Parte 5: Lisbela e o Prisioneiro, a relação de linguagem cinema/TV e as "comédias românticas"

DC – Eu acho que agora a gente precisa falar do Lisbela, que eu acho que é um acontecimento também. Porque é um filme que surpreende, que tem essa coisa de lidar com esse mito do "bom povo brasileiro", mas numa chave que se assume absolutamente ficcional e romanceada.

RG – E é interessante porque tem este trabalho de narrativa também, como no do Furtado: no final do filme cria-se uma espécie de diálogo com o espectador que o cinema brasileiro não faz há muitos anos. Só que, naquilo que a narrativa virava e o diretor-roteirista se mostrava uma espécie de "mastermind", o Guel Arraes tem a humildade de jogar para a galera. O espectador faz o seu próprio filme com a namorada que está do seu lado. Eu acho isso, fora de ser só um "gimmick", está embutido ao longo do filme.

DC – E esta é a forma mais moderna de você lidar com qualquer obra de arte: você saber que ela não se fecha no mundo do autor, e sim no mundo do espectador.

RG – Mas isso eu acho relativo, porque, se o objetivo de um Simplesmente Amor é fazer com que os apaixonados no cinema se dêem um beijo no final do filme, isso é muito fraco.

DC – Eu falo de uma outra relação: do diretor saber que a história que ele constrói só vai terminar de ser construída por aquele que a assiste.

RG – Mas quem não faz isso?

DC – A partir do momento em que o cara cria um mundo pessoal, autoral, ou a partir do momento em que ele cria um cinema industrial total, ele vai estar fugindo da idéia de que o espectador tem sim uma liberdade em relação ao filme, que é inesperada.

EV – Mas peraí: então você está criando uma dualidade que eu acho que não existe. Você está dizendo que quando o cineasta cria um universo autoral, pessoal, onde ele está tentando um diálogo antes de tudo com as suas intenções como autor, ele não iria dialogar com o público?

DC – Eu não estou falando isso, e sim que a obra em si não coloca esta questão, enquanto um Lisbela sim coloca. Se coloca como um filme que lida com um imaginário de público e por isso ele se resolve no público desta maneira.

EV – Bom, eu acho que o movimento mais interessante do filme é o de tentar criar, dentro do jogo da sua construção dramática, sem ser um "gimmick" como disse o Ruy, uma relação metalinguística entre aquele filme americano que a Lisbela vai ver no cinema e o filme que a gente está assistindo. Porque eu acho que ali o filme faz um caminho muito interessante, em especial no que se refere à construção do espaço. Eu tratei disso na revista, num texto em que comparava o filme com o Amarelo Manga: o filme do Guel Arraes constrói um espaço físico absolutamente imaginário do que seja o interior de Pernambuco, o que pode cair numa leitura extremamente rasa daquelas que diriam "ah, não existe este lugar no interior de Pernambuco... nada disso é verossímil"...

DC – Aquela velha discussão de que a ficção não pode ser ficção, tem que ser realidade...

EV – Exatamente. Só que ele está problematizando esta sua relação o tempo inteiro – não só no fato dela assistir aquele filme no qual você vê toda a construção do filme que ele, Guel Arraes, está fazendo; como também ao reproduzir com os atores globais, na sua relação com o espaço do seu entorno e das pessoas/figurantes, o mesmo efeito mitológico, por assim dizer. E são os mesmos figurantes que acabavam, por exemplo, com um Canudos. Porque as pessoas estavam contracenando tentando estabelecer sua relação com este entorno tendo como base uma "verdade", e aí o contraste resultava grotesco entre os rostos daqueles figurantes que viveram (e vivem) Canudos e o elenco global fingindo fazer parte daquele cenário. Já no filme do Guel, esta dualidade de registros é tornada assunto do próprio filme, uma vez que estes atores do "star system" global (Marco Nanini, Selton Mello, Débora Falabella) vivem ali a nossa fantasia – assim como os ídolos americanos vivem a fantasia de Lisbela na tela.

DC – E você colocando a coisa no nível do estereótipo, do clichê, o mesmo vale para os coadjuvantes, como o delegado e o ajudante, ou o cara que finge ser carioca.

