BLÁ-BLÁ-BLÁ NA GARGANTA DO FUTURO
Blá-blá-blá, 1968

Santo Amargo da Purificação. O poeta Paulo Martins, de Terra em Transe, surge e se estabelece como o personagem-símbolo de uma consciência que o Cinema Novo levara tempo para construir (ou assumir), e que dali para adiante serviria como uma espécie de oráculo das possibilidades de atuação do cineasta enquanto gerador de um discurso que, errante, falível, "amargo" que parecesse, não tinha outra intenção que não a "purificação", a transformação. O percurso do poeta é feito de verdades cambiantes. Enquanto existem e têm sua validade, são levadas às últimas conseqüências, para logo a frente serem abandonadas e substituídas por outras. A verdade de Paulo Martins funciona pela eliminação das contradições: mesmo que suas idéias sejam opostas entre si, esse choque será suavizado pela vontade, desde sempre muito clara e inequívoca, de renovação das estruturas em que está envolvido. O quociente de seu dilema é a ambigüidade, e o instrumento de exposição dela é o discurso. Daí o famoso "distanciamento bretchiano", a atuação em função tripla, protagonista da própria memória, ao mesmo tempo que narrador da história que revive e comentarista crítico dela. O que garante a integridade de Paulo Martins na passagem de um nível a outro, o que torna legítimo seu sacrifício final, o que faz compreensível sua flutuação entre a esquerda populista e a direita totalitária é a construção verbal que acompanha estes momentos. O discurso como organizador de uma concepção de mundo, forte o bastante para tornar maleável a noção de verdade, mas nunca para poder prescindir de uma.

É sob o signo dessa santidade que nasce o governante que protagoniza Blá Blá Blá. Num momento de crise, o político interpretado por Paulo Gracindo vai à tevê fazer um discurso à nação. Como diz mais adiante um ativista cujos pequenos trechos de uma conversa são colocados entre a fala do político, "já não se trata mais de ideologia, mas de temperamento". À Andrea Tonacci interessará menos o conteúdo programático da fala, suas idéias, sua tendência política, e mais as reações que as nuances desse discurso provocam em quem o profere, as variações do estado de humor de Gracindo, correspondendo sempre à carga dramática necessária para dar força a este ou aquele dito, como uma espécie de circuito que funciona bem desde que cada pequena parte de suas engrenagens cumpra seu papel, mesmo que uma não tenha rigorosamente nenhuma afinidade com a outra. O discurso que atravessa todo o média-metragem é como este circuito. Vai da defesa da paz ao deslumbre militarista da guerra, do clamor pela recuperação das estruturas de poder estabelecidas à decisão firme pela luta armada, da vontade de adesão e conquista daquele a quem o discurso é dirigido (o povo) à sua total execração. A semelhança com Paulo Martins não é pouca.

"Chegou ao fim a ambigüidade do poder revolucionário", eis a primeira frase do comício solitário de Blá Blá Blá. A inconstância do poeta de Terra em Transe já não se sustentava, nem mesmo como a dúvida fundamental de uma classe em crise quando chamada às pressas a se posicionar dentro de um regime ditatorial. A resposta a essa dúvida, a libertação como saída para a crise, já não poderia se dar pelo discurso. Tonacci, ao invés de tentar eliminar as contradições de seu protagonista, condensa-as, subtrai qualquer tipo de elemento dispersivo e faz com que se sucedam de maneira calculada, torna impossível negá-las como evidência. A denúncia da verdade planejada do discurso se dá também pela montanha-russa emocional que Gracindo vive junto com as palavras que diz. Passa da tensão leve à exaltação, tosse, sua, recorre à goles de água, vai rapidamente do tom de vencedor ao de vencido, até se entregar ao clima de confidência sem esperança com que encerra a transmissão. Existe aqui também aquele mesmo distanciamento de Paulo Martins, potencializado pelo dispositivo televisivo. O governante funciona ao mesmo tempo como narrador e personagem da história que cria em seu discurso. A televisão possibilita sua existência imediata enquanto realidade e simulacro, transmite ao vivo a narrativa que ele constrói palavra a palavra. A câmera de tevê (mas, na verdade, a câmera de cinema) deixa de ser mera captadora da imagem e passa a ser cúmplice daquilo que acontece à sua frente. Gracindo se vira para ela, debruça-se derrotado sobre o púlpito, exibe cada ruga, cada careta expressiva com a coragem de quem se entrega de corpo e alma a cada frase dita e que sofre as conseqüências das oposições entre uma e outra. Essencializado, o discurso político se transforma na situação quase patética de um homem sozinho no escuro, com um microfone à sua frente e uma série de contradições escritas num papel. Amargo, mas sem qualquer expectativa de purificação.

A terceira função do distanciamento não poderia, portanto, ficar a cargo do político – é como se a prática retórica impedisse qualquer autocrítica. Os comentários sobre a fala quem faz é o próprio Tonacci. São imagens de arquivo que ao mesmo tempo que ilustram as palavras de Gracindo mostram que a concretização do que diz não pode se dar ao luxo da volubilidade, a dúvida entre o sim ou não à guerra pode até estar presente em frases consecutivas, mas nunca no lançamento de um ataque aéreo; a repressão às manifestações públicas ou acontecem ou não acontecem, é impossível meia barricada, meio confronto com a polícia, meia pedra atirada para o alto. Mais ainda, Tonacci forja algumas situações dramáticas fora do estúdio de televisão que dialogam diretamente com aquilo que é dito dentro dele. Nelson Xavier e Irma Alvarez são dois revolucionários ("agitadores", diria o político), ele pragmático, pedindo a luta armada, ela romântica, falando em futuro e numa nova alvorada. Contrapontos morais àquilo que Gracindo diz, usam na verdade os mesmos artifícios discursivos, uma série de frases de efeito e chamamentos que, se não os igualam ao governante, pelo menos chamam atenção para a fragilidade patente do discurso como forma de intervenção.

São, no entanto, os trechos de um grupo de capangas que perseguem e matam dois supostos presos políticos que ligam Blá Blá Blá mais diretamente ao que acontecia no país naquele momento. Essas imagens prenunciam aquilo que se exerceria com muito mais força a partir de dezembro de 1968, com o AI-5. As restrições à liberdade de expressão e manifestação artística são radicalizadas, e com elas todo tipo de repressão. Num regime de exceção como o vivido no Brasil, a postura política do grupo do Cinema Novo é posta definitivamente em cheque. O que se desenhava no média de Tonacci e que explode naquele ano como o chamado Cinema Marginal era justamente a consciência da impossibilidade de se manter qualquer discurso coerente e "verdadeiro" sobre a realidade do país. Sai o Blá Blá Blá monopolizador da verdade, entra um outro, sem obrigações, sem culpas, cuspido e escarrado com a força da garganta. Sai o poeta, entram os boçais. Como pedia Sganzerla, entram os filmes sujos, péssimos, "mentirosos". E livres.


Rodrigo de Oliveira