Peter Pan
P. J. Hogan, Peter Pan, EUA, 2003
Quando J. M. Barrie escreveu Peter Pan, fato que completa cem anos agora, ele podia nem saber mas estava criando o típico conto de fadas do século XX: além da capacidade de fascinar as crianças com sua história que sempre cheirou a mito libertário infantil, ele criava um compêndio de leituras aplicadas em outras áreas do conhecimento. Assim, quando a psicologia adiciona ao seu instrumental a "Síndrome de Peter Pan", não parece que Barrie não tenha sido seu autêntico criador. Ou seja, não se trata tanto de se aplicar um conceito presente num outro meio (para ficarmos na comparação com o uso de Édipo na psicanálise) para a teoria de seu campo: de fato, Barrie já criara Peter Pan com a tal síndrome em mente, ele só não se interessava em ser um psicólogo. Esta pequena introdução serve, acima de tudo, para entender que Peter Pan, segundo P. J. Hogan, é uma história que funciona em vários níveis, nenhum deles cabível no estrangulamento de um simples gênero, especialmente não na idéia de "filme infantil".

O que, aliás, levanta um outro ponto interessante: a confusão entre a noção de filme infantil e filme infantilizado. É fato que as crianças costumam ser muito mais perceptivas e complexas do que a imagem que os adultos preferem criar desta fase da vida. Assim sendo, acho complicado que se assuma a posição de que Peter Pan não funcione também como filme para as crianças, por sua enorme complexidade. Sim, ele pega, por exemplo, o conteúdo erótico existente na história de Pan e Wendy (e Sininho, aliás) e o explora com alto grau de ousadia e, ao mesmo tempo, sutileza. No entanto, este conteúdo erótico de dois pré-adolescentes se descobrindo é apenas óbvio, e assexualizar a criançada é um tremendo moralismo. De outro lado, também é verdade que Hogan não foge da discussão central por trás da figura de Peter Pan: vale a pena conformar-se dentro das regras da sociedade, abrindo mão da sua liberdade por manuais de convivência e rituais cristalizados? Quando Pan pergunta para Wendy se, caso ele saia da Terra do Nunca, vai ter que frequentar a escola e trabalhar num escritório (ao que ela responde que sim, provavelmente), sua expressão de nojo completo por esta possibilidade pode ser considerada uma "má influência" pelos papais e mamães. No entanto, as crianças lidam com esta realidade de forma muito menos direta do que "seguir os maus exemplos", como se queira crer. Eles sabem pensar, por incrível que pareça. Assim, se "filme infantil" deve ser aquele que mecanicamente tenta passar regras de "bom comportamento", Peter Pan de fato não é um deles. Ainda bem. Mas é, perfeitamente, um filme para as crianças.

Isso se dá, principalmente, pelo trabalho visual de Hogan, que cria um ambiente fantástico na Terra do Nunca que não se rende a um tolo virtuosismo de reconstituição ou de efeitos visuais digitais impressionantes, e sim que assume o seu caráter de construção, de fantasia, de sonho (com um toque quase felliniano no seu mar fake, por exemplo). Com isso, há algo de profundamente lúdico na construção da Terra do Nunca, que se parece com um parque de diversões gigantesco (e sendo um espaço da fantasia infantil, é apenas adequado que seja assim), plenamente atingível pelas crianças da platéia. O único elemento que destoa um pouco aqui é o jacaré Tic-Tac, efeito especial excessivamente virtuoso na sua monstruosidade, único ponto onde a representação galhofeira da animação clássica da Disney parece levar vantagem sobre o filme de Hogan.

Este aspecto lúdico, sonhador, se relaciona também com a aceitação da narrativa do filme como conto de fadas, como arte da narração de uma história, antes de tudo. O tema do narrador e do criador de sonhos é presente no filme desde a abertura (e sua narração em off auto-consciente), mas aparece tematizado na própria história quando os Meninos Perdidos resolvem "adotar" Wendy como sua mãe, e colocam na figura materna uma atribuição principal: contar histórias. Contar e ouvir histórias é o que nos fascina mais, tanto na infância quanto depois dela (é pelo mesmo artifício que Wendy vai dominar os piratas mais adiante). Histórias têm um quê de sonho, e é deste aspecto onírico que Hogan nunca foge. Inclusive no seu aspecto mais negro: os pesadelos – que povoam os contos de fada desde sempre, e aqui aparecem em vários momentos (como na representação das sereias). Hogan faz uso de uma impressionante palheta de cores e luzes, jogos de claro e escuro construindo alguns planos excepcionais (como aquele em que Wendy emerge do escuro da floresta), todos ampliando sempre a mistura de fantasia, sonho, pesadelo.

