Michael Jordan despede-se das quadras
Um filme tem começo, meio e fim bastante definidos. A vida, ao contrário, salvo algumas exceções – como a dos suicidas, que decidem seu próprio fim –, não tem começo determinável, o meio é um emaranhado de confusões e o fim é imprevisível. Uma carreira no esporte é uma mistura sem dosagem exata desses dois modelos: nunca se sabe muito bem sobre o sucesso ou o fracasso, mas sabe-se que começa-se de um ponto (a posição que ocupará, as tarefas que deverá desempenhar...) e, em certa medida, sabe-se também como terminará (embora em certos casos, como o do jogador Bebeto, não se saiba dar o ponto final).

Esse começo tão pseudo-filosófico é apenas para começar a falar da última partida de Michael Jordan como jogador profissional de basquete, ocorrida dia 16 último, última rodada da temporada regular 2002-2003. Ao contrário das duas aposentadorias anteriores, o último jogo não veio compensado por um grande título, no jogo final da temporada, com Jordan exibindo sua incrível atleticidade para dar a seu time mais um campeonato (dos seis que conquistou com o Chicago Bulls). Veio cedo, fechando uma temporada irregular de um time irregular: o Washington Wizards, time do qual Jordan é acionário e gerente geral. Imerso na temporada em confusões e contusões, os Wizards não conseguiram nenhum dos oito lugares destinados à Conferência Leste na série final decisiva que levará um time ao posto de campeão, os playoffs.

O time que os Wizards enfrentariam na final, o Philadelphia 76ers, já estava classificado com folgas, e ostentava um dos maiores jogadores da nova geração, Allen Iverson, outrora responsável por um majestoso drible diante de Jordan. Nessa temporada, no entanto, Iverson foi só elogios: cedeu-lhe o lugar de titular no Jogo das Estrelas – competição fora do campeonato, no meio da temporada, em que as conferências do leste e do oeste exibem os melhores jogadores escolhidos por voto popular e pelos técnicos de cada time – e ainda declarou que, com 50 anos, Jordan ainda seria melhor do que metade dos jogadores da NBA.

Abrem-se as cortinas e Michael Jordan aparece, aparentemente estranhando tanta pompa. O show, contudo, está todo ensaiado: o grupo vocal Boyz II Men canta uma música sobre despedida, a platéia aplaude, os jogadores cumprimentam. Jordan, mais jogador do que mito, só pensa em jogar, se apresentar mais uma vez.

Começa o jogo, Jordan erra os dois primeiros arremessos. O Philadelphia mostra-se mais time, marcando os jogadores do Washington como se já estivessem nos playoffs, e o Washington não tem muita resposta, e logo passa a ficar comodamente atrás do placar. Com a primeira cesta de Jordan, o público exulta: eles não estão mais vendo um jogador, eles querem a lenda. Michael quer apenas jogar seu último jogo. E o jogo, convém lembrar, era na casa do adversário.

O jogo prolonga-se sem sobressaltos. Os narradores comentam quando será a jogada que ficará para a história como a última grande jogada de Jordan, o público espera algumas de suas jogadas mágicas, como suas acrobáticas inovações – pular de um lado da cesta para acertar a bandeja do outro, trocar de mão no ato do arremesso – ou então uma mostra de sua monstruosa elasticidade. Jordan, ao contrário, entrega sua maestria aos poucos. Cestas exatas de meia distância, uma ou outra assistência de grande beleza. O show estava armado para Michael, mas, para o próprio Michael, ele só merece ser protagonista quando ganha alguma coisa. Um campeonato.

Em algum momento do terceiro período, Jordan recebe uma bola sozinho embaixo do garrafão. Pronto: estava deflagrado o momento de sua última slam dunk, energética e plástica enterrada que fez sua fama no começo de sua carreira. Mas Jordan é hoje um veterano e, como todo grande veterano, tem a discrição como uma qualidade em alta conta. Pula, enterra, mas apenas deixa a bola fazer seu percurso. Como se, no gesto de despedida, desse apenas um beijo na testa daquela que infinitas vezes beijou tão sofregamente que causou inveja em todo e qualquer mortal que tenha visto tamanha força de enlace.

