Edifício Master,
de Eduardo Coutinho

Brasil, 2002


A obra de Eduardo Coutinho é marcada por transformações em espiral. Dos filmes ficcionais do início da carreira, passando pelas reportagens-cinematográficas do Globo Repórter e chegando à revolução conceitual de Cabra Marcado para Morrer, a carreira do cineasta é marcada por reformulações estéticas radicais, se desdobrando em uma série de postulados imagéticos cruciais para a revitalização do cinema brasileiro contemporâneo. Como num fluxo de pensamento em multicamadas, os filmes de Eduardo Coutinho se entrecruzam numa rede sistemática de métodos e posturas políticas, formando não apenas um conjunto de filmes, mas um verdadeiro tratado sobre a observação e construção do imaginário através da exposição dos discursos de seus personagens.

Nessa caminhada ampla de mais 15 obras (como diretor e/ou roteirista), Coutinho já passou por experiências tão díspares quanto a interrupção abrupta da primeira versão de Cabra Marcado ou a roteirização de um grande sucesso comercial como Dona Flor e seus dois Maridos. Nessa carreira de contrastes, porém, cinco filmes se fazem essenciais para uma imersão em sua cinematografia, sendo também marcos internos para a própria revitalização de sua prática cinematográfica:

Cabra Marcado Para Morrer (fruto direto do choque conceitual entre o discurso do direto do diretor e a voz de seus personagens), Santa Marta (primeiro exercício em vídeo na descoberta livre do imaginário de um espaço – a favela de Santa Marta), Santo Forte (onde a prática experimentada em Santa Marta descobre sua expressão maior na investigação de um objeto essencial do imaginário popular: a religiosidade) e, agora esse belíssimo, Edifício Master (expansão espacial para além dos clichês da margem). Devemos citar ainda o episódio Teodorico, o imperador do sertão, primeira obra-prima do diretor, realizada para o saudoso Globo Repórter da década de 70.

Cada um desses filmes representou um avanço ou um desdobramento, por assim dizer, do conjunto técnico-ético que faz do cinema de Eduardo Coutinho a obra mais marcante do cinema brasileiro contemporâneo. Se a crise de Cabra Marcado para Morrer marca justamente esse espaço de tensão desconstrutiva do discurso padrão da dramatização cinematográfica (seja ela documental ou não), é em Santa Marta que essa renovação no eixo criativo se faz evidente de forma positiva, viva. A alegria com que Eduardo Coutinho transita pela favela nesse pequeno vídeo do início da década de 90, marca a fundação da pedra fundamental do cinema que viria alavancar a obra de Eduardo Coutinho: a descoberta da imagem da interação, do imaginário emergente daquele choque criativo entre a presença da câmera e a voz de seus personagens. Seguindo esse caminho, Boca do Lixo e Fio da Memória representam novas tentativas de pôr em pratica esse cinema do imaginário, e são mais ou menos bem sucedidas.

Passados alguns anos, é com Santo Forte, de 1999, que a cartografia efêmera do imaginário popular chega a seu ápice: diferentemente de seus filmes anteriores como Santa Marta e Boca do Lixo, Coutinho revitaliza seu método ao entrecruzar a limitação espacial de seu objeto (como em Santa Marta) com uma temática discursiva específica (como em Fio da Memória: a negritude). Desse nó, nasce Santo Forte – a voz da religiosidade dos moradores da favela Parque da Cidade se faz ao mesmo tempo discurso e objeto, de uma forma ímpar. O filme inova ao fazer da própria prática discursiva a presença viva da religiosidade. "Documentar" o invisível (o que poderia ser sinônimo de um experimentalismo aleatório para um cinema que acreditasse na concretude da realidade) é justamente a expressão maior de um cinema que vê na "encenação do eu", na ficcionalização vivente do imaginário, a sua fonte de verdades.

Coutinho teria chegado a seu limite?

Se depois da grande consagração de Santo Forte, Coutinho alcançou um público mais amplo entre os cinéfilos com Babilônia 2000, alguns aspectos deste filme pareciam apontar, ao mesmo tempo, para um certo esgotamento criativo de suas formulações.

A recorrência da interação criativa com espaços associados aos clichês da pobreza e do exotismo cultural, ameaçava o cinema de Coutinho de se confundir com toda uma cinematografia satélite do retrato do excluído, do retrato do marginalizado (ver artigo no Plano Geral 34 assim como as críticas de Babilônia 2000 - 1 e 2). Essa reiteração de objetos tendia justamente a alguns efeitos que fugiam completamente das intenções e do método do diretor: Os objetos-personagens pareciam se sobressair ao filme como espaço criativo, e os espaços da pobreza ameaçavam se banalizar na perigosa tentação do público de querer estar diante da realidade brasileira. A temática do reveillon, superposta aos personagens, limitavam a expressividade das falas, e mostravam um Coutinho mais automatizado, menos curioso, menos alegre (no sentido mais amplo do termo) em se jogar criativamente àquelas verdades discursivas.

