Babilônia 2000,
de Eduardo Coutinho


Babilônia 2000, Brasil, 2001

Faz menos de quatro horas desde que assisti a Babilônia 2000 e acho que essa emergência em escrever sobre o filme é a melhor maneira de respeitar seus conceitos: quando a presença daquelas pessoas e suas vozes ainda me são íntimas, é que ainda estou em parte imerso no universo do imaginário daquelas pessoas, no universo do imaginário de um filme que, muito mais do que um registro é uma vivência de humanidades. Nos mesmos moldes de outros de seus documentários (principalmente, o excelente Santo Forte), o que Coutinho apresenta em Babilônia merece destaque por diversos motivos e deixa claro ser o tipo de filme que deveria ser realizado com maior freqüência num país como o Brasil, que tão pouco conhece suas próprias vozes e faces.

A espontaneidade com que os personagens se relacionam com os entrevistadores, cria um espaço expressivo muito mais do que uma documentação: é o momentâneo, é o efêmero que fala em Babilônia, é esse espaço de sentidos múltiplos e dispersos que se mostra na tela. O mosaico construído por Coutinho (sua equipe e seus personagens) não cai nos ideais reducionistas da maioria dos filmes (documentais ou ficcionais) que se pretendem painel-síntese de uma sociedade. Babilônia não chega a qualquer conclusão por não ter a pretensão de apreender a realidade – o que o filme faz é, acima de tudo, construir sentidos. Nada é objetivo, as conversas fluem sem uma "mensagem"a ser passada – ou melhor, são tantas mensagens (explicitadas ou não), que Babilônia não se quer capaz de abarcar aquelas vidas no aquário de uma imagem. Os diálogos se dão numa troca mútua de respeitos em que a lógica do "meu espaço termina onde começa o seu" é substituída pela criativa potencialidade do espaço marginal, do que não é nem de um nem do outro: do diálogo que só é criado enquanto entrelaçamento de expressividades. Os entrevistadores, embora não dêem depoimentos, também são personagens do filme – têm sua presença marcada por vozes, por gestos, por abraços de agradecimento em seus personagens.

Nesse aspecto, aliás, é que o tato criativo de Eduardo Coutinho vem à tona: sua maneira de lidar com os personagens, sua sensibilidade para se aproximar de seus espaços através de uma sincera intimidade respeitosa... Mesmo comparado aos outros entrevistadores, que trabalharam sob sua orientação, sua capacidade de criar cumplicidade fica gritante. Suas perguntas soam sinceras, seus gestos fluem – porque antes da admiração de turistas deslumbrados (que, infelizmente, toma os outros entrevistadores em alguns momentos), Coutinho parece saber o que quer, parece saber o que procura: uma espécie de objeto difuso, desobjetado, uma espécie rara de momento... Aquele em que, num jogo de palavras, numa engasgada de voz, aquela pessoa diante dele, e ele diante da pessoa, não estão cada qual no seu lado da imagem. Naquele momento em que a manifestação daquelas pessoas não vive mais no lado de lá da imagem, mas se torna imagem, constrói-se enquanto filme. Numa espécie de amizade momentânea (não a amizade romântica dos seres que se confundem, mas aquela do que é público, do que é diálogo, do que se cria no intermédio dos eventos) que salta para a câmera e ali se registra – e onde Coutinho se torna o efêmero cúmplice de seus personagens.

É essa maneira, não de descobrir, mas, de construir com muitas mãos esse momento de troca, que Babilônia é especial, é diferente de todo e qualquer filme realizado com as intenções de valorizar a expressão popular no Brasil, a decantada "brasilidade". Diferente pois não quer fazer política só em seu resultado, não é panfletário em um discurso pronto – Coutinho faz seu filme junto com seus personagens, Coutinho faz política no processo de seu filme, faz política na criação de um espaço de um país que se escute, que se queira no cotidiano... Cultura popular não é folclore, não é coisa pra museu algum botar à mostra, não é coisa que caiba em eventos festivos ou datas religiosas – cultura popular é o que se fala nas ruas, é o que se pensa entre um momento de trabalho e outro, é o que se vive nas entrelinhas da cidade. Na tentativa da defesa da "cultura popular brasileira" muitos documentaristas têm agido como o que eu costumo chamar de taxidermistas da imagem (empalhadores de olhares) – enquanto o povo dos instantes, o popular de todo dia e da vida cotidiana passam desapercebidos das lentes de suas câmeras.

Há muito mais a se falar sobre o filme de Coutinho – seus depoimentos, seus instantes de extrema força emocional, suas imagens únicas – mas não quero destrinchar aqui o filme – pois mais do que quaisquer outros filmes realizados no país nos últimos 20 ou 30 anos, um filme de Coutinho é para ser visto! Pois, então, vejam o filme, vejam o filme, vejam o filme... Babilônia 2000 merece, e nós também.

Felipe Bragança