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Parte
3: A narração em off e o espaço filmado; e
Deus, precisa ser brasileiro?
CE Bom, para continuar no tema das instâncias narrativas, mas passar do Carandiru um pouco, eu queria dizer que a instância narradora do "off", da primeira pessoa que narra o filme, às vezes cria umas certas incoerências internas. No Homem do Ano, por exemplo, eu não tenho claro para mim se aquela personagem foi levado a percorrer toda a jornada do filme pelas estruturas sociais, e os efeitos dela, ou por um acaso e o cinema atual trabalha muito com essa idéia da tragédia, só que a tragédia não vem mais dos deuses e sim desta tal estrutura social que faz com que o indivíduo não consiga mais ter controle sobre suas ações e decisões. Aparentemente o filme vai percorrendo esta coisa do acaso, até que num determinado momento ele se torna um oportunista e vê que, a partir daquilo, ele pode se libertar de uma condição na qual ele estava preso. Mas tem um "off" no final, onde ele vai dizer que não, que ele era prisioneiro daquela correnteza... LCO Se há uma palavra que define o filme, é a vacuidade: tanto de espaço quanto de clareza de proposta, o filme passa um verniz numa tipologia de página marrom mas, quando você está diante disso, não consegue ver a força que deveria haver ali. As cenas de violência do filme são esvaziadas de qualquer efeito não funcionando como a violência estilizada de um filme de gângster, como violência glamourizada, não funciona como violência que choca, que opera por mecanismo de agressão, não funciona como violência que provoca reflexão sobre o que existe por trás dela... FB Nem como espetáculo físico de cinema... RG O Júnior falou de composição de espaço e eu lembro do CDD, que também opera uma relação muito esquisita com o espaço filmado onde o espaço do filme tem muito pouco a ver com a geografia de onde ele se passa, tornando-se um espaço lúdico até de movimentação dos personagens, mas segue com muita habilidade e inteligência as regras de um filme de "exploitation", conseguindo criar um ambiente de violência gráfica e de vida de alguns personagens, por mais que ele crie um espaço obtuso de movimentação, ainda mais se comparado com o espaço do que é uma favela de fato. Existe um certo tipo de construção, mental, que cria questões sociais a tratar, mas, ao contrário, no Homem do Ano a impressão que fica é que, se os responsáveis alguma vez foram ao subúrbio que tentam mostrar, foram de olhos fechados. Sob este aspecto, o filme é uma continuação daquela série do A Vida Como Ela É, do Fantástico, onde você sentia que faltava claramente a noção do que são os códigos sociais, morais e do próprio funcionamento do espaço e ambiente do subúrbio, nem nos anos 60 e muito menos hoje. Mas, acima de tudo, se a gente estava falando de Carandiru, onde se pode duvidar de um ou outro dos quinze, vinte personagens, mas no geral eles estão presentes, no Homem do Ano não existe sequer um personagem. GS E isso sendo um filme com um protagonista absoluto e um filme feito sob o ponto de vista dele. RG E é engraçado que, sob o aspecto deste protagonista absoluto, existe um filme como Caminho das Nuvens, que é montado sobre um protagonista que não tem a menor tensão, ou seja, não é um personagem e só um sujeito obstinado com a idéia de fixa de ganhar "mil real" por mês enquanto o único verdadeiro personagem do filme termina preso no Espírito Santo no fim do filme, na construção. O único personagem que tem força própria, que não é um arquétipo, o filme abandona e se reúne com a família no final, vendo especial do Roberto Carlos na TV. LA Agora, só um parêntese: o CDD pretende ser uma narração de dentro, não? RG Eu já não sei, porque eu acho que o filtro estético desempenha quase o mesmo papel que o Vasconcellos no Carandiru. Este filtro (inclusive fotográfico) já dá uma certa dimensão de que eu estou vendo de fora. LA Mas o Carandiru e o CDD têm uma coisa que os diferencia que eu acho interessante: o Buscapé é de dentro, e o Luiz Carlos Vasconcellos vem de fora. E o CDD, neste sentido, confunde de uma forma muito mais complicada as coisas, porque o Buscapé é cooptado, e a câmera do Meirelles uma hora é a visão do Buscapé, na outra de não-sei-quem-lá, na outra é a visão do Cesar Charlone. E eu acho que o Carandiru tematiza este problema de quem olha de forma bem mais honesta. RG Não sei se honesta é a palavra, mas muito mais clara. LCO Mas o Ruy tocou num ponto nevrálgico, que é a questão do filtro estético. O vício do público, de uma forma geral, é de ir para um filme destes e pensar nele como "a construção da realidade". E é complicado porque, se você for