Aventuras
do registro cinematográfico
Em seu registro cinematográfico “de superfície”, Eric
Rohmer está sempre em busca de um momento revelador,
de um quê que signifique muito sem explicar quase nada.
Num determinado instante, Mirabelle se queixa a Reinette
que a vida diária é monótona e lamenta que ela não seja
como nos romances, em que sempre algo de extraordinário
acontece. Reinette, menina do campo que aprendeu a escutar
os menores ruídos e a conhecer cada gesto dos animais,
retruca a fala da amiga dizendo que é preciso saber
enxergar, porque tudo está acontecendo à nossa volta
o tempo todo, e que sair na rua pode ser por si só uma
aventura, se prestarmos atenção aos pequenos e múltiplos
acontecimentos que colorem a vida de uma cidade. Ao
contrário do que a princípio tal diálogo possa sugerir,
a contraposição campo/cidade de As 4 Aventuras de
Reinette e Mirabelle, personificada pelas duas moças,
não é ilustrada por Rohmer em uma escala valorativa
que privilegie a inocência de uma sensibilidade perdida
pelo progresso sócio-econômico. Sua cuidadosa percepção
está atenta às especificidades dos espaços e aos encantos
característicos de cada um deles. Num só movimento,
o cineasta pinta cores e luzes de momentos vividos pelas
personagens, que desfilam diferentes matizes de suas
existências próprias no mundo, e organiza uma narrativa
extra-ordinária a partir de situações corriqueiras e
banais.
As quatro
aventuras que experimentam Reinette e Mirabelle constituem
quatro pequenos contos a partir de dados simples do
cotidiano transformados em objetos de grande interesse
para uma narrativa ficcional. Sem apontar propriamente
uma predileção, Rohmer nos indica que a “sensibilidade
campestre” é um dado do olhar e, como pintor-cineasta
que é, carrega-o consigo para além do espaço privilegiado
da arte impressionista – a natureza e suas sutis variações
– para onde for se instalar sua câmera. Porque se o
cinema ”resolveu” a questão do movimento, ele preserva
– e amplia – o fascínio por ele, podendo registrá-lo
tanto no vento que bate na vegetação (o belíssimo plano
do capim que balança sob a chuva) e na variação de luz
(o amanhecer no campo, abrir a janela do quarto), como
nos gestos humanos (Reinette e Mirabelle dançando ao
som de uma música eletrônica, as pinceladas de Reinette
no quadro, as expressões mudas em sua interação com
o dono da galeria, os furtos da cleptômana) e no ambiente
urbano (os carros passando em alta velocidade em frente
a Mirabelle quando ela tenta atravessar a rua para devolver
a bolsa, o fluxo de pessoas e veículos nos cruzamentos
de Paris).
Se, para
o cinema de Rohmer, se trata, por um lado, de captar
uma vida que parece se dar naturalmente no mundo (seguindo
a linhagem impressionista dos irmãos Lumière), e, por
outro, de registrar, em tom de crônica, homens em
ação (se aproximando das histórias em quadrinho,
por uma simplificação de traços, a exemplo do
que faz Reinette com a pintura), é no imaterial som,
que acompanha as imagens, que reside o maravilhamento
de seus filmes; afinal “a natureza nunca está em silêncio”.
É precisamente ele que, na concretude de registro (os
tons de fala, os sotaques, as expressões utilizadas,
o barulho dos carros, os sons dos animais, a ausência
de silêncio) e na abstração do discurso (as intermináveis
conversas em que pontos de vista dissonantes dialogam,
não para chegar a alguma conclusão, mas para deixar
entrever a natureza imprecisa de cada ser), afirma a
impossibilidade de se capturar a realidade. Flutuando
entre as colocações verbais dos personagens, manifestações
de uma constante instabilidade das coisas, estamos sempre
tentando agarrar algo, concluir algum dado que forneça
uma chave para podermos organizar num todo razoavelmente
coerente aquilo que vemos, pois, como se trata de narrativa,
deve por certo haver alguma linha que oriente e amarre
sentidos...
