Para Minha Irmã
Catherine Breillat, À ma soeur, França, 2001
O que significa dizer que um filme é honesto? Poucos filmes são mais francos e honestos do que os de Catherine Breillat. O que há de supostamente provocativo nos seus filmes vem muito mais disso, do que das idéias (discutíveis) da cineasta a respeito de sexualidade. Nos filmes de Catherine Breillat, e não será diferente neste Para Minha Irmã, somos obrigados a pensar nossa relação diante das imagens na tela o tempo todo. Breillat é uma diretora sempre aberta a respeito do que sente e o que pensa, o que no papel podemos todos concordar se tratar de algo positivo. Só que experimentar Para Minha Irmã é outra coisa: o filme te pega desprevenido, te desmonta a todo momento. Um feito e tanto se pensarmos que se trata de um filme de tese. Mas até nisso a diretora é bem aberta: a primeira cena te dá as regras do jogo, deixe bem claro o que vai se desenvolver a partir dali. Seja nas relações entre as duas irmãs (Roxanne Mesquida e Anais Reboux), seja nas suas relações com o sexo oposto.
Na seqüência chave do filme a irmã mais velha e bonita (Mesquida) perde a virgindade para um jovem italiano alguns anos mais velho chamado Fernando (Libero di Renzo). Vale observar como Breillat precede na seqüência. A cineasta odeia aparências. Sabemos que ela desaprova Fernando no momento que o apresenta se aproximando da irmã que não lhe interessa, para chegar aquela que atraiu seu olhar. A câmera de Breillat portanto julga, e nunca temos dúvidas de onde ela se posiciona em relação as ações que desenrolam na nossa frente. Só que isto não fecha a questão. Dizer simplesmente que aquele sujeito é um canalha que está estuprando emocionalmente a garota poderia ser a resposta num filme menor, mas não nesse. Porque há aqui sempre espaço para o espectador tomar suas próprias posições em relação ao que transcorre na tela, o que nos traz uma nova série de complicações. Não estamos afinal em terreno fácil; e a seu modo Breillat nos joga a bomba e pede que nos viremos por nós mesmos. A ação segue num misto de comédia de erros e embaraço com espetáculo voyeurístico explicito (sensação aumentada pela posicionamento da câmera que ocasionalmente sugere uma subjetiva da irmã mais nova que também está no quarto). Para Catherine Breillat a perda da virgindade de uma adolescente é sempre um negócio sujo (e não tenham dúvidas: sexo aqui é sempre uma questão de poder). Porque ela aliviaria a barra para nós, sentados confortavelmente no cinema?

Pode-se questionar até que ponto o filme não explora as duas atrizes adolescentes. Pois bem, esse questionamento está ali na tela, cena após cena, construído pela própria cineasta, porque Breillat nunca deixa de por em questão sua própria posição diante do que mostra. Nada é tão simples no seu cinema: Fernando pode ser um canalha, mas a garota não deixava de ser sua cúmplice dentro da sua pré-disposição natural de aceitar suas mentiras. Pré-disposição que a cineasta não deixa de nos lembrar também é a nossa. É um cinema, de certa forma, anti-ilusionista. Menos por uma crença numa forma qualquer de naturalismo (até porque o filme nunca tenta se passar por realista), mas numa fidelidade aos sentimentos da diretora pelo que filma. Há um incômodo muito grande em algumas das cenas de Reboux, porque nunca sabemos até onde ela está efetivamente atuando ou sendo ela mesma. Este incômodo é bem natural dentro do contexto do filme, já que a diretora assume que sua admiração pela personagem/atriz passa pela forma como esta parece aceitar seu próprio corpo como ele é.

A diretora vai montando seus argumentos. Nos irrita às vezes pela falta de sutileza de certas cenas, mas seria desonesto da parte dela ser sutil nelas. Logo depois nos surpreende justamente com a sutileza com que constrói as cenas entre as irmãs (a do espelho é bem marcante). O clímax do filme, em particular, parece irritar muitos espectadores pela sua grosseria. Analisando ela com cuidado veremos outra coisa. Antes de mais nada, não há nada de chocante ali. O filme nos prepara para ela desde a primeira cena e as seqüências anteriores com os caminhões vão cuidadosamente tirando qualquer impacto maior do que vai acontecer. A seqüência parece sugerir que o filme entra no terreno da fantasia, mas ao mesmo tempo parece se contradizer. No fundo ela ocorrer ou não pouco importa, mais relevante é ter em conta que é a forma que a diretora encontra para conceder às suas duas personagens centrais os seus desejos. É relevante também notar como a diretora esconde uma ação central ao filmá-la pelo ponto de vista do banco de trás (o que ela logo depois evitara fazer numa outra ação similar). Raro momento de pudor da parte da cineasta, deixando claro o seu desconforto em ter de filmar aquela ação. Calha de ser também o momento em que o filme se assume como um filme de horror (vale questionar se já não era um filme de horror desde a cena inicial). Filmes de horror sobre a adolescência existem diversos; um tão apto em captar tanto o lado sensível quanto mais grosseiro do período, e tão ético como este, são raros.

Filipe Furtado