bate na vegetação (o belíssimo plano do capim que balança sob a chuva) e na variação de luz (o amanhecer no campo, abrir a janela do quarto), como nos gestos humanos (Reinette e Mirabelle dançando ao som de uma música eletrônica, as pinceladas de Reinette no quadro, as expressões mudas em sua interação com o dono da galeria, os furtos da cleptômana) e no ambiente urbano (os carros passando em alta velocidade em frente a Mirabelle quando ela tenta atravessar a rua para devolver a bolsa, o fluxo de pessoas e veículos nos cruzamentos de Paris).

Se, para o cinema de Rohmer, se trata, por um lado, de captar uma vida que parece se dar naturalmente no mundo (seguindo a linhagem impressionista dos irmãos Lumière), e, por outro, de registrar, em tom de crônica, homens em ação (se aproximando das histórias em quadrinho, por uma simplificação de traços, a exemplo do que faz Reinette com a pintura), é no imaterial som, que acompanha as imagens, que reside o maravilhamento de seus filmes; afinal “a natureza nunca está em silêncio”. É precisamente ele que, na concretude de registro (os tons de fala, os sotaques, as expressões utilizadas, o barulho dos carros, os sons dos animais, a ausência de silêncio) e na abstração do discurso (as intermináveis conversas em que pontos de vista dissonantes dialogam, não para chegar a alguma conclusão, mas para deixar entrever a natureza imprecisa de cada ser), afirma a impossibilidade de se capturar a realidade. Flutuando entre as colocações verbais dos personagens, manifestações de uma constante instabilidade das coisas, estamos sempre tentando agarrar algo, concluir algum dado que forneça uma chave para podermos organizar num todo razoavelmente coerente aquilo que vemos, pois, como se trata de narrativa, deve por certo haver alguma linha que oriente e amarre sentidos...

Só que os sentidos, para Rohmer, são justamente aqueles que pautam esta nossa tentativa de apreensão do mundo. Quando acompanhamos com as duas personagens a hora azul, nossa imersão no espaço de um plano de fundo azul repleto de sombras, em fotografia granulada e subexposta, se dá pelos ruídos dos animais noturnos, que cessam para, após um minuto de silêncio, dar lugar aos dos animais matutinos. Escutamos atentamente cada som e imaginamos os animais que não vemos, esperando o aguardado instante de silêncio, que na primeira noite nos é surrupiado pelo som de um carro que invadiu um espaço que não é o seu. No mesmo tempo da duração deste plano, tentamos conhecer melhor as duas personagens, cuja amizade mal se iniciou, mas que já se colocam abertamente uma para a outra. Este estado de atenção afetiva que nos é sugerido segue por todo o filme. E está em toda a obra do cineasta.

A observação de comportamentos e de existências característica dos filmes de Rohmer testemunha, ao mesmo tempo – e tanto pela imagem quanto pelo som –, de uma verdade do momento e de uma re-construção cinematográfica do mundo. Valorizar o encantamento do registro de uma sonoridade, de uma luz, da expressão de um ser humano (o ator) é também ser capaz de afirmar que, por mais que aquilo pareça o mundo, não é o mundo. E se nos apaixonamos pela intensidade deste realismo, é porque nos sabemos enamorados pela fantasia. Sentimos as coisas como no nosso tempo-espaço, mas as experimentamos como aventuras. Escutamos falas e sons como no dia-a-dia, mas conferimos a eles a doçura de uma atenção carinhosa que preocupa-se mais em conhecer do que em avaliar. E, por fim, admiramos tão sinceramente estas imagens esculpidas pela luz mais natural, porque nunca cansamos de admirar a recriação do que compõe o nosso entorno.

Ironicamente, assim como o mundo não cansa de nos surpreender em seus acontecimentos repetidos e história cíclica, não cansamos de redescobrir a magia de um estilo marcante que se mantém fiel a si próprio ao longo de uma vasta obra, que se estende até hoje. Entremeado de mistérios e pequenos paradoxos, o complexo dispositivo dos filmes de Rohmer nos chama a uma fruição de entrega e deleite e, simultaneamente a uma investigação fascinada de tudo o que, sutilmente, de forma quase invisível, o constitui. Talvez em nenhum outro cinema as pessoas e seus atos signifiquem tanto e tão pouco ao mesmo tempo. A instabilidade intuída no decorrer dos planos (seja em discursos, seja na mise-en-scéne) informa da capacidade da arte de comunicar fora do circuito dos signos. Como observa Reinette, naquele que é o momento que mais concentra a tensão (ou atenção) dispersa pelo filme (o “momento revelador”), a pintura está do outro lado da palavra, pois que ela é capaz de estabelecer uma comunicação direta, de emoção para emoção. E necessita, portanto, do silêncio, da ausência de fala; ao que Mirabelle retruca: “você não cessa de explicar suas obras”. Reinette então retoma: “mas sempre depois que elas estão prontas, nunca no momento da execução, neste momento sou só eu e o quadro”. Da mesma forma, em Rohmer, as escolhas da câmera perante o mundo nunca são estritamente ditadas pela palavra (o plano que se aproxima do quadro quando Reinette diz que ele deve ser observado de mais longe, ou aquele que se detém na árvore da bisavó após as meninas deixarem o quadro). Ambas nos informam de percepções diferenciadas, que se encontram no intuito de nos colocar em contato direto com o objeto-filme. O objeto-crítica é o depois.

Tatiana Monassa