Contra-regra
Coluna semanal de televisão


A Dona da História...

1. A Rede Globo de Comunicações está numa campanha pesada para provar que é o maior patrimônio cultural da história contemporânea do Brasil

2. É inegável que a Rede Globo é a maior produtora de artefatos culturais no país há cerca de 20 anos, sendo responsável pela cristalização do gênero narrativo mais popular de nossa história: a telenovela.

3. O que é curioso é ver como a Rede Globo faz propaganda na TV dizendo que é brasileira de carteirinha mas não arreda pé de seu formato de produção centralizadora, criando arremedos de marketing para maquiar sua concentração de capital produtivo (Brasil Total, por exemplo...).

4. É evidente que o projeto monolítico da Rede Globo não se sustenta hoje como na década de 80/90 – e que os padrões de qualidade Global se tornaram uma superinflada estrutura que em nada fica devendo às superestatais dos velhos e desgastados tempos do nacionalismo-militar.

5. Esse formato, por outro lado, foi o responsável pela capacidade da Globo de se impor hoje diante das pressões internacionais e conseguir se orgulhar de ter cerca de 80% de sua programação composta de produções brasileiras.

6. Se torna inegável, porém, o absurdo que um projeto que para se realizar como "brasileiro" precisa concentrar o poder de produção e veiculação de imagens em mais de 30 pontos de audiência (um terço da população vendo ao mesmo tempo a mesma fonte de imagem), 80% do capital publicitário e 600 milhões de lucro anual, para se manter economicamente – sustentando-se num desejo pré-capitalista de acumulação infinita de seu poder de influência.

7. A Rede Globo de Televisão não pode vir à público dizer que é um patrimônio do povo brasileiro e continuar com o discurso meta-fascista de que ela detém a capacidade e a vocação para representar a cultura do país.

8. É urgente que as novas regras de proporcionalidade da produção independente no Brasil entrem em vigor no país.

9. A Rede Globo teme a ANCINAV assim como, por outro lado, vê nela a possibilidade de se inserir definitivamente como grande representante da classe audiovisual no país – expandindo suas ações para além do inchado espaço da televisão aberta.

10. A Rede Globo quer que as leis de incentivo sirvam para patrocinar telenovelas... É claro que, diante dos mega-empréstimos pedidos pela emissora ao BNDES (5 bilhões), esses incentivos fiscais seriam fichinha – está claro que se trata mais de uma forma de minar/controlar a emergente produção independente no país do que de capitalizar uma empresa que tem R$ 600 milhões de lucro por ano.

11. Certamente as telenovelas da Globo não são piores do que vários filmes brasileiros feitos com dinheiro público. Não se trata, portanto, de qualidade, mas de estrutura econômica: quem paga R$ 20 mil por mês para manter atores sem trabalhar para que não caiam nas mãos de outras emissoras não pode estar no limite de suas forças.

12. A Rede Globo se orgulha de ser melhor que o SBT (principal concorrente) porque não gasta 20 milhões comprando filmes estrangeiros. A verdade é que, por outro lado, a Rede Globo funciona como uma máquina obsessiva de padronização (como as fábricas de produtos inúteis típicas do desenvolvimentismo comunista mais canhestro...) onde nada é exibido sem ganhar um verniz "global" para justificar uma supercorporação de funcionários: as séries temáticas importadas e exibidas de forma "maquiada" no Fantástico são uma prova constrangedora desse vício.

13. A Rede Globo fez um cômico terrorismo na últimas semanas ao colocar no ar (no JN) trechos de telejornais estrangeiros e em seguida proferir a frase em tom grave: "Seria assim que iríamos saber do mundo se não fosse a TV brasileira".

14. De fato, a TV brasileira é patrimônio cultural do país – mas não é de hoje que se debate o quão curioso é que esse patrimônio auto-indulgente esteja concentrado nas mãos de tão poucos. O fato é: a Rede Globo deveria ser obrigada a investir uma boa porcentagem desses empréstimos ("para a mídia brasileira") em abrir espaço para programação independente economicamente mais dinâmica e sustentável.

