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                         Ideais 
                          cinzas, cinzas de ideais. 
                        Bruno 
                          Forestier, o pequeno soldado, inicia o filme de Godard 
                          constatando: “o tempo da ação passou, agora começa o 
                          tempo da reflexão. Estou envelhecendo”. Temos aí apresentada 
                          a principal questão do filme: os ideais e sua sobrevivência 
                          (ou morte). O envelhecimento de Bruno é precoce para 
                          sua geração, da mesma forma que o questionamento que 
                          o filme conduz através dele é prematuro em relação à 
                          sua época. O Pequeno Soldado, rodado em 1963, 
                          é um dos primeiros filmes da vasta filmografia de Godard. 
                          E, embora um certo “anarquismo contestatório” esteja 
                          presente nela desde Acossado, não deixa de surpreender 
                          a atmosfera de “fim da História” que embala o filme. 
                          Bruno já não age, ele reflete. Sua narração em 
                          off é um relato de acontecimentos e um diário 
                          de seus pensamentos sobre as ações que leva adiante 
                          de forma quase autômata. Ser um agente secreto para 
                          ele é mais uma questão de seguir o caminho no qual foi 
                          jogado do que defender ideais. Ele então procura dar 
                          sentido em suas meditações a toda lógica que embala 
                          o embate entre forças políticas opostas nos tempos nervosos 
                          da década de 60. Bruno é a personificação do espírito 
                          questionador de Godard e o personagem-símbolo de uma 
                          crise na ordem das coisas que demoraria ainda um tempo 
                          para se manifestar de fato. Perdido em seus devaneios 
                          repletos de referências artísticas, ele acaba experimentando 
                          na própria pele a dureza e inflexibilidade de quem tem 
                          um ideal para defender (ou se agarrar), mesmo que não 
                          saiba muito bem porquê. 
                        Pinturas, 
                          poesias, romances, peças de teatro. Inúmeras imagens 
                          e cores povoam o universo de Bruno. Mas é numa disputa 
                          sangrenta em preto e branco que ele milita. Como soldado 
                          da extrema-direita, ele precisa combater e eliminar 
                          o inimigo, ainda que esse seja Verônica, a bela moça 
                          por quem ele se apaixona e que ele deseja capturar apenas 
                          com a lente de sua câmera – para criar imagens que espelhem 
                          o que ele sente. A Guerra de Independência Argelina 
                          espera por um final e tudo que se espera de um soldado 
                          envolvido com as intrigas entre grupos políticos fora 
                          do campo de batalha é o empenho total para garantir 
                          a vitória do corpo de idéias que ele deve representar. 
                          No entanto, Bruno já perdeu a aposta. Já está incerto 
                          de suas convicções e enredado pelo amor e acaba sendo 
                          acusado de ser um agente duplo, sendo perseguido e torturado 
                          por não cumprir as ordens que havia recebido e por ocultar 
                          informações. Em toda a cena estabelecida, característica 
                          da guerrilha entre serviços de inteligência política, 
                          Bruno, já sem gosto e já sem causas, tenta cumprir seu 
                          papel. Resistir à tortura e não revelar as informações 
                          pedidas é o que deve fazer um perseguido. Por orgulho 
                          de não ceder, mais do que pela defesa de algo em que 
                          se acredita, constata Bruno. Agir de acordo com as ordens 
                          e não refletir. A toda a roupagem de filme noir de espionagem 
                          e guerra política, Godard dá o tom de seu questionamento 
                          irrequieto do mundo. Não, não há mais ideais. Ou: os 
                          ideais que nos acostumamos a defender não fazem mais 
                          sentido. Como não faz mais sentido manter uma colônia 
                          na África na segunda metade do século XX. 
                        Esquerda, 
                          direita, as políticas externas e todo o teatro da guerrilha 
                          terrorista a que estamos habituados, possuem eles ainda 
                          alguma lógica concreta no mundo que muda diante de nós 
                          o tempo todo? Como ilustra o trecho que um colega de 
                          Bruno lê para ele do livro “Thomas, o impostor”, de 
                          Jean Cocteau: face à morte, Thomas deve fingir estar 
                          morto para não morrer de fato e, portanto, “realidade 
                          e ficção formavam uma coisa só dentro dele”, a ficção 
                          de um ideal e a lógica dos acontecimentos constituem 
                          uma só matéria e moldam a realidade que vivemos. Nesse 
                          sentido, a reflexão godardiana vai sempre no sentido 
                          de isolar as diferentes camadas da vivência dos homens 
                          frente à História. Ficção, criação artística, criação 
                          política, feitos concretos: de que forma estamos costurando 
                          nosso entendimento da realidade e concomitantemente 
                          produzindo-a? Tal questionamento fundamental está muito 
                          bem consubstanciado em Passion, de 1982: as questões 
                          técnicas enfrentadas pela filmagem sem roteiro baseada 
                          em quadros de Delacroix, se confundem com questões de 
                          economia e política cinematográfica e com o desemprego, 
                          o sindicalismo, e a dinâmica das grandes indústrias. 
                          Atravessados por tudo isto estão os personagens, que 
                          sofrem por amor, sentem ciúmes, têm raiva... e, por 
                          fim, precisam dar um jeito de continuar levando a vida. 
                          A trama do filme e sua materialidade visual e sonora 
                          fazem de todo este emaranhado uma coisa só, uma realidade 
                          na qual não é possível separar um dado de outro (concretude, 
                          inteligibilidade e sensibilidade). Grande assertiva 
                          artístico-política. 
                        É possível 
                          ver nessa operação difusa de destilação da experiência 
                          humana no espaço e no tempo (elementos-base da construção 
                          cinematográfica, por sinal) um forte elemento de coesão, 
                          não obstante as diferentes formas apresentadas pelo 
                          estilhaçamento que Godard produz na construção cinematográfica 
                          – desde o início de sua obra até um filme como Nossa 
                          Música, por exemplo, passando pelas experiências 
                          com o Grupo Dziga Vertov e com o vídeo –, através da 
                          sua narrativa dividida entre o frenesi e a calma (cortes 
                          rápidos e descontínuos alternam-se com planos longos 
                          de câmera na mão ou longos e estáticos; diálogos extensos 
                          de pergunta-e-resposta alternam-se com reflexões mais 
                          demoradas e aforismos) e equilibrada entre o cuidado 
                          da imagem e a atenção do texto, em suas intermináveis 
                          inter-relações. Da perambulação e vivência da cidade 
                          presentes nos primeiros filmes, dos quais O Pequeno 
                          Soldado é um bom exemplo, à auto-reflexão explícita 
                          sobre a imagem entabulada por trabalhos posteriores, 
                          o que torna a operação de pensamento godardiana sempre 
                          um estímulo agradável é a inquietação constante com 
                          os feitos humanos, sem nunca perder de vista a sensibilidade 
                          que também os orienta. Incômodo-provocação muito diferente 
                          do Michael Moore, por exemplo, para quem é muito mais 
                          importante conduzir conclusões lógicas e mapear com 
                          precisão tendenciosa ações humanas de grandes proporções 
                          do que encarar o mistério que envolve toda e qualquer 
                          pessoa. Para Godard (e Bruno Forestier), “as luzes da 
                          cidade têm sempre algo de duro e emocionante, à imagem 
                          dos homens que as olham”.  
                          
                          Tatiana Monassa 
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