EV – Sim, e tem uma relação rica aí de algumas destas interpretações com toda uma herança de chanchada, profundamente crítica o tempo todo. E acho legal falar também que o filme levanta uma questão que já está enchendo o saco, que é o velho papo da linguagem da TV contra a linguagem do cinema. E aí eu puxo aqui uma fala do Jorge Furtado num programa que eu vi há poucos dias, onde ele mencionava uma tecla que eu sempre bati: o problema da diferença de TV e cinema nunca é, necessariamente, um da relação da construção audiovisual das duas linguagens, e sim da diferença de como eles são assistidos. Então, é importante você ver como é tosco aquele argumento que iguala plano rápido à TV ou passagem de câmera, câmera mais despreocupada com cuidados de luz na TV; e uma imagem construída num "verdadeiro cinemascope" ou planos longos como sendo o cinema. Isso é uma bobagem, e eu fico revoltado quando ouço alguém dizer que o Lisbela seria exemplar da linguagem mal resolvida da TV no cinema.

RG – A coisa mais básica da gramática televisiva, pelo menos no campo da telenovela, é aquele diálogo em plano e contraplano, que você corta em close da testa até o queixo – porque a tela da maior parte das pessoas que vê TV no Brasil é pequena, então tem que ter a tela inteira. Procura isso em um filme, em Lisbela – não tem, e isso é o básico desta gramática visual.

EV – Tem em um filme – Sexo, Amor e Traição. Este sim é filmado como se fosse uma novela.

LA – Mas aí eu acho que também temos que fazer uma aproximação também com o teatro – Sexo, Amor e Traição parece uma peça filmada. E é de uma involução incrível, porque ele filma colocando os caras ali na frente, como num palco. A Partilha (que era de fato uma peça), Amores Possíveis, todos têm um pouco disso...

CE – Os Normais...

RG – Os Normais tem uma coisa de diferente, porque ele assume o cenário como cenário. E, em compensação tem o Moacyr Góes aí, um cara que, vindo do teatro... (risos)

EV – Mas no Sexo, Amor e Traição, o que mais me chocou foi que, por acaso, eu tinha visto dois dias antes de ver o filme uma pornochanchada no Canal Brasil, chamada SOS Sex Shop ou Como Salvar meu Casamento (tinha os dois títulos lá, eu confesso que não fui pesquisar qual era o original). Eu fiquei maravilhado como o filme conseguia dar uma dimensão dos problemas banais das pessoas no seu dia a dia, e com isso incluía o sexo como assunto no cinema brasileiro, de forma incrivelmente direta e onde o domínio de linguagem não deixa de me impressionar. E aí me chega um filme como este do Jorge Fernando, e eu fico chocado em ver como o sexo surge de uma forma tão menos natural, vinte e cinco anos depois! Como o Morris (Luiz Alberto) disse, só pode ser involução! Como ele fica fetichizado...

LA – É o sexo sem nudez, onde ninguém tira a roupa pra trepar. Sexo, Amor e Traição não tem sexo nem amor... agora, tem traição a uma série de coisas, inclusive o cinema.

EV – Mas o que me choca é a comunicação do filme com o público que assiste cinema hoje – eu vi a sessão no Cinemark cheio, e as pessoas riram muito, um público eminentemente jovem. E aí entra o meu choque, ainda mais na comparação com a pornochanchada: ver que o que mudou foi o parâmetro, não só de linguagem, mas acima de tudo de desejos, vontades, fetiches. E isso começa por constatar que na época (anos 70) os cineastas brasileiros faziam parte de uma elite no máximo intelectual, mas certamente não financeira. Como os atores, num momento em que o star system global era insipiente, também não eram a elite financeira. Isso tudo para dizer que para mim fica muito claro dentro deste contexto audiovisual maior, que hoje as aspirações do público são aquelas vendidas pela TV, onde a relação das pessoas com aquelas figuras ficcionais muda de paradigma, e passa a ser: "nossa, deve ser muito bom morar na Lagoa, vizinha de frente de uma Malu Mader e uma Alessandra Negrini, e viver estes dramas que são tão chiques – decidir entre o Murilo Benício e o Fábio Assunção". Então os filmes não falam mais, como na época da pornochanchada, de um personagem que você É, e que por isso se vê refletido. Agora, eles falam daquilo que você tem que querer ser, mesmo que isso seja inatingível.