15. Sabemos que a Rede Globo está de olho arregalado com a Banda Larga e a TV Digital (que não precisará de concessões públicas como ela) e está com medo de uma enxurrada de programação estrangeira minando o projeto monolítico de TV Brasileira que a sustenta.

16. A Rede Globo promoveu seminários na PUC-SP sobre um tal "Conteúdo Brasil" e nele tentou vender a cultura brasileira como uma espécie de businnes do momento – da qual ela seria a maior especialista, naturalmente...

17. Para a Rede Globo, a única solução para nos defendermos da invasão alienígena é fortalecermos sua estrutura proto-estatal e sua tradição anti-democrática – um pouco como a reação radical islâmica diante da invasão da cultura anglo-americana.

18. De fato, o potencial de público e a rede midiática da Rede Globo é, hoje, um território crucial para o cotidiano cultural brasileiro. A questão que se coloca é:

19. Não se pode permitir que a Rede Globo se arvore do posto de grande matriarca da cultura brasileira hoje e se queira como representante maior de nossa identidade sem se submeter a uma intervenção direta em sua programação diária. O Apoio à Rede Globo (e às outras emissoras que estão se ligando a ela – SBT, Record e RedeTV! – já se negaram nesse sentido) só se justifica no sentido de que haja um retorno imediato, proporcional e sistemático de democratização de seu potencial midiático.

20. Uma Rede Globo que queira ser reconhecida como espaço estratégico de propagação de uma suposta cultura nacional terá de deixar de lado sua independência/prepotência programática.

21. Porque não podemos cair mais uma vez na farsa do "conteúdo nacional" e esquecer a necessidade de que a estética e a transformação de linguagem não sejam tratadas como meras embalagens massificadoras, de cuja fórmula a emissora platinada seria a grande artíficie.

22. A Rede Globo não pode querer manter a concentração de poder que hoje detém, deliberando sobre produção e difusão como se fosse a asséptica ditadora de um plano nacionalista de cultura que representaria uma possível totalidade cultural do país (e bancada por empréstimos e sonegações de direitos trabalhistas) sem que se faça uma verdadeira limpeza em suas contas.

23. A lógica do latifúndio e da monocultura não pode continuar como a matriz referencial de qualidade do audiovisual brasileiro. A diversificação dinâmica e a união cooperativa são demandas urgentes que a Rede Globo teme e faz de tudo para continuar minando.

24. É curioso que diante das dúvidas e titubeios em torno do empréstimo solicitado ao BNDES, a Rede Globo dê fim à trégua ao governo Lula e faça do caso Waldomiro Diniz o grande acontecimento do ano de 2004 até agora, alardeando-o aos quatro cantos de seus telejornais...

25. É perigoso que nos deixemos levar pela chantagem corporativa da Rede Globo que usa de sua concentração de mão-de-obra audiovisual para justificar junto à "classe" seu pedido de socorro ao Banco Nacional do Desenvolvimento Social. O que está claro é que não há mais condições de as organizações Globo manterem os moldes cristalizados de seu império diante da diversificação midiática da última década. E que essa concentração de mão-de-obra é justamente um dos fatores da fragilidade de sua bolha produtiva (e olha que muitos profissionais já têm sido colocados na rua...). Um apoio estatal irrestrito, agora, seria nada menos do que uma complacente aceitação da sobrevida de um elefante branco cujo projeto de cristalização cultural se mostra não só ultrapassado para a formação de uma identidade brasileira para as próximas décadas, como inapto economicamente.

Felipe Bragança

Textos da semanas anteriores:
Mormaço (por Felipe Bragança)
Retrospectiva 2003 – Parte 2 (por Felipe Bragança)
Retrospectiva 2003 (por Felipe Bragança)
A Grata futilidade de Gilberto Braga (por Felipe Bragança)
Aos treze (por Roberto Cersósimo)
Algum começo... (por Felipe Bragança)
Uma novela de... (por Roberto Cersósimo)
O canal das mulheres, a cidade dos Homens (por Felipe Bragança)
O fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo);
Televisão cidadã, cidadãos televisivos
(por Felipe Bragança)