Linha do Tempo
Richard Donner, Timeline, EUA, 2003
Por mais que haja uma relação inegável do último filme de Richard Donner com a repercussão e a onda criada em torno da trilogia O Senhor dos Anéis, é preciso lembrar que em 1985 – portanto há quase vinte anos – ele foi o diretor de LadyhawkeO Feitiço de Áquila, belo filme que já havia buscado num imaginário povoado por tipos e lendas medievais os ingredientes para uma aventura infanto-juvenil. Oportunismos à parte, Linha do Tempo não deixa de ser um filme em que Donner retoma seu lado de fabulista, ou seja, não deixa de ser um filme que, antes de simplesmente moldar-se a uma brecha de mercado, faz algum sentido dentro da obra de seu diretor.

Algum sentido, mas não todo. Fica difícil compreender, por exemplo, a maneira como é conduzido o próprio ponto de partida do filme: a fenda no tempo que permite que um grupo de pessoas, em sua maioria estudantes de História ou arqueólogos, vá parar na França em 1357, justamente no dia em que uma importante e decisiva batalha será travada entre franceses e ingleses durante a Guerra dos Cem Anos. O diálogo entre passado e presente é de tal maneira um excedente dentro do filme – e este, talvez consciente disso, praticamente o menospreza em muitos momentos – que não resta dúvida quanto à insustentabilidade do seu argumento. O que pode haver de mais interessante com relação aos perigos e às vantagens de uma volta concreta ao passado – e como futuro, passado e presente podem repercutir diretamente um no outro – está revestido em Linha do Tempo de discussões que O Exterminador do Futuro ou o próprio De Volta para o Futuro conseguiram abordar com melhor consistência. Tudo que diz respeito a esse conluio temporal aparece de forma muito boba no filme de Donner. A velha coisa de que algo tido como dado histórico acaba se revelando como um fato diretamente envolvido com a pessoa que viajou do presente ao passado também encontra seu lugar em Linha do Tempo, talvez a comprovar que o filme não pretende mesmo inovar em nada.

O filme até funciona como criação de época, consegue prender o espectador na atmosfera de Idade Média desejada (vale ressaltar que o modelo em jogo é claramente não historicista e sim derivado de um imaginário que a literatura e o próprio cinema ajudaram a fomentar – principalmente através de variações em cima da mitologia celta, como no filme Excalibur, de John Boorman), mas, quando decide intercalar as cenas ali ambientadas com as do presente, sofre de uma carência de interesse absurda. O montador Richard Marks (que já acompanhara Donner em outro declive, o filme Assassinos) não consegue esconder o desconforto que Linha do Tempo impõe nos cortes para as cenas na ITC, a corporação responsável pelo meio de transporte intersecular (uma engenhoca que mistura características das máquinas do tempo dos filmes antigos de ficção-científica com parafernálias mais modernas e um jogo de espelhos altamente bizarro). Para atenuar as passagens durante momentos-clímax do filme, o processo de edição se vale justamente de um mecanismo aparentemente paradoxal: um flash de luz e um som como se fosse um batimento cardíaco (recurso muito comum em thriller, e aqui realmente desnecessário) pontuam o corte para o presente a fim de mostrá-lo como algo em que se deve depositar tensão e atenção.

Mais até do que O Senhor dos Anéis, Linha do Tempo tem cara de filme-RPG. Seus personagens não fizeram outra coisa senão se meter num jogo cujo tema dominava suas imaginações. Basta lembrar que Marek, logo no início do filme, maravilha-se com a escultura de pedra que confere uma forma imutável e (ao menos supostamente) perene do amor de um casal. Ao voltar no tempo, Marek (cuja aparência já se assemelha à de um cavaleiro medieval) viverá um romance súbito com Lady Claire, sua musa dos livros de História, e permanecerá no século XIV, para se comunicar com os amigos do "futuro" através exatamente daquela escultura e de um escrito deixado numa lápide. A arqueologia do passado histórico, para os personagens de Linha do Tempo, é a arqueologia de suas próprias vidas.

Linha do Tempo se situa a meio caminho entre o épico e o modesto divertimento de um cineasta antigo no ramo. As cenas de batalha que ocorrem na primeira parte do filme, com meia dúzia de figurantes e integralmente construídas com planos relativamente fechados, sugerem uma comprometedora economia de meios, e chegam a parecer uma das encenações históricas do Discovery Channel – onde o intuito é mais didático do que espetacular. O curioso de tais cenas, acima de tudo, é que elas estão num filme de Richard Donner, consagrado diretor do cinema-espetáculo em sua expressão mais autêntica (Os Goonies, Maverick e toda a tetralogia Máquina Mortífera são alguns de seus filhotes). Mas o filme se sai bem quando atinge a principal seqüência, a da batalha final no castelo de La Roque. No mínimo os planos em que flechas com pontas flamejantes riscam o céu noturno de um lado a outro já valem o filme. Ao rechaçar os efeitos digitais, Donner fez uma cena que, se não simula a multidão que provavelmente estaria envolvida naquele embate, pelo menos conta com excelente locação e, sinceramente, ainda é bem mais estimulante que a massa virtual forjada sob as pretensões monumentais de Peter Jackson. Sem pender tanto para o monumento, e mantendo em movimento o enredo épico-romântico (aqui nem tanto épico quanto somente romântico) de que Donner jamais fez questão de se afastar, Linha do Tempo é menos pretensioso do que a maioria dos filmes de aventura que flertam com o mesmo imaginário. Mas deixa muitíssimo a desejar como quebra do considerável jejum após Máquina Mortífera 4. Embora o retorno seja extremamente bem-vindo, o resultado bem que poderia ser diferente.

Luiz Carlos Oliveira Jr.