Só que
os sentidos, para Rohmer, são justamente aqueles
que pautam esta nossa tentativa de apreensão do mundo.
Quando acompanhamos com as duas personagens a hora azul,
nossa imersão no espaço de um plano de fundo azul repleto
de sombras, em fotografia granulada e subexposta, se
dá pelos ruídos dos animais noturnos, que cessam para,
após um minuto de silêncio, dar lugar aos dos animais
matutinos. Escutamos atentamente cada som e imaginamos
os animais que não vemos, esperando o aguardado instante
de silêncio, que na primeira noite nos é surrupiado
pelo som de um carro que invadiu um espaço que não é
o seu. No mesmo tempo da duração deste plano, tentamos
conhecer melhor as duas personagens, cuja amizade mal
se iniciou, mas que já se colocam abertamente uma para
a outra. Este estado de atenção afetiva que nos é sugerido
segue por todo o filme. E está em toda a obra do cineasta.
A observação
de comportamentos e de existências característica dos
filmes de Rohmer testemunha, ao mesmo tempo – e tanto
pela imagem quanto pelo som –, de uma verdade do momento
e de uma re-construção cinematográfica do mundo. Valorizar
o encantamento do registro de uma sonoridade, de uma
luz, da expressão de um ser humano (o ator) é também
ser capaz de afirmar que, por mais que aquilo pareça
o mundo, não é o mundo. E se nos apaixonamos pela intensidade
deste realismo, é porque nos sabemos enamorados
pela fantasia. Sentimos as coisas como no nosso tempo-espaço,
mas as experimentamos como aventuras. Escutamos falas
e sons como no dia-a-dia, mas conferimos a eles a doçura
de uma atenção carinhosa que preocupa-se mais em conhecer
do que em avaliar. E, por fim, admiramos tão sinceramente
estas imagens esculpidas pela luz mais natural,
porque nunca cansamos de admirar a recriação do que
compõe o nosso entorno.
Ironicamente,
assim como o mundo não cansa de nos surpreender em seus
acontecimentos repetidos e história cíclica, não cansamos
de redescobrir a magia de um estilo marcante que se
mantém fiel a si próprio ao longo de uma vasta obra,
que se estende até hoje. Entremeado de mistérios e pequenos
paradoxos, o complexo dispositivo dos filmes de Rohmer
nos chama a uma fruição de entrega e deleite e, simultaneamente
a uma investigação fascinada de tudo o que, sutilmente,
de forma quase invisível, o constitui. Talvez em nenhum
outro cinema as pessoas e seus atos signifiquem tanto
e tão pouco ao mesmo tempo. A instabilidade intuída
no decorrer dos planos (seja em discursos, seja na mise-en-scéne)
informa da capacidade da arte de comunicar fora do circuito
dos signos. Como observa Reinette, naquele que é o momento
que mais concentra a tensão (ou atenção) dispersa pelo
filme (o “momento revelador”), a pintura está do outro
lado da palavra, pois que ela é capaz de estabelecer
uma comunicação direta, de emoção para emoção. E necessita,
portanto, do silêncio, da ausência de fala; ao que Mirabelle
retruca: “você não cessa de explicar suas obras”. Reinette
então retoma: “mas sempre depois que elas estão prontas,
nunca no momento da execução, neste momento sou só eu
e o quadro”. Da mesma forma, em Rohmer, as escolhas
da câmera perante o mundo nunca são estritamente ditadas
pela palavra (o plano que se aproxima do quadro quando
Reinette diz que ele deve ser observado de mais longe,
ou aquele que se detém na árvore da bisavó após as meninas
deixarem o quadro). Ambas nos informam de percepções
diferenciadas, que se encontram no intuito de nos colocar
em contato direto com o objeto-filme. O objeto-crítica
é o depois.
Tatiana Monassa
|