DC – Que é um trabalho típico da novela, de onde vem isso tudo.

EV – Pois é, mas meu choque foi enorme vendo estes dois filmes em dois dias, que me pareciam feitos em planetas diferentes. Tem uma frase no filme do Jorge Fernando que é a prova disso, chega mesmo a ser revoltante: quando a Betty Faria vira-se para seu filho, Murilo Benício, quando ele diz que vai passar a pagar o aluguel da casa. Ela diz "mas, meu filho, você não pode bancar o aluguel disso aqui, você vai terminar num conjugado da Tijuca!". Então, isso surge como a encarnação moderna do inferno, e todos da platéia, supõe-se, entendem isso como tal, se identificam e riem.

GS – E que inclusive é de total ignorância, porque a Tijuca não tem conjugados!

EV – Agora, o pior é ver o que acontece no filme então: a cena termina, se desenrolam outras tramas, e depois voltamos ao personagem com ele morando no mesmo apartamento de antes. Não se fala mais no que aconteceu, nem se tem qualquer indício de que ele esteja ganhando mais dinheiro do que antes, então o que pode se supôr é que, ao ouvir aquilo, ele decidiu: abro mão da minha independência e prefiro morar de favor da mamãe do que ir para o tal conjugado da Tijuca.

LA – E no fundo a musiquinha: "deixa o filme rolaaar"... (risos)

GS – Quando o Eduardo fez um paralelo da pornochanchada com esse cinema contemporâneo, eu queria falar de uma coisa que me incomoda muito, e eu não vou nem falar sob o ponto de vista estético, mas as pessoas iam ao cinema querendo ver aquilo que elas não viam na TV – seja sexo, seja uma história politicamente mais incomodativa, pensando em termos de cinema brasileiro. Hoje a pessoa vai ao cinema querendo ver a mesmíssima coisa que tem em casa, na televisão.

LA – Mas é o mesmo jeito do que leva as pessoas ao teatro para ver os atores da moda.

CE – Mas com a diferença de que na TV tem sexo, né?!

EV – E aí eu acho que de fato Os Normais é bem mais interessante que o Sexo, Amor e Traição – por assumir sua matriz televisiva, antes de mais nada, ele tem muito mais prazer em apostar no desbocado, na piada de mau gosto, nas piadas grosseiras e escatológicas, no sexo como assunto mais popular mesmo. Então, Os Normais de uma certa forma recupera e trabalha muito melhor uma tradição de falta de "bom gosto" do cinema brasileiro, do que um Sexo, Amor e Traição – que, por ser um produto " de cinema" ele se veste de um verniz de "qualidade", de bom gosto, que é o que há de mais grotesco.

LA – Mas o que eu acho dos Normais, concordando com essa sua constatação, é que me parece haver ali uma "liberação da classe média", onde não é que eles estejam "liberando maus costumes", e sim uma coisa forçada – não me parece que eles estão reagindo a qualquer bom costume. E aí é que eu acho que se diferencia também das pornochanchadas que você citou – que não eram também propriamente reações, mas era um tipo de reação num contexto maior. Os Normais, não sei, me parece um luxo caipira. A Globo Filmes, ela é meio caipira...

CE – Os Normais vai pleitear a falta de decoro no linguajar, no se relacionar, mas isso não me parece naturalizado, como na pornochanchada era. Nos Normais, eu quase vejo uma placa: "E Agora: Falta de Decoro!".

LA – Uma coisa meio "Eu quero ter o direito de falar palavrão igual ao povo!"...

