CONTRA-REGRA
coluna semanal de televisão

Anotações da Madrugada.

Parte 1 – Rede Globo

É, eu não sei o que a Rede Globo vê nessa mania atrasada de apostar em sitcoms. Depois do sucesso de Os Normais, parece que se abriu uma gavetinha (na cabeça fechada dos executivos globais) para alguma novidade. Mas uma gavetinha em que só cabem essas tais de sitcoms. E aí vem essa enxurrada de programas popularescos-para-a-classe-média-ver-no-fim-de-noite, textos pífios, com cheiro de plástico, apostando numa crônica estereotipada do que seria o cotidiano de personagens comuns. A outra face do glamour gratuito da grife-de-miniséries-de-alto-padrão é essa gama de personagens banais, pintados em cores fortes, com o intuito preguiçoso de estabelecer identificação com o público. Pudicos, anos-luz atrasados em relação ao que se era possível fazer em pornochanchadas de destaque nos anos 70/80, parecem querer ser livres cultivando e celebrando neuroses como verdades do comportamento, como "normalidades". Sexo, sacanagem, palavrão, aparecem nesses espaços como jogos de crianças represadas, fazendo pirraça e mostrando que podem ultrapassar um pouquinho uma paisagem bem-comportada do "bom-gosto", mas sem perder o clima ameno das risadas, a consciência das pequenas libertinagens. Sexo Frágil, Sob Nova Direção, A Diarista fazem uma espécie de humor popular bem comportado, sem excessos, que confunde maneirismos de edição com modernidade de linguagem, cópia com releitura, perversão com liberdade. Tudo é tão descartável, tão banal, tão desanimado – programas que parecem querer repetir os núcleos cômicos de telenovelas de Carlos Lombardi ou Silvio de Abreu, mas sem a metade da anarquia narrativa desses autores. É desgastante ver que o pouco de espaço demarcado para a novidade dramatúrgica na Rede Globo seja essa janela aberta para o mesmo. E nem me venham com as inovações de Guel Arraes, que já faz tempo que esse transformou sua intersemiótica-circense num vício de farsas metalingüísticas (que não parece ter muito mais para onde ir a não ser ficar reafirmando-se em tiques de pós-modernidade). Talento, Arraes tem. Falta-lhe, parece, espaço para uma boa e longa inspiração... por ares menos carregados.

Falando em talento (ou falta de), lembro-me agora do desastre de direção que é essa nova telenovela, Senhora do Destino. Passada num subúrbio de vitrine (a cenografia da Rede Globo só sabe tocar uma nota? Sério: as linguagens mudam e a cenografia continua a mesma?) e com um texto naturalista sem grande inspiração, as primeiras semanas da trama foram um verdadeiro desastre nas mãos de uma direção que parece saber tudo menos encontrar o tom das cenas. Wolf Maya teria dito a jornais que queria fazer uma direção "como de cinema" (ah, o fetiche da grande tela...), mas isso parece ter se resumido a um trimilicar gratuito de câmera e uma montagem com tiques de dinamismo. O fato é que a narrativa não deslancha, os atores bóiam sem encontrar o tom e a trama não se resolve entre a crônica urbana e a narrativa de tipos. Aguinaldo Silva, bom autor de realismo fantástico, parece ainda não saber o que fazer com essa nova empreitada em direção a uma Baixada Fluminense onde as motivações de cena não podem ser resolvidas "num passe de mágica". Passada quase toda num distrito de Duque de Caxias, a telenovela inova em seu espaço-imaginado mas ignora toda a potencialidade do cotidiano do lugar, fazendo de seu desenrolar uma farsa involuntária, de passagens que vão do melodrama naturalista à comédia de erros, sem construir qualquer sentido ou atmosfera, algo que faz de seu cenário, até agora, uma espécie de cartão-postal implícito, invisível na tela e citado apenas como uma conjuntura-paisagem por onde circulam os personagens. Louvável é a tentativa de se construir narrativas suburbanas que tentem fugir do denuncismo ou do assistencialismo social, mas Aguinaldo Silva (ajudado pelas derrapagens da direção) parece não saber ainda que outro movimento possível (um anti-Mulheres Apaixonadas?) seria esse. Por enquanto, resta ali um arremedo de melodrama mexicano com sátira alegórica, mas que não sabe onde pisa. Ou onde quer pisar. E a imagem, seja em TV, seja em HQs, seja no tal do cinema, tem de saber ter corpo, volume e... peso. Wolf Maya grava/filma como quem (meramente) recorta o teatro, e isso não é "cinema"... e nem TV.

Mas o que é que fizeram com o Fama? Tudo certo, nunca houve muita coisa a ser vista nesse arremedo tímido de reality-show e programa de auditório, mas essa terceira versão eliminou tudo o que poderia haver de interessante na idéia original (????) do programa. Ao dispersar os jurados, colocar tudo na opinião da entidade etérea "público" e querer dar mais ênfase na parte Big Brother da coisa, a emissora transformou o que poderia ser uma releitura dos shows de calouros tradicionais num concurso de performances caricaturais e personagens desinteressantes (e música muito ruim, ok). É importante notar que no sucesso de público American Idol (versão estadunidense do Fama), são justamente os jurados a construir para o programa um algo além de uma meia-dúzia de apresentações musicais semanais: tramando um verdadeiro jogo dramatúrgico e crítico sobre a construção desse lugar idealizado da estrela pop. É através das personagens dos jurados (aliás, como fazia Silvio Santos com suas Elkes e Pedros de Laras...) que se constrói uma relação de continuidade e de cena, que faz com que a competição musical ultrapasse a frieza da eliminação semanal de um candidato. Não que eu esperasse ver Angélica entregando um troféu-abacaxi para os eliminados, mas algo de circo, de brincadeira, de jogo tem que ser conjugado para quebrar essa redoma frágil de programa sério e cultural. Entregar a Deus (ou melhor, ao público), foi uma solução preguiçosa e dona de um ideal populista desinteressante, que não só rouba do programa suas características de jogo-de-cena, como faz dele um exercício (constrangedoramente disfarçado) de venda de aparências e "estilos" como produtos. Nesse tipo de exploitation (onde o que está em jogo é o carisma físico e performático dos participantes, além do potencial de vendas...), apesar de todos os pesares, fica evidente que o escrachado Popstar do SBT foi tão mais honesto com o público ("não avaliamos cantores, mas estrelas pop") do que mais bem-sucedido. O lustre de programa de qualidade (homenageando os tais "grandes nomes" de nossa música), somado ao desleixo com que sua construção televisiva se dá, faz desse novo Fama um programinha sem sal, sem rumo, hipócrita e preguiçoso – digno de uma boa soneca das tardes de sábado debaixo do edredon (ah, sim, desligue um pouco a TV).

Felipe Bragança

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