Lugar Nenhum na África
Caroline Link, Nirgendwo in Afrika, Alemanha, 2003
É mesmo muito apropriado o título Lugar Nenhum na África. É mesmo de um deslugar que o filme trata. Mais que isso, aliás, é quase um antilugar o que o filme quer construir. U-tópico em um sentido literal, ele parece querer produzir uma extensão geográfica do mito do bom selvagem, a construção de uma naturalidade idílica e positiva em si. Opõe duas topografias muito nitidamente: uma, distante, construída apenas na memória, em que toda sorte de desgraças e perseguições acontece a uma família, a Europa; outra, erguida diante dos olhos, em que se descortina uma vida rica em experiências e, sobretudo, redentora, para o mesmo marido e pai, a mesma mulher e mãe e a mesma filha, a África.

Mas o detalhe que mais chama a atenção nessa redenção é sua aparente paradoxalidade lógica: o filme opera para desconstruir a África como campo de sofrimento. Minuto a minuto, todos os pressupostos do olhar europeu sobre o continente negro caem por terra (e na terra): o espaço selvagem se torna o celeiro de uma diversidade natural quase (ou mesmo) bíblica; o manancial inesgotável de falta de recursos se converte em convite à transformação de um caráter sedentário em uma inquietude transformadora; o cruel país distante de habitantes não civilizados se transforma, por meio de um aprendizado digno de um Lévi-Strauss ou de Pierre Verger, na verdadeira forma da civilização. É assim que, no limite, todos deveríamos ser.

O paradoxo cabe em se construir uma história de redenção baseada na fuga do sofrimento e não no mergulho nele. Observar as cenas de Lugar Nenhum na África é ver como o sofrimento pode se converter em bem (para a tese do filme). As situações desafiadoras pelas quais passa a família são marcadas por duas formas de sublimação emocional: primeiro, são de longe incomparáveis às atrocidades cometidas na Europa e, segundo, são mais formas de produção de "experiência de vida" do que de lembranças da morte, operação essencial da dor. Nem chuva, nem sol, nem traição do cônjuge, nem mesmo uma empedernida nuvem de gafanhotos consegue aplacar a joie de vivre da família que se busca a si mesma.

O filme, então, trata a África um pouco como o cinema brasileiro trata o Nordeste, como uma espécie de grande reserva moral. Para o europeu, aliás, pretenso pai da civilização (no sentido em que delegou a si a tarefa de dizer quem é civilizado ou não), é a reserva moral universal. Daí o uso do mecanismo do bom selvagem: nele está a essencialidade do bem, daquilo que, no fundo, todo europeu é, mas é impedido de manifestar pelas agruras da vida real. Na Europa, não se pode ser europeu. Na África, pode-se se descobrir filho da Europa. Não se trata, no filme, de se enxergar, no fundo, africano. Em vez disso, trata-se de, na África, redimir-se do quanto a Europa (e o mundo ocidental, branco e burguês) se desmente a si mesma.

O tempo todo, reforça-se o mecanismo da construção topográfica da selvageria ideal com um bom selvagem tradicional. O cozinheiro africano, pleno de uma sabedoria quase sacerdotal, mas curioso e aceitável em seus costumes "diferentes" e ao mesmo tempo fiel da maneira servil que convém aos africanos diante dos grandiosos bwanas europeus, é um arquétipo do que se pode fazer por si mesmo na África. Sem a corrupção babilônica da Alemanha, pode-se ser aquilo que se está destinado a ser, tanto quanto um bravo africano, que não é dotado da maldade branca (e é, portanto, ingênuo).

Claro, é uma visão idealizada do continente negro e uma visão ideológica do velho mundo. Além disso, o fato de a família do filme ser judia (o que diz muito sobre o Oscar que ele ganhou), não deixa dúvidas: é de Terra Prometida que se está falando. É de grandes jornadas de purificação e expiação que se trata. Pouco a pouco, vê-se como, na verdade, não há drama em Lugar Nenhum na África (como soa irônico dizer isto!): a morte não espreita a família do advogado (servo da justiça que, depois, mosaicamente, tornar-se-á juiz) em nenhum momento. E nem pode. Algo conspira em favor deles. Seja de Deus, seja do roteirista, a operação não os transfigurará para exigir sua conversão.

Um drama, então, sem dramaticidade: o antagonista não é antagonista de fato, não desafia, não se opõe aos protagonistas. Nesse, sentido, Lugar Nenhum na África não é só etnografia errônea, é também cinema de pouco desafio. Clássico, narra apenas. Mas conta uma história de que se orgulha demais, já que dela não oculta nada. Como rápido se entende o que está acontecendo, aprende-se a entender a lógica do filme e descobre-se que nada de fato pode ameaçar os protagonistas, não há desvelação no filme. É, portanto, um filme velado.

É claro, toda aventura tradicional, no fundo, deixa claro deste a abertura que personagens são destinados à vida e quais são destinados à morte. Mas a operação de grande narração se dá em fazer esquecer que já se sabe disso, é construir uma oposição sustentável entre o que almeja o personagem principal e aqueles que a ele se opõem. Em certo sentido, então, Em Lugar Nenhum na África, o tempo não passa. Afinal, nada acontece. Tudo o que se passa na tela (e são muitas e muito diversas e muito intensas as experiências por que passam pai, mãe e filha, ao lado de seus amigos africanos) é apenas sopro, nada tem poder de fato.

O problema, então, é o da construção de objeto. Lugar Nenhuma na África não existe. Cabe completar, então o sistema construído acima: em um exercício de má antropologia, ele tem essa visão idealizada da África, justamente porque tem essa visão ideológica da Europa e, no limite, seu carinho para com os povos menos favorecidos, que impinge uma dimensão preconceituosa de bem (aquele que diz que o outro é bom porque é um coitado e está hierarquicamente abaixo do observador, não é apenas dispensável, fica desprezível.

Alexandre Werneck