MUSEU DO CINEMA DE BERLIM – UMA VISITA
Visita por um dos ícones de uma nova Berlim

O cinema foi a arte do século XX – mas sabe-se lá até quando. A única invenção genuinamente burguesa reconhecida como arte aprendeu que mesmo com uma produção industrial de cópias e mais cópias, sem o culto e preservação, suas obras-primas poderiam ser esquecidas depois do alvoroço comercial que inicialmente provocaram.

O material de um filme se decompõe, envelhece, ou é simplesmente esquecido. Ao mesmo tempo, para se perceber a essência artística de uma película, só o tempo. Algumas obras são incompreendidas, outras supervalorizadas. Depois do olhar de algumas gerações, respostas se cristalizam: filmes cuja importância se resume ao sucesso comercial, ou filmes que revelam-se por suas qualidades artísticas e ultrapassam qualquer tela e audiência. Sem os reis ou czares da aristocracia, os ícones burgueses foram imortalizados em self-portraits, só que frame a frame. Os pop stars encontraram numa antiga instituição sua imortalidade – em uma busca pela representação da realidade, que se não passou de impressão ou simulacro, ao menos fez história. O que importa a um museu é preservar o que se puder de uma história, de uma memória. E um museu do cinema não poderia ser diferente.

Só na Alemanha existem quatro museus do filme. O mais recente deles, o Filmmuseum de Berlim, foi inaugurado em 2001. Com criação prevista desde a Berlim socialista no início dos anos oitenta, ele só se tornou possível após a reunificação e o investimento de grandes multinacionais como a Sony. Para a exposição, utiliza parte do acervo da Deustche Kinemathek, fundada em 1963, além de outras aquisições. Segundo a diretoria, "utiliza-se os mais modernos equipamentos digitais para preservação e a pesquisa é sempre constante para vencer os desafios propostos para os novos tipos de mídia, já que o objetivo do Filmmuseum também é arquivar produções contemporâneas".

Com um acervo de 12.500 títulos, uma biblioteca especializada, palestras e cursos, o museu representa uma nova fase da cidade após quase trinta anos de divisão. Localizado na Potsdamer Platz, anteriormente cortada pelo muro – construção cujas ruínas foram transformadas em galeria, a "East Side Gallery" –, a região foi esquecida durante a guerra fria. Desde 1993, milhões foram investidos pra dar uma atmosfera high tech aos 68 000 mē da praça, que passou a ser o símbolo de uma nova era e de uma nova Berlim – unificada, moderna e capitalista.

Mas não só de suntuosidade vive a região. Palco de shoppings, restaurantes e escritórios, a praça respira cinema. Com um conglomerado batizado de Casa do Filme (FilmHaus), ela agrega a Deustch Mediathek, o Filmmuseum e o futuro Fernsehmuseum (Museu da Televisão), com inauguração prevista para junho desse ano. Além disso, é na Potsdamer Platz que está localizado o Berlinale-Palast, centro do Festival Internacional de Cinema de Berlim. Idealizado pelos EUA na Berlim capitalista seis anos após a segunda guerra mundial, sua 56° edição terminou em fevereiro. A atmosfera da cidade muda completamente com o festival e o Filmmuseum tem um papel importante: a exibição e discussão de filmes esquecidos ao longo do tempo.

Toda essa preservação e culto ao cinema é recente. Muitos dos filmes que pertencem ao período do cinema mudo foram perdidos. Só no nacional-socialismo, quando a sétima arte começou a ser enxergada como instrumento político e como ferramenta de documentação histórica, é que o cinema alemão passou a ser preservado. Em 1935, na presença de Hitler e Goebbels, foi inaugurado o primeiro arquivo germânico.

O filme no museu

O Anjo Azul (Der Blaue Engel) e Metropolis: dois expoentes da cinematografia alemã dão início à exposição. Sugerindo que a arte cinematográfica capta a alma humana, na legenda lê-se somente: "as imagens de um filme mostram, sobretudo, olhares". Cercada por espelhos, a simulação da realidade intencionada pelo cinema fica latente pela ilusão de ótica que confere profundidade e amplia. Nas 12 salas que se seguem, conta-se a história do cinema alemão e suas influências, dos primórdios à contemporaneidade. Não só o mainstream, mas também sua faceta mais independente.

Como não podia faltar em um museu, fazendo jus à etimologia da palavra, musas: Henny Porten, Fern Andra, Asta Nielsen e, claro, Marlene Dietrich, que preenche longas salas com exposição de suas roupas ousadas, sugerindo masculinidade e sensualidade. Malas, vestidos, fotos, filmes, cartas e registros completam a exposição. Cantora e diva do cinema, Dietrich foi para Hollywood, tornou-se cidadã americana e foi símbolo sexual. Sua ousadia e estilo de vida representavam a liberdade e efervescência cultural vivida em Berlim nos anos 20. Foi estrelando filmes como O Anjo Azul e Marrocos, ambos de Joseph von Sternberg, que alcançou notoriedade. Depois de sua morte, em Paris, 1992, suas memórias foram vendidas ao Filmmuseum.

O mais importante pioneiro da indústria cinematográfica alemã, Oskar Messter, tem exposta no museu uma inovação técnica que revolucionaria o cinema: a Cruz de Malta, Malteser-Kreuz, que permitiu que os fotogramas de um filme fossem interrompidos no projetor na freqüência exata para serem percebidos na retina e continuarem dando a impressão de movimento. Os famosos 24 fotogramas por segundo.

