O Custo da Coragem
Joel Schumacher,
Veronica Guerin, EUA/Irlanda, 2003
O que esperar de um filme "sério" do mesmo diretor que nos trouxe alguns dos mais destacados exemplos de reacionarismo moralista no cinema recente (como 8mm, Por um Fio e Ninguém é Perfeito)? Se você está pensando "absolutamente nada", más notícias: O Custo da Coragem é bem pior do que isso. O que Joel Schumacher faz aqui é pegar uma história, em tudo semelhante ao recente caso Tim Lopes no Brasil, e dar a ela um tratamento ainda mais sensacionalista e maniqueísta do que qualquer cobertura que a Rede Globo jamais sonhou sobre nosso caso nacional.

Para que ninguém se sinta enganado, depois de uma abertura com uma câmera que desce do teto de uma igreja (já deixando claro que veremos a história de uma "santa"), Schumacher mostra logo a que vem: uma sequência da jornalista Guerin sendo "apresentada" ao problema das drogas enquanto passeia por uma rua de Dublin onde seringas jogadas pelo chão são usadas por inocentes crianças como brinquedos (em câmera lenta, nem mais nem menos), e onde pessoas que usam jaquetas de couro preta e andam em Mercedes pretos maltratam outras pessoas em ambientes esfumaçados (ah, estes representantes do demônio que são os traficantes de drogas!). Daí para a frente, azar de quem se dispôs a assistir, pois este é do tipo de filme onde os "homens maus", não obstante serem traficantes de drogas e assassinos, gargalham em funerais e eventualmente aparecem também envolvidos em sexo perverso e adúltero – enquanto a heroína não parece jamais ter participado de atos de qualquer relação carnal, canonizada pela sua condição heróica.

O Custo da Coragem é, em suma, o tipo do filme feito para chocar a sua avó (não importando a idade que você tenha), mas que fora isso não cumpre qualquer outra função. Ou melhor, até cumpre: dar ao produtor Jerry Bruckheimer (para quem não esteja ligando o nome à pessoa, o homem por trás de franquias como Bad Boys ou de filmes como Con Air, Top Gun, Armageddon e 60 Segundos) a esperança de ir para o Céu – e de preferência encher os burros de dinheiro com a tragédia alheia no meio do caminho. Afinal se, como afirma a bizarramente laudatória narração final, a morte de Veronica Guerin resolveu todos os problemas de violência e drogas na Irlanda, não dá para senti-la assim como uma perda tão grande; ou, por outra, se os problemas foram resolvidos, e o filme não é uma denúncia, qual é exatamente sua função? Claro, uma Veronica Guerin viva não teria a menor graça: urubus como Bruckheimer vivem de farejar a carniça de uma morte como esta para fazer filmes que nos ensinem que fazer o bem sempre compensa, fazer o mal sempre é condenado.

Uma idéia tão inovadora que realmente não poderíamos passar sem este O Custo da Coragem – ou melhor, até poderíamos, visto que há menos de dois anos um outro filme já havia contado esta mesma história com alguma dignidade (Alto Risco, de John Mackenzie). Dignidade é o que ninguém nunca acusou Schumacher de possuir – e de fato há planos neste filme para arrepiar os cabelos da nuca. Planos onde ele filma com requintes de sedução audiovisual os mesmos horrores que ele parece querer denunciar, numa aparentemente inconsciente dubiedade de propósitos: o mundo dos gângsters e suas execuções, afinal, em tudo parece mais atraente do que a existência monástica, de plástico, de Guerin e sua família. Planos como os do final: a câmera que sobe pelo teto solar do carro da recém-assassinada Guerin, após refastelar-se com as imagens de seu corpo sem vida.

Não é nem o caso de acusar Schumacher de canalhice: trata-se claramente de um caso crônico de ignorância mesmo. Não entendendo bulhufas de cinema, não consegue articular mensagem com forma e se deixa levar pelos clichês do filme de denúncia, sem entender exatamente o que está denunciando no final das contas. Faz um filme odioso, maldoso, que a nada serve, uma vez que ninguém descobrirá nada de novo sobre os "males do mundo" após assisti-lo. No máximo alguns mais sensíveis se revoltarão ao ver como se tenta diminuir a experiência humana a uma série de clichês dramatúrgicos, como forma de provar uma tese pateticamente conservadora. O Custo da Coragem, sem qualquer arroubo fascista, é filme para a fogueira.

Eduardo Valente