RG – A maneira da década de 70 fazer comédia de costumes é a pornochanchada, e na própria estrutura narrativa existia uma forma de lidar com os problemas da vida familiar, da vida social, das redondezas – muitos dos filmes lidavam com vizinhança. O que me impressiona nestes pilotos de TV passado para o cinema, ou o cinema feito sob este olhar, é que, enquanto na pornochanchada havia sempre um problema e ele era resolvido, hoje em dia se psicologisa (e não psicanalisa) uma dívida eterna social ou conjugal que você tem que pagar: "conviver com minha mulher é um inferno, mas eu vou viver com ela, porque sem ela é muito pior". Pinta-se uma paisagem de classe média que eu preferia morrer a ter que viver. No Sexo, Amor e Traição, o filme começa e você não consegue entender por que o Murilo Benício tá casado com a Malu Mader e vice-versa, por que o Caco Ciocler tá casado com a Alessandra Negrini... se bem que esse aí a gente até entende... (risos) Enfim, com vinte minutos de projeção você está pensando: "tudo bem, gente, é simples: separa!". E nos Normais é parecido – sustenta-se sobre a idéia de como é esquisito estar com outra pessoa, toda a potencialidade cômica disso, e pronto.

EV – Mas pelo menos os Normais leva este lado do inferno que você mencionou para o lado cômico – sempre com uma visão de que este é um inferno bastante agradável, por assim dizer.

RG – Acho que mais pitoresco que agradável.

EV – Não, eu acho agradável mesmo, ele diz que sejam quais forem os problemas, você pode rir deles. Num Sexo, Amor e Traição estes problemas risíveis que a trama levanta são considerados muito sérios, e busca-se ali uma conciliação final – que é o mais grave porque passa, inclusive, pelo personagem do Fábio Assunção ser punido exemplarmente por ser "o cara que trepa com a mulher dos outros". Eu nem falo pela cena do atropelamento, que é grotesca, mas a do bar, onde ele é recusado pelas mulheres por causa do bafo! O Fábio Assunção sendo recusado por causa do bafo!! Porque se quer passar que "isso não é um bom modelo para nossa juventude, este desregrado!"

LA – Você falou dos personagens, mas tem a Heloisa Perissé, que é bem resolvida com o marido dela – mas o marido dela é um estrangeiro, um negão americano.

EV – E aí entra a questão do Dom onde fica claro como a visão dos relacionamentos humanos nestes filmes é muito triste. Porque você chega no final e conclui que, pela lógica destes filmes, para você sobreviver ao lado de alguém todo mundo tem que ser meio débil mental. Porque eles criam uma tal intriga que só leva a uma conclusão, pela armação dramática tosca deles: daqui para diante, esse casal só continua junto se alguém for muito débil mental. Aí você chega a conclusão: "Ah, agora fez sentido: são débeis mentais!"

CE – Mas eu acho que o que o Dom coloca de diferente, tirando o julgamento e ficando com o que ele se propõe, é que tanto nos Normais quando no Sexo, Amor e Traição e no Cristina Quer Casar você tem o esvaziamento do amor romântico. O termo romântico na "comédia romântica" está mal empregado, porque não há romance. O Dom resgata este amor romântico, que está no Lisbela também – o cara se apaixona de cara e de fato pela mulher. Só que depois ele vai passar o filme inteiro desconstruindo a possibilidade do amor romântico – primeiro porque o cara é um doente, e segundo, que é a coisa que me soa absolutamente ultrapassada no filme, é que o problema que há ali é que a mulher trabalha fora. E, pior, é uma atriz – ou seja, ela tem mais de uma identidade e a possibilidade de representar. E o homem, além de ser um ciumento compulsivo, também fica maluco porque a mulher dele não está em casa! O que me leva à conclusão de que o único cineasta que sabe filmar relacionamentos no Brasil hoje é Domingos Oliveira. Primeiro porque acredita nos relacionamentos – e não nos relacionamentos românticos. Ele filma gente que casa cinco vezes e continua se apaixonando. Ele acredita no amor e no que ele está filmando. Os casamentos acabam, mas as pessoas se reciclam e continuam.

EV – Ou seja, as pessoas nos filmes deles vivem a vida como ela de fato é pra todos nós...

CE – E não por acaso, o Dom termina em morte e os outros filmes...

EV – ... terminam em morte, também, com a volta daqueles casais para as suas casas!

CE – São filmes reacionários e resignados!

EV – E só para registro: no final de Como Salvar Meu Casamento, eles resolvem os problemas do relacionamento numa cena de sexo anal no chuveiro. O que deixa bem claro onde estão os autênticos problemas.

CE – O problema é sempre mais atrás... (risos)

Parte 6: Apolônio Brasil; e as relações sujeito-objeto nos documentários

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