As Panteras Detonando, de McG

Charlie's Angels – Full Throttle, EUA, 2003


Drew Barrymore, Lucy Liu e Cameron Diaz em As Panteras Detonando, de McG

Esquizopop art.

Da primeira vez que nos encontramos com as panterinhas de Charlie na tela grande, ficamos espantados com o uso da fragmentação narrativa, uma lógica estética que incorpora o mau-gosto sem medos ou pudores, a volta da figura da mulher como objeto de exploração visual, a paródia dos filmes imediatamente saídos de Hollywood, mas acima de tudo o abandono definitivo de toda a lógica de verossimilhança e de coerência narrativa. Confessamos: esse susto com um objeto tão particular acabou obnubilando um pouco todo elogio que merecia receber McG. Não só o primeiro As Panteras estabeleceu um outro padrão de velocidade e verossimilhança no cinema de Hollywood (Rob Cohen que o diga), como tornou-se uma espécie de marco zero do cinema comercial para jovens que deixa o "contar uma história" de lado para entrar direto numa relação de significação imediata com o espectador (Velozes e Furiosos, Triplo X, Austin Powers e até a segunda parte de Matrix, muito mais carnavalizada).

A grande novidade: com As Panteras Detonando, McG não somente faz um filme que leva ao zênite todas as características do filme anterior, mas ainda consegue incorporar todas elas num todo coerente que explode na tela como a primeira obra consistente desse novo cinema americano que poderíamos chamar esquizopop – já que preferem se construir antes pelo espaço das situações do que pelo tempo da narrativa, aqui claramente obstruído ou desnecessário. Uma mudança decisiva em relação ao primeiro: tudo que era paródia no primeiro filme (sobretudo as paródias do "bullet time" de Matrix) é aqui convertido em pura citação gratuita. A diferença? As Panteras, para funcionar, precisava de Matrix, como Todo Mundo em Pânico precisava da série Pânico e dos recentes filmes de terror. Em As Panteras Detonando, podemos começar com Gangues de Nova York (o plano seqüência e a música), pouco importa, porque logo o filme vai elencando outras referências: O Senhor dos Anéis, o próprio Matrix repetindo aqui o "bullet time", Baywatch (Demi Moore correndo de maiô em câmera lenta), a série C.S.I., Homem-Aranha... Tudo vai se acavalando de forma tão brusca e inesperada que o gozo não provém propriamente da referência aos filmes, mas de como a narrativa se desembaraça tão rapidamente deles para logo trazer outros nomes a citar. Parece pouco? Ainda tem David Bowie fase Aladdin Sane, e.e. cummings, Bob Dylan, Beach Boys, Burt Bacarach, David Lynch, todos devidamente elevados à condição de ícones e nada trabalhados, pura iconomania.

Recorte, fragmentação, disparidade: é nessa linha que trabalha McG e é nesse terreno que ele decide firmar pé. O próprio conceito de diversão girl-power de As Panteras, série e filme, parece ser levado muito menos a sério do que as elipses espaço-temporais e o curto-circuito de situações dramáticas. Em que filme de indústria americano seria concebível alguém cortar do assassinato do chefe de estado americano (um Bruce Willis não creditado) para um clipe de MC Hammer cuja coreografia é logo imitada por Cameron Diaz, Lucy Liu e Drew Barrymore? Ou então a desaparição de nossas três heroínas mergulhando no mar com roupas de estivadoras e reaparecendo no plano seguinte num palco dançando o tema da Pantera Cor-de-Rosa em roupas provocantes? Esses dois cortes, por si só, já rendem altas doses de jogo lúdico com o espectador. Mas o filme propõe mais: um personagem com função nenhuma na trama e caracterização esdrúxula (Crispin Glover, um doido fascinado em colecionar mechas de cabelos femininos), um trabalho sobre a resistência e a elasticidade do corpo humano que compete com os desenhos animados em insanidade (corpos voando, caindo, se rasgando, morrendo e retornando, ossos se deslocando, pulando de n metros de altura...). Ou questão de mera impossibilidade genética: John Cleese, um inglês caucasiano, sendo pai de Lucy Liu, uma oriental; ou ainda um Bosley black (o Bosley do primeiro filme era Bill Murray, não exatamente um mulato para ser da mesma família). As Panteras Detonando nos convida a participar de um mundo improvável, anti-naturalista, submetido a regras muito particulares (ou a uma única regra, o vale-tudo). Como tal, articula conosco um duplