Cold Mountain
Anthony Minghella, EUA, 2003
Espetáculo formalista por excelência, Cold Mountain tem tudo para se perder fartamente nos debates sobre a suntuosidade inexpressiva e sobre a incongruência lingüística. E se perde mesmo. É assim a obra do diretor Anthony Minghela. Seus até aqui dois filmes mais importantes são de uma desimportância retumbante. Mesmo tendo O Paciente Inglês sido vastamente premiado e O Talentoso Ripley consideravelmente elogiado, ambos deixam a inevitável sensação de que, sem eles, o mundo não seria em nada diferente. Cold Mountain é exatamente tudo o que se pode esperar de um filme de Minghela: cinema "de qualidade" e, por isso mesmo, a forma pura do "tédio comunicacional" de Paul Valéry: o filme informa, conta uma história. Apenas isso.

Há, entretanto, um outro lado em Cold Mountain. Uma operação que mais parece ter sido conscientemente ocultada, dado o grau de dificuldade para encontrá-la, resvala pelos cantos dos planos. E é justamente difícil de enxergar por estar atrelada ao que há de mais gritante no filme. Ao ser tão explicitamente uma transposição da trama central da Odisséia para o contexto da Guerra Civil Americana, o filme cria um jogo aparentemente inexeqüível entre duas mitologias aparentemente incongruentes. E eis que ele funciona. Para o bem e para o mal.

São dois mitos de determinação. Ulisses chega a seu lar porque estava destinado a chegar. Penélope o espera porque, no fundo, sabe que ele chegará. Toda a operação dramatúrgica do mito homérico se sustenta numa profunda consciência de papéis da parte de seus próprios integrantes. Eles não têm fé, não têm esperança, eles, no limite, sabem.

Pois a operação de levar ao mito constitutivo da América - que não nasceu na independência, nasceu quando o Norte venceu o Sul - esse sistema de determinações traveste de amor romântico o que é de fato uma ascese política: o herói americano é predestinado, mergulha em seu caminho de volta porque sabe que tudo o que existe é aquele caminho. A amada é o símbolo maior de uma paz local que humaniza o indivíduo diante do apagamento do sistema de constituição do país. Nesse sentido, Cold Mountain é um anti-E o vento levou... Não é pela ultra-afirmação de uma singularidade personalista que se alcança o triunfo, mas é pela entrega ao apagamento promovido pelo mito que se conquista a paz.

Para o bem e para o mal, dizia. Para o bem, porque isso deu ao filme a única dimensão singular dele como obra: a montagem (na prática, executada pelo veterano Walter Murch), obrigada a trabalhar com um tempo mítico em uma história de filme de época tradicional - um desafio que dá ao filme um tempo particular e instigante.

Para o mal, para além do pior discurso de ode à América possível, também porque nada da montagem parece adiantar para fazer do filme escapar de seu mito próprio: Minghella parece, ele sim, predestinado. É como se o nível do simbólico, essencial a qualquer obra de arte, nunca possa ser alcançado. O diretor parece ter realmente inventado algo novo, revolucionário: o significante totalmente sem significado, o verdadeiro cinema de simulacro.

Alexandre Werneck