Mas, e o que se dá em Edifício Master? Basicamente, e essencialmente, uma revitalização do interesse de Coutinho (como pessoa e como ente cinematográfico) por seu espaço de interação. Ao contrário do Coutinho reiterativo (que fazia em Babilônia tudo aquilo que se espera que Coutinho fizesse – um pouco como a crítica que o mesmo faz aos personagens telejornalísticos), em Edifício Master vemos novamente um Coutinho entusiasmado e curioso. Lembrando o exercício de descoberta espacial de Santa Marta (primeira experiência interativa com uma favela), Master nos traz um Coutinho renovado espacial e tematicamente, capaz de novamente nos surpreender fazendo exatamente o mesmo. Cada depoimento de Edifício Master é um sopro de vida para o olhar do espectador e para a própria rede de imaginários da obra de Coutinho. Seus preceitos mais importantes, como a descrença no desvelamento de uma realidade, ou construção de um discurso de verdade objetiva, ressurgem revigorados nas vozes daquele novo espaço.

Nunca se tratando de um filme sobre A classe-média, Edifício Master, ao expandir o olhar de Coutinho para além dos clichês dos marginalizados, reintroduz seu cinema em sua energia mais marcante: a criação de um ritual de efemeridades discursivas, fragmentos vivos de humanidades em ebulição. A aproximação das humanidades através da diferença, o diálogo imagético com aqueles corredores de inúmeras portas que insinuam a multiplicação infinita de discursos.

Coutinho reincorpora com força total sua descrença na capturação das essências, costurando expressões que vão da emoção intuitiva (o choro de algumas personagens) a verdadeiras perfomances para a câmera. Para o cinema de Eduardo Coutinho não existe Verdade estática, apenas a Verdade do evento, da performance viva. O homem que canta My Way, a mulher que conta sobre um assalto, o discurso pseudo-institucional do síndico...todas essas vozes se emaranham e projetam na tela os rastros cinematográficos daquelas pessoas.

Vozes dissonantes se sucedem, da garota de programa à espanhola puritana, suas vozes não representam um objeto único, mas um exercício contínuo de interação. A pesquisa realizada por Consuelo Lins demonstra a importância dessa meticulosa metodologia do diretor, que começa pelo delineamento espaço-temporal restrito de sua interação. Para Coutinho não interessa descobrir, mapear, descrever – seu cinema se faz no encontro fortuito da urbanidade multi-discursiva. Como ele mesmo diz, ou se faz uma pesquisa de 7, 8 anos num lugar, ou joga-se quase cru sobre aquele espaço – o meio termo não existe, tem de ser 8 ou 80...

Como não lhe interessa ficar 8 anos pesquisando um espaço, acumulados todos os perigos que isso pode trazer, Coutinho opta pelo emergencial, pelo abrupto. E faz questão que seu filme registre justamente isto, esse evento especial que é o do encontro – o objeto de Edifício Master não são aquelas pessoas, mas o encontro daquele "fantasma" Coutinho com a voz e os gestos de seus personagens.

Mais uma obra-prima do diretor que vem mostrar que, muito além de "cagador de regras", como muitas vezes é acusado por diretores menos rigorosos, Coutinho é um metódico e técnico catalizador de imagens, que sabe se utilizar até mesmo de sua aparência de "bom velhinho" (como disse certa vez) para construir verdadeiras odes da precisão e do acaso. A Precisão e o Acaso, essas são as forças criativas que Coutinho sabe amalgamar como ninguém, não por um dom, mas por uma Ética criativa que vai muito além das estereotipias morais do "cuidado com o outro". A "Ética de Coutinho" é uma prática estética, um conjunto de postulados concretos, de princípios estéticos, que se conjugam geometricamente, produzindo uma atmosfera única.

A sensação de vida presente em Edifício Master se dá justamente porque o diretor não tenta captar a essência daquele espaço através do que seria um cotidiano comum ao disperso conceito de "classe média", mas se lança nas expressões verbalizadas e na gestualidade de seus personagens, fazendo-os únicos. Cada um deles, como um contador das histórias de si mesmo, transformam o filme num registro estético seminal da vida urbana brasileira: seus contrastes, suas semelhanças internas, seus aprisionamentos e liberdades. Uma vasta rede de práticas imaginárias pulsam descompassadas, e criam o ritmo do filme.

O Edifício Master não sintetiza todos os prédios, todas as cidades, toda a classe média...ele se expande, ele se insinua, ele se esboça. Funciona como um rastro de identificações e divergências, que conseguem incluir o espectador num amplo jogo de vozes e vontades. Sem que seja preciso se sentir um igual. É através da diferença que o Edifício Master, em Copacabana, no Rio de Janeiro, se faz igual. Igual e completamente diferente (num mesmo movimento) de todos os outros edifícios que possamos imaginar. Uma lição de dramaturgia. Uma lição de cinema.

Felipe Bragança