Prova maior da sua vontade de não vender seu peixe por preço menor do que ele tem, não simplificando aquilo que sempre foi complexo, é o tratamento de Hogan ao Capitão Gancho. Primeiramente, por uma sacada interessantíssima: a de colocar o mesmo ator que interpreta o pai de Wendy no papel de Gancho, o que já dá vazão a uma série de interpretações possíveis para a figura do vilão fantasioso (e que explica uma tematização bastante presente, de um certo fascínio dela pela figura do pirata). Mas, além disso, o que não escapa a Hogan é a figura arquetípica do vilão, que Gancho representa: quando o encontramos, ele está quase "aposentado", porque Pan saiu da Terra do Nunca atrás de Wendy. De repente, ele parece voltar à vida: o vilão só existe, se existir o herói. Pan, mais do que inimigo mortal, é a razão de viver de Gancho. Eles devem duelar por toda a eternidade, e vencê-lo é tanto objetivo inatingível quanto indesejável de fato. Por isso, Gancho surge no filme em todo seu aspecto trágico, ainda que sem deixar de lado um enorme humor negro (que aliás, perpassa todo o filme e é outro aspecto pouco apreciado da infância, sem papas na língua ou no pensamento).

Mas a figura mais complexa de toda essa história sempre foi o próprio Peter Pan, e mais uma vez Hogan não doura a pílula. A escolha do jovem ator que o interpreta é, aliás, brilhante (assim como a de Wendy, e a tensão sexual entre os dois é latente), porque ele passa toda a mistura de inocência e alguma perversidade que marca a figura de Pan (em especial na sua relação com Gancho): seu olhar nunca é menos do que maroto. Mas, acima de tudo, Hogan sabe que o que Pan representa não pode ser domado, e possui um quê de impulso irresponsável inegável. Quando Gancho diz que vai matar Pan, por exemplo, sua resposta é não menos do que radical: com alegria e excitação, ele sorri e, sonhador, afirma que "morrer seria uma enorme aventura!" Este abraço incontestável do risco, do mundo como sucessão de momentos mágicos, é o que torna Pan fascinante, mas ao mesmo tempo irreconciliável: quando vivem seu momento de amor (uma dança aérea que é óbvia e belíssima simbologia para uma "primeira vez" sexual), Wendy quer dele o tipo de sentimento que ele não conhece – o tal do "amor". Para Pan, tudo é momento, porque seus momentos são eternos. Nisso, ele é impossível de conciliar com o mundo real.

E por isso mesmo, o filme não pode aceitar outro tipo de final, não há como fugir para um "final feliz": se Wendy deve voltar à sua vida (e ela deve, porque há atrás uma família, alguma responsabilidade, mas acima de tudo, ela vai crescer e Pan não), isso não passa nem perto de ser opção para Pan. É belíssimo que, na tristeza deste amor impossível (que no entanto não é triste, porque vivido ao máximo – só não é eterno), Hogan permita que o "beijo furtivo" de Wendy (que segundo o filme, as mulheres carregam no canto da boca para seu amor especial) seja dado a este "amor passageiro" (e nunca ao marido que depois ela terá, segundo a narração final). Assim como, aliás, o beijo da mãe de Wendy não será dedicado a seu marido. Hogan não foge, assim, do fato de que as instituições do casamento, da família, não são necessariamente a fonte de nossa felicidade – e que o "felizes para sempre" nem sempre tem lugar. Se Peter Pan tem "algo a dizer" é que conformar-se com o fato de que há um mundo real a ser vivido não deve equivaler a abrir mão da fantasia, da fabulação. E que se nem todos podem viver a eterna juventude de Pan, não é impossível perceber que no efêmero pode haver a mesma força permanente do que no eterno. E, se o filme que Hogan fez toca nisso tudo, é porque ele é sim infantil, porém não infantilizado: não está morto numa noção de "infância versus vida adulta", e sim admite (e aí está a maior prova de sua grandeza) que tudo é parte de uma mesma coisa – a vida, em suma.

Eduardo Valente