seguir um dos caminhos descritos pelo Bazin, são filmes que crêem na imagem, a princípio. Então, o problema surge na medida em que o filme não cria um antídoto diante deste olhar viciado do público que quer, diante de um tema deste, acreditar estar diante daquilo que é uma versão final, resolvida, daquela realidade. EV Bom, vamos aproveitar então para redirecionar para outros filmes que a gente mencionou, para seguir o fio da meada. A gente falou rapidinho do Caminho das Nuvens, acho que podemos começar por aí... CE É legal, porque eu acho um mau filme bem interessante de ser analisado. Primeiro, se fosse para fazer um paralelo do Caminho das Nuvens com um outro filme lançado este ano, seria com o Maria: são os dois filmes mais resignados que eu vi neste ano, de condescendência com todo um estado de coisas. Porque o Caminho das Nuvens vai trabalhar com o personagem do Wagner Moura como sendo a nova utopia, a micro-utopia, só que na verdade não há utopia nenhuma, porque ele quer ganhar somente o suficiente para sustentar a família que ele tem se ele tivesse um filho, ele ganharia um salário mínimo, mas como tem vários ele quer ganhar mil reais. Então, ele já esvazia qualquer tipo de aproximação política com o personagem, ele vai despolitizar o personagem: é um personagem absolutamente pragmático, que tem um projeto de pragmatismo. E que vai pontuar o tempo inteiro, o que é muito bem sacado dramaturgicamente, o contraponto entre este personagem com o do filho, porque aí você se reduz a uma relação pai-filho, quando de fato é uma questão de visão de mundo: o filho é um cara muito mais pragmático do que o pai, que acha o pai um doidivanas naquela loucura dele. O que o filme vai fazer o tempo inteiro é deslegitimar a postura deste pai, até terminar no Cristo Redentor, e mostrar o esvaziamento da legitimadade daquele projeto dele de ganhar os mil reais, ou seja, "fique aqui e aceite a situação como ela é", porque no fundo ele queria continuar indo até Brasília, continuando o seu projeto dos mil reais e a própria família vai esvaziar isso. LCO E, embora eu não tenha visto o filme, ele então engrossaria um outro filão em 2003 que é o dos "filmes desencantados". CE Mas ele é meio ambíguo neste desencanto porque você não sabe o que será daquela família quando ela chega no Rio de Janeiro. RG Porque o filme não constrói nada, não há até esta chegada no Cristo Redentor nenhuma idéia de progressão, então você não entende nem qual é o projeto de linguagem do filme, uma vez que ele não chega a construir uma. CE Para pegar a questão do Cristo Redentor: quando o filme do Jorge Furtado (O Homem que Copiava) termina debaixo dele, há toda uma significação aí o Cristo vai perdoar tudo que aqueles personagens fizeram até ali, e se o filme tinha sido distópico até então (pra usar um termo que eu gosto), ele constrói uma possibilidade de renovação a partir daquele final, da carta da Leandra Leal para o Paulo José, onde se constrói uma possibilidade daqueles personagens viverem uma perspectiva melhor de vida mesmo que para isso tenham tido que cometer aquelas transgressões. O filme do Vicente Amorim, quando termina debaixo do Cristo Redentor, isso só traz para mim uma idéia de "aceite a situação como ela é", que é a visão de Cristo no filme do Padre Marcelo que é muito menos, para mim, sobre Cristo do que reveladora do que é a visão de Cristo pelo Padre Marcelo. O discurso da Maria é: "não tente entender, aceite as coisas como elas são" ela fala isso no filme. RG E isso é muito católico, também. CE Depende. Depende da aproximação com o catolicismo, porque o cristianismo ou o catolicismo do filme do Jorge Furtado é o do perdão e há uma certa amoralidade neste perdão. O do outro é o da resignação total. E o filme do Vicente Amorim começa no céu e termina indo com a câmera para o céu como se houvesse uma ordem superior e você tendo que segui-la. Acho o filme determinista mesmo. EV E tem uma leitura mais direta que eu também acho complicada, que é essa idéia do "brasileiro é antes de tudo um forte" e "o brasileiro é bom, se você der para ele uma oportunidade, ele É bom". Neste sentido, eu acho deplorável aquela sequência do trabalho deles vestidos de índios, porque é uma ocupação que não tem nada de degradante no sentido moral do trajeto deles é uma ocupação assalariada, que não cria nenhum problema para a resolução do que estava disposto até então, a busca dos "mil reais". Mas ele coloca uma certa "bondade" acima de tudo, até maior do que o pragmatismo "mil reais por qualquer coisa, não". E eu acho realmente canhestro esta idéia de que nada pode remover os personagens de um trajeto que, mais do que um trajeto escolhido