As Invasões Bárbaras
Denys Arcand, Les invasion barbaires, Canadá/França, 2003
Dentro da muito criticada (não por Contracampo, vale dizer) seleção de Cannes de 2003, As Invasões Bárbaras foi dos poucos filmes a sair imunes. Mais, o filme parece ter marcado uma reviravolta na reputação crítica de Arcand que vinha em queda livre desde que ele despontou no cenário internacional com O Declínio do Império Americano (do qual este é uma seqüência). Arcand, mesmo quando mais inspirado (Jesus de Montreal), não era capaz de ir muito além das boas intenções. A contemplação deste As Invasões Bárbaras me leva a conclusão de que os elogios que o filme recebeu dizem mais sobre os limites dos interesses da maior parte da critica internacional, do que sobre o filme em questão. Afinal, As Invasões Bárbaras é um filme muito errado sobre quase qualquer ângulo que se possa olhar (à parte a competência das atuações e alguns bons diálogos). Como? Iremos por partes...

As Invasões Bárbaras tem elementos que podem sugerir um possível grande filme sobre "morrer". Arcand parte de um princípio discutível mas bastante forte: encenar a morte do seu protagonista como a morte do mundo. De certa forma trata-se mesmo da mais simples versão do apocalipse possível, a simples morte de um homem de meia idade. O problema (aliás vêm daqui quase todos os problemas de As Invasões Bárbaras) é que Arcand não tem coragem para levar a idéia adiante. Não há apocalipse algum aqui (apesar de estarmos mesmo diante de uma celebração da morte do mundo). Da mesma forma como o filho dopa constantemente o pai moribundo, Arcand faz todo o esforço possível para dopar seu filme. O tom auto-congratulatório que o permeia seda qualquer hipótese da dor entrar neste "filme sobre morrer".

Talvez nenhum filme que tenha se dedicado desta forma a registrar a morte de alguém tenha conseguido de tal forma limar qualquer sinal de dor do processo. Não há vida em As Invasões Bárbaras, por conseqüência que tipo de impacto pode ter a morte? Difícil aqui não deixar de mencionar outro favorito de Cannes nos últimos anos, O Quarto do Filho de Nanni Moretti. Pode-se gostar ou não do melodrama de Moretti, mas tudo nele aponta para o que há de mais difícil e doloroso na morte. A idéia do pai constantemente dopado é uma das que mais resistem na memória, exemplifica o dispositivo do filme. Há formas de fazer um filme positivo sobre morrer (o cinema tem diversos exemplos), mas o que é grotesco aqui é que o filme essencialmente nos pede para varrer o assunto para debaixo do tapete, nos darmos as mãos e celebrarmos contentes (para ficarmos na imagem que encerrava O Declínio do Império Americano).

Mas o filme emociona, alguns dirão. Vamos retomar mais uma vez aos meios utilizados por Arcand. As Invasões Bárbaras é um filme cujo objetivo final (muito mais do que o mais bobo dos filmes de Hollywood) é auto-congratular a si próprio e o seu público. Arcand se esforça ao máximo para nos massagear, nos tranqüilizar. O mundo que ele filma é um onde não há mais vida (onde os únicos fatores que parecem ter algum peso são nostalgia e dinheiro), mas o tempo todo ele age nos lembrando que nós (os bons sujeitos que nos demos o trabalho de vir assisti-lo) não temos culpa nenhuma nisso. Desencadeia-se um processo onde o cineasta pede que nos emocionemos na medida que somos tomados por este sentimento de auto-satisfação pelo dever cumprido.

Não é a morte de Remy que tem efeito sobre o público; é a nossa própria satisfação com nós mesmos que deve nos emocionar. Tanto é que no momento que ela vem Arcand, para aumentar a emoção, usa do máximo de manipulação possível - os planos do céu acompanhado de musica melosa são grotescos. Estes planos no cinema demonstram bem como Arcand pesa a mão o tempo todo. O roteiro é de um esquematismo constrangedor. Cada personagem novo (o filho, a noiva, a enfermeira, a filha da amiga) tem a sua função simbólica no filme sublinhada a todo momento. O uso do dinheiro como única forma de relação restante no mundo é repetido a tamanha exaustão que termina por perder qualquer força.

A cena chave do filme se dá no meio do caminho. Remy conversa com a moça que lhe dá heroína. Diz que ama a vida e menciona todos os seus prazeres nela (as mulheres, a bebida, as viagens), no que ela responde indicando que ele já não tem nenhuma dessas coisas e que ele ama uma vida que em si já morreu. A cena em si representa todo o filme e o projeto que Arcand delineia. Estamos no que há de pior nos filmes sobre acerto de contas de uma geração: nostalgia pura e simples sobre um outro momento, uma descrença completa pelo que há pela frente - não haverá aqui espaço sequer para a sensação de mal estar que um filme como O Príncipe ainda gerava. Trata-se simplesmente de abaixar a cabeça e aceitar: mais conformista impossível.

Não é à toa que no filme de Arcand não poderá jamais haver espaço para o confronto. Isto porque o filme se estrutura entorno de uma complicada relação pai/filho. Sabemos, porém, desde que as regras do jogo ficam claras de que haverá a conciliação, que qualquer sinal de confronto desaparecerá (sem que com isso ocorra qualquer mudança; simplesmente varre-se os problemas para debaixo do tapete). As Invasões Bárbaras é atrativo, bem intencionado, humanista, etc. Mas todas estas características só servem para camuflar o quão conservador e a reacionário no fim das contas ele é.
PS: Há um filme que tem essencialmente as mesmas preocupações e ponto de partida bastante similar a As Invasões Bárbaras, mas que de resto é o seu preciso oposto: Olhos na Boca, de Marco Bellocchio. Foi feito 20 anos atrás, mas não consigo enxergar o cineasta (a julgar pelo seu A Hora da Religião) realizando-o de forma diferente hoje. È o perfeito antídoto para o embuste de Arcand.

Filipe Furtado