Michael Jordan não é só o maior jogador de basquete de todos os tempos. Ele também é um inovador do basquete como espetáculo. Num jogo dominado por grandes arremessadores e enormes pivôs, ele segue a herança de Julius Erving (famoso como Doctor J) e faz da velocidade seu jogo, de sua elasticidade cria o armador que sai da linha de 3 para, correndo, voar por cima da tabela, do ala, do pivô, para colocar a bola na cesta. Nesse sentido, ele é o pai de toda uma geração de novos armadores e alas-leves (Allen Iverson, Tracy McGrady, Kobe Bryant, Vince Carter) que transformaram o basquete e adicionaram um adicional visual, a plasticidade das jogadas, àquilo que já era considerado perfeito. Jordan é uma espécie de Martin Scorsese do basquete: tomando para si uma grande tradição americana, ele transforma-se logo no melhor do esporte para, mais do que ser o melhor, inovar de dentro tanto no sentido da intensidade quanto acrescentar um diferencial de gosto, um sentido de visualidade e equilíbrio incríveis. Michael inclusive obrigou o basquete a, como nos filmes de Scorsese, realizar montagem frenética, movimentos de câmera, tudo para captar toda a elasticidade dos movimentos. Jordan cineasta.

No quarto período, Jordan começa no banco de reservas. O público grita "We want Mike", a câmera focaliza um Jordan que não sabe o que fazer, quase um bebê nascido naquele instante. Ele parece não entender o que acontece: "Estão fazendo todo esse escarcéu para mim?" O técnico o coloca por mais um instante, cedendo aos apelos do público, e, por extensão, de todos aqueles que queriam ter mais um pouquinho de Jordan. Ele recebe a bola, tenta o arremesso, recebe falta. Dois últimos arremessos, que ele acerta. Faltam poucos minutos, ele volta para o banco de reservas. O jogo continua, ninguém se importa. O público começa a invadir a quadra meio minuto antes de acabar o jogo. Jordan não mais é jogador de basquete. Ele recebe a bola do jogo, talvez a homenagem que mais lhe tenha tocado o caração. A Bola.

Enquanto Jordan vai para os camarins, comentaristas e jogadores tentam sintetizar a carreira de Jordan, falar sobre o que sua passagem pela história do jogo significa, comentar a intencional discrição do jogador-artista em seu último jogo. Alguns pareciam até acreditar que faltava alguma coisa para um gran finale.

Só que Jordan é maior ficcionista do que os organizadores do evento. Uma partida perdida não é um finale, é um epílogo. Daqueles em que se diz: essa última batalha, fazer o quê, foi perdida, mas a guerra inteira foi vencida com brilhantismo. Olhando em retrospecto, o gran finale é sua atuação no Jogo das Estrelas 2003, em que, reserva, todos os titulares decidiram dar seus lugares para Jordan começar a partida. No jogo, Jordan não fez por menos: jogou tudo que podia, deu provas do grande jogador que era e, quando foi momento de decidir, deu seu clássico passo para trás, esperou faltarem alguns segundos no relógio, fugiu milimetricamente do marcador e acertou um arremesso inacreditável como fez infinitas vezes para decidir jogos em sua carreira. O tipo de cesta que alguns jogadores só ostentam umas cinco vezes na carreira. O jogo continuou, e por um acaso do destino, o Oeste virou, com grande atuação de Kevin Garnett na prorrogação. Mas aquilo é a parte de vida do basquete, em que o fim é imprevisível. Na parte de ficção, aquela cesta foi a decisiva, deu a glória final a Jordan em sua despedida no meio das estrelas, dos gigantes. O jogo acabou ali. Aquele que uma vez foi chamado "Air" volta à Terra. Mas a lembrança sempre vai deixá-lo lá: no ar, levemente caindo antes de soltar a bola, caindo para trás e observando a parábola que a bola descreve para atingir a cesta, sem aro. Para aquele que fez o tempo parar, nada melhor do que guardar uma imagem que pára o tempo.


Ruy Gardnier