ali, parece querer se indicar que é do "povo brasileiro" existe uma forma de filmar ali a família como representante clara de que o "povo brasileiro é bom". E esta bondade sem limites e quase idiota, como na citada cena dos índios, é paralisante e completamente impossibilitadora de imaginar uma saída de fato para os problemas deste país, porque nada no mundo é tão "bom" quanto esta idealização do "povo". RG E, neste sentido, só tem mais um filme para colocar no bojo desta discussão, que é Deus é Brasileiro, que é um outro filme que tenta compreender qual seria a ontologia do povo brasileiro, seguindo um veio do populismo herdado desde o Getúlio Vargas, segundo o qual, na falta de Governo, na falta de meios, na falta de dinheiro, temos ainda "O Povo". O povo é bom, e é o que resguarda toda a possibilidade do Brasil um dia ainda ser grande, e Deus ainda um dia comprovará que estamos certos. CE Mas no Deus é Brasileiro o povo não é necessariamente honesto, ao passo que, no filme do Vicente Amorim, o Wagner Moura, ao devolver a grana que o menino pega quando estraga a santa (na sequência mais hipócrita do filme, porque o dinheiro da Igreja é do povo), ele vai em direção a isso que você está falando. Eu acho que o Cacá Diegues é mais sutil do que isso, ele vai dessatanizar esta questão moral. Quer dizer, chegando num estado de coisas, o Cacá vai legitimar esta esperteza do povo para se virar: você tem vários indícios ao longo do filme de gente que comete pequenos delitos, a partir do próprio Taoca tem o menininho que tá sempre dando golpe ali no final do filme... EV Mas este é o outro mito que completa a idéia do "brasileiro é bom", que é a "malandragem de boas intenções". GS Mas o paralelo seria talvez não entre os dois personagens do Wagner Moura, e sim do Wagner Moura do Caminho com o Bruce Gomlevsky no Deus é Brasileiro, que não altera a trajetória dele em função de ser escolhido para ser Deus ele vai continuar a missão pragmática dele. RG Eu acho que a gente não precisa é de Deus nenhum para abençoar o brasileiro... EV Mas o que eu acho interessante deste trajeto dos filmes é o próprio sucesso do Deus é Brasileiro. Na sessão que eu vi do filme tinha muito essa idéia, primeiro de ser quase um filme da Embratur, com seu potencial turístico eu vi o filme no São Luiz e do lado da sala tinha um outdoor do governo de Alagoas dizendo "venha conhecer Maceió, que está no filme Deus é Brasileiro"... E eu acho que o filme tinha muito isso na sua recepção, algo de "nossa, como é bonito o Brasil, e quão pouco conhecemos ele..." o Brasil como paisagem, como espaço "divino", mesmo. E a segunda idéia de "como é bom ser brasileiro". Que são posições nas quais você até pode ver sim um componente político, que certamente seria a defesa que o Cacá Diegues faria da idéia, mas que me parece levado com base nos clichês mais óbvios disso, tão alienante como discurso quanto qualquer pessimismo anti-nacionalista na verdade são opostos complementares que levam ao imobilismo. RG E uma vez que o Tropicalismo já nos deu um projeto de conseguir amar o Brasil em todos os seus contrastes, indo do pior ao melhor, é um completo retrocesso você ir fazer qualquer outra coisa. Deus é Brasileiro me parece um filme do Jean Manzon LA O Deus é Brasileiro para mim é a crise e a desistência do intelectual dos anos 60, de saco cheio desistindo de um programa de país e da função de missionário que ele se designou. É um filme velho dos anos 60, e o fim do Governo FHC, onde eu acho que todos estes intelectuais se projetaram e, de uma certa forma, todos se desiludiram, de uma forma ou de outra, e todos penduraram a chuteira. Eu acho que este filme é um acerto de contas deles com eles mesmo. E uma revisão do próprio intelectual: "tô de saco cheio do povo, o povo sabe se virar"... E é autoritário com o Bruce Gomlevsky, tem o lance do realismo fantástico quando tem que levitar, levita... E para mim este filme não representa a saudação de um novo Brasil, Lula, como seria o Bye Bye Brazil em 1979, é mais o apagar das luzes de FHC, e é o seguinte: "eu sou muito mais FHC do que Lula". Me lembra quando o Cacá Diegues e o Nelson Pereira deram uma entrevista dizendo que "é um luxo o Brasil ter um presidente como o Fernando Henrique e o Lula na oposição". EV E é interessante que o filme tenha sido lançado no início do Governo Lula, e logo depois tenhamos visto lá o Cacá Diegues de cara feia no jornal, né... LA Uma coisa meio "O Globo é Brasileiro", ou "Roberto Marinho no Caminho das Nuvens"... (risos) Parte 4: O Homem que Copiava: a mise-en-scène, a construção do mundo e a figura do narrador |
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