Eu Fui a Secretária de Hitler
André Heller e Othmar Schmiderer, Im toten winkef. Hitler's sekretärin, Áustria, 2002
Uma fala, um rosto e a eliminação de todo e qualquer recurso "ilustrativo" (sejam imagens de arquivo ou planos de cobertura) exterior ao depoimento. O cenário é um só – o apartamento de Trauld Junge, uma senhora de 81 anos –, e assim mesmo só o vemos por meio de um recorte muito restrito: os enquadramentos são, em sua maioria, closes ou planos próximos. Eu Fui a Secretária de Hitler segue a lógica do confinamento. Trauld Junge não está só, evidentemente: há uma câmera e duas pessoas que fazem a entrevista. No entanto, durante a hora e meia em que transcorre a projeção, o espectador só verá o rosto da entrevistada e vivenciará, com ela e diante dela, suas memórias e confissões acerca dos últimos dias de Hitler em seu bunker, antes de se matar. Na verdade, não se trata apenas de memórias episódicas de Trauld Junge, secretária de Hitler, e sim de uma dolorosa reflexão – a seco – sobre a culpa de ter pertencido ao regime nazista e de ter feito parte de um dos momentos mais sanguinários da civilização ocidental.

O documentário presta-se, assim, a um duplo propósito: ao mesmo tempo em que é o espaço para as confissões de Trauld Junge, para um possível "acerto de contas" com sua própria consciência, serve como instrumento de reflexão crítica sobre a cegueira, a alienação e a monstruosidade do totalitarismo. O filme é ao mesmo tempo generoso e cruel com seu "objeto", no caso, a octogenária Trauld Junge. Mas tanto uma quanto outra postura se dilui diante da força do depoimento: a cada episódio narrado, a cada reconhecimento de culpa, o "personagem" oscila, torna-se um "monstro" e um ser humano torturado pelas próprias recordações. A "monstruosidade", aqui, tem o mesmo caráter apontado por Godard a respeito de Edmund, o garoto protagonista de Alemanha Ano Zero: ela nasce em decorrência do nazismo e se perpetua na lembrança. A memória é o verdadeiro pesadelo, e foi o cárcere onde a ex-secretária permaneceu, até os seus últimos momentos de vida. Muito embora não tenhamos diante de Trauld Junge a mesma sensação de repulsa como a que experimentamos diante de uma Leni Riefenstahl, a secretária de Hitler, ao expor suas memórias, não faz outra coisa senão atualizar, humanizar a figura do ditador. Confessando-se culpada, dá de seu chefe um retrato contraditório: homem gentil, atencioso com as mulheres, ao mesmo tempo paranóico e obsessivo, sobretudo um egocêntrico que se acreditava visionário e genial.

Ao longo de todo o filme, apenas cartelas com textos explicativos introduzem e fecham os depoimentos. O fato de não haver qualquer intervenção de imagens de arquivo ou fotos ajuda a criar uma atmosfera de incômoda intimidade com a narradora. Estamos distantes das referências comuns que o cinema já tratou de cristalizar a respeito do nazismo. Nada de imagens em planos gerais de fileiras de soldados nazistas marchando simetricamente, com gigantescas suásticas ao fundo. Nem Hitler com sua teatralidade grotesca berrando ao microfone. Muito menos campos de batalha, com tiros, bombas e tanques transpondo barrancos, ou imagens chocantes de campos de concentração e pilhas de corpos esqueléticos de judeus aglomerados para exposição. Na verdade, hoje, tais imagens já não "chocam". Foram de certa forma fetichizadas pelo cinema. Aliás, não é por acaso que, diante dos trechos de filmes de Leni Riefenstahl, não são poucos os que se encantam com a plástica e os recursos fotográficos ou passam a tecer comparações superficiais com as experiências soviéticas de Eisenstein e Dziga Vertov.

Ao recusar tais imagens e reduzir o documentário somente ao depoimento de Trauld Junge em planos quase idênticos, desdramatizados, secos, de uma simplicidade acima de tudo honesta (eu diria mesmo necessária) André Heller e Othmar Schmiderer criam um envolvimento muito maior com o espectador. O que temos diante de nós é terrível não pelo espetáculo, mas pela total ausência de artifícios. Isto – a desdramatização – é especialmente importante numa época em que a imagem vale tão pouco e – pelo menos na Europa e em particular na Áustria – crescem de forma assustadora os movimentos neonazistas.

Mas o filme não se resume, quanto à imagem, aos planos de Trauld Junge. Um objeto destaca-se do conjunto, e, de certa forma, confronta a velha senhora: é um pequeno monitor de TV que exibe as imagens dos depoimentos da ex-secretária para ela mesma, que, assim, tem a chance de retificar, tecer comentários e acrescentar novos dados em relação ao que já disse. Trauld Junge é, portanto, também uma espectadora de si mesma. Nesses momentos, o filme se permite um jogo de plano/contraplano, do rosto apreensivo e tenso de Trauld Junge e das imagens que ela assiste no aparelho de TV. Este "jogo" é, também, o momento máximo de "espetáculo" que temos diante de si, e é, na verdade, o espetáculo de uma miséria existencial, que busca superar-se pela expiação das culpas. É necessário destacar, aqui, a montagem, que faz um trabalho de extrema sutileza, agindo meramente como ordenadora de longos trechos de depoimentos (num aspecto mais geral), e conservando momentos que, normalmente, seriam eliminados – a respiração suspensa da ex-secretária após uma frase reveladora, os momentos de silêncio antes, durante ou após longos trechos de depoimentos, alguns deles repletos de lapsos e subterfúgios.

Eu Fui a Secretária de Hitler é, portanto, um filme de imagens reveladas pela voz. E a voz só ganha tal ressonância porque a imagem detem-se no mínimo, no essencial. Não é à tôa que há mais profundidade de campo no som (quando o filme estabelece relações entre o som do depoimento vindo do aparelho de TV e o som direto de Trauld Junge diante deste mesmo aparelho) do que na imagem, limitada ao rosto da personagem que decide falar e ganha as telas.

Tudo o que Trauld Junge consegue é admitir sua total incapacidade de viver distante do pesadelo hitlerista. Com sua fala, a ex-secretária buscava libertar-se. Sua libertação foi, ao mesmo tempo, sua condenação.

Luís Alberto Rocha Melo