Primeiramente como uma alternativa às suntuosas produções hollywoodianas e às dificuldades enfrentadas logo após a primeira guerra, a grande inovação estética do cinema alemão, com sua peculiar mise en scène, viria com o O Gabinete do Doutor Caligari, de Robert Wiene, cujos desenhos usados para o cenário expressionista se encontram no museu, bem como cartazes, roteiros, áudio com entrevistas com diretores e uma maquete com a reprodução de um típico estúdio nos anos 20 (as paredes de vidro eram construídas intencionalmente para se utilizar a luz do sol).

Com o primeiro cartaz do filme Metropolis de 1927 é feita a homenagem à maior produção alemã dos anos 20. Um show de efeitos visuais com um cenário futurístico revela o estilo visionário de Fritz Lang. As imagens são tão impressionantes que ficam impregnadas em nossa memória visual.

A República de Weimar (1918-1933) desponta com produções importantes que remontam ao cinema mudo e aos primeiros falados. Época muito controversa, suas produções giram em torno da tentativa de glorificar o passado, com o Sacro Império Germânico e revolucionar a política, reflexos do Movimento Espartaquista sufocado na época. Muitos filmes foram censurados. A sala dedicada aos diretores do período – Ernst Lubitsch (Madame Dubarry), Fritz Lang (Mabuse, Metropolis) e Georg Wilhelm Pabst (A Caixa de Pandora) – conta com o registro da chegada de Chaplin em Berlim, acompanhada por imensa aclamação popular. As imagens de sua chegada foram mais tarde utilizadas pelo nazismo no filme anti-semita Der Ewide Jude (1945; Fritz Hippler).

Na sala que se segue, com as produções referentes ao nacional-socialismo (1933-1945), o clima é de vergonha: televisões escondidas dentro de gavetas de um crematório marcam o registro das produções da época. Recebendo crédito da UFA - grande produtora alemã que após a guerra seria a alavanca de produções comerciais da Berlim capitalista -, filmes que estivessem dentro dos ideais propagados pelo regime tinham espaço garantido, como Olympia, dirigido por Leni Riefenstahl, e feito para registrar a glória dos jogos olímpicos de 1936. Com o propósito de engrandecer o regime nacional-socialista, a câmera é posicionada de cima para baixo para demonstrar a grandiosidade e hierarquia do Führer. No museu, há a reprodução do estádio onde os jogos olímpicos foram realizados, além de livros e artigos de jornais que denegriam a imagem dos diretores e atores exilados.

Chamada de Transatlantic, a próxima sala destaca o outro lado: a vida dos exilados nos EUA. Mostra como muitos alemães conseguiram espaço em Hollywood, curiosamente com a chegada do cinema falado. Como não havia uma indústria de dublagem, usava-se o mesmo cenário para produzir uma versão do filme em outra língua com atores nativos. Além disso, o museu destaca dificuldades e documentos de famosas personalidades no exílio: Ralph Benatzky, Curt Bois, Bertolt Brecht, Fritz Lang, Peter Lorre, Joe May, Max Ophüls, Luise Rainer, Billy Wilder, entre outros.

A contemporaneidade

Após a segunda guerra, a Alemanha renasce e seu cinema também. Na seção que integra as produções contemporâneas de 1945 a 1999, vemos obras de um país dividido. Com títulos comerciais produzidos pela República Federal da Alemanha e produções com fundo estatal da DDR (Deutsche Demokratische Republik), juntamente com a DEFA, companhia da parte socialista, a atmosfera era competitiva. Tendo seu enfoque voltado para as estrelas da época, o museu destaca a atriz Hildegard Knef, morta em 2002. Produziu filmes no leste com um sucesso em especial: Die Mörter sind unter uns (1946; Wolfgang Staudte), que conta com uma visão mais crítica do cenário alemão antes da guerra. E a estrela do ocidente, Romy Schneider, que protagonizava a mulher independente e individualista, bem ao gosto do american way of life. Um painel com cartazes de filmes como Adeus, Lenin e a exposição do figurino de Franka Potente, estrela de Corra Lola, Corra, dá um panorama das últimas produções.

Se no início da exposição a proposta era introduzir o visitante para uma viagem cinematográfica, a última sala surpreende com uma preparação para a vanguarda do cinema. Artificial Words exibe os primórdios da animação com Ray Harryhausen e a técnica do stop motion com Jason and the Argonauts de 1963. A seção explica também o uso de efeitos especiais através de filmes, esquemas e documentários. O que um dos roteiristas de Caligari, Hermann Warm, não sabia quando disse "O cinema se tornou gráfico. É desenho trazido à vida" é que o contrário também seria possível. Esquematizando o processo de animação usada em O Ratinho Stuart Little, o Filmmuseum detalha a motion-capture technique, técnica de animação digital em que se filma o movimento de atores e depois os transfere para o computador, dando uma aparência bem real à animação. Quanto aos filmes "live action", em Jurassic Park, de 1993, havia 52 criações puramente digitais; em Titanic, cinco anos depois, havia 500; em Star Wars – Episode I: The Phanton Menace (1999; George lucas) 2000. Não é por acaso que no final da exposição o Filmmuseum assinala uma tendência: ""Die Zukunft des Kinos wird Digital sein" (o futuro do cinema será digital).

Ao fim da viagem, temos muito de um passado e um bocado do futuro...


Monique Oliveira

 

 






Fachada do Filmmuseum Berlin


Recepção do Filmmuseum


Durante a visita...