A Cadela
de Jean Renoir, La Chienne, 1931, França

Não deixa de ser irônico que A Cadela comece com um teatrinho de bonecos, e que os personagens briguem para ver qual deles terá afinal o privilégio de declarar a “moral” do filme. A ironia surge pelo fato de esse prólogo encerrar algumas características que ligam toda a obra de Jean Renoir e que imprimem a seus filmes qualidades que fazem dele um dos maiores que já existiram. A primeira, mais famosa e tornada quase uma fórmula quando aparece o nome de Renoir, é o famoso “cada um tem suas razões” que aparece como fala em A Regra do Jogo e reorganiza a distribuição de papéis morais e atitudes exemplares em seus personagens. A Cadela, então, não é nem uma comédia nem um drama, e tampouco tem uma lógica narrativa pronta para nos dizer quais os comportamentos certos e quais os errados. O mundo se transforma, então, não numa lição de moral e bons costumes, mas num terreno em que podemos nos compadecer e debochar – muitas vezes ao mesmo tempo! –, nos espantar e nos emocionar com o comportamento humano, do gesto mais nobre ao mais deplorável. Já a segunda característica é menos mencionada, mas talvez diga ainda mais respeito à gênese da visão de mundo de Renoir: a idéia de que em sociedade todas as pessoas desempenham personagens e atêm-se a protocolos e formalidades tão previsíveis e absurdos quanto as convenções cênicas de uma trupe anacrônica. Daí o aparecimento de um Boudu em Boudu Salvo das Águas ou do próprio protagonista ao fim de A Cadela (ambos interpretados por Michel Simon), como o mendigo que, por não participar das convenções de gestualidade, vestimenta e dos jogos de aparência, é o único que pode ser considerado “livre”, imune às injunções que a vida social corrente nos obriga a aceitar e reproduzir.

A Cadela dá início à série de obras-primas que Jean Renoir realizará ao longo da década de 30, filmes de um vigor absurdo, de uma leveza e ousadia estética que só encontraremos, na época, num Ernst Lubitsch, num Jean Vigo ou em Fritz Lang. Renoir é um desses cineastas que, ao contrário de Chaplin, de Murnau, de Vertov, precisavam da chegada do som para completar sua estética. Pois o cinema de Renoir não vai se apoiar na pantomima das atuações no cinema mudo e nem na plasticidade estática da composição dos planos, mas num atrelamento à vida, à sua fluidez, à naturalidade dos comportamentos. Num filme de Jean Renoir, a caracterização dos personagens é feita com tantos detalhes, os personagens falam, se movem e olham de tal forma que nos assombramos com o resultado e com a impressão de realidade. O mesmo se dá com os movimentos de câmera e com o uso do som direto em locação, inteiramente inovadores naquele momento. O que Renoir faz com as convenções cinematográficas é um pouco parecido com aquilo que ele faz com os jogos de sociedade: despir o cinema de tudo que é posado, ilusório, convencional, forçado, enfim, tudo aquilo que pesa. Pois decisivo para ele era trazer ao cinema o sopro da vida que há na natureza, uma vitalidade do comportamento humano e, sobretudo, da passagem do tempo.

O filme é centrado em torno de três personagens, com outros dois coadjuvantes. Nenhum desses personagens está imbuído de valores sãos: cada um deles, à sua maneira, tem uma forma própria de ser ao mesmo tempo amado e odiado pelo espectador. Todos os cinco usam o poder que têm – ou ao menos tentam usar – para submeter um outro, e ao mesmo tempo apresentam pontos fracos que serão utilizados por outro. Assim, a devoção que Maurice tem por Lulu reflete a paixão de Lulu por Dédé, e ambas culminam em níveis de humilhação fortes. Da mesma forma, o golpe que o suboficial tenta aplicar em Maurice acaba virando do avesso. Se Maurice parece mais adorável a nós do que os outros, é principalmente porque ele parece ter bom coração, pois, mesmo vivendo em seu mundo de idiotia (o prólogo já o apresenta como um imbecil, alguém que é cotidianamente zombado pela falta de inteligência e ambição), ele tenta fazer boas ações e não deseja mal a ninguém. Mesmo Lulu, a “cadela” a que o título do filme se refere, não é inteiramente má e maquinadora. Ao contrário, ela simplesmente deseja viver calmamente com seu amado Dédé. Jean Renoir participa de um desejo estético muito raro que é sempre dar mais do que uma visão unidimensional de seus personagens, traçar relevos, ampliar suas características – mesmo quando as figuras principais da trama são quase caricaturais em sua construção, como A Cadela (o otário, o malandro, a mulher de malandro, a viúva sovina, o velhaco aproveitador). Visto de perto, cada um tem sua forma de ser adorável e sua forma de ser um escroque.

O final do filme, um pequeno epílogo simpático, apresenta os dois “maridos” se reencontrando, depois de anos. Os dois são mendigos. Antagonistas num determinado momento, eles vibram quando se reconhecem, e contam sobre os rumos que tomaram. Um movimento de câmera excepcional nos afasta dos personagens, e passa a nos mostrar um homem que sai de uma galeria de arte carregando o auto-retrato pintado por Maurice, que não valia nada na época em que ele o pintava, e que agora vale ouro. Quanto ao próprio pintor, ele nem é reconhecido como artista (a autoria deles é atribuída a “Clara Wood”, uma “americana”), e tampouco goza das benesses do dinheiro que os quadros valem. Ironia do destino? A maneira como a burguesia desrespeita seus artistas? Nada disso. Renoir aqui não faz nenhuma “reclamação”, não revela uma “injustiça”. Simplesmente porque a mendicância aqui não significa um estado deplorável de existência, mas, ao contrário, uma maneira de se ver livre desse mundo de convenções banais da sociedade burguesa (nesse sentido, Boudu Salvo das Águas também tem um final parecido), uma maneira de ser livre, de fugir do “bom tom” e do “bom gosto” de uma vida de ornamentação sem nenhuma vitalidade. Mais do que simplesmente criticar, Jean Renoir está verdadeiramente interessado em esculpir novas formas de vida. Anárquicas, grosseiras e cheias de vivacidade. Autênticas a ponto de render a seus praticantes um zero em comportamento. Pois um zero bem vivido vale mais que um dez sem vigor.

Ruy Gardnier


Citações:

“Eu queria muito fazer A Cadela por um monte de razões. Uma das razões mais importantes é o fato de que eu adoro... gosto muito... enfim, é mais do que isso... eu sou totalmente apaixonado, platonicamente, pelas mulheres que ficam nas ruas de Paris, Eu queria contar uma história que se passasse em torno de uma dessas moças”
Jean Renoir

"Meu irmão tinha lido o folhetim em L’Oeuvre. Eu entreguei a Renoir para ele ler,que adotou o texto de primeira. Mas a idéia do meu irmão era que o filme fosse a continuação de Nana. Que fosse uma espécie de Zola moderno”
Pierre Braunberger, produtor

“No romance de Le Fouchardière, a moça é uma prostituta. É um trabalho coo qualquer outro. Essa moça possui uma das qualidades mais evidentes: ela é fraca. A fraqueza é uma grande força, uma força da natureza, uma força destruidora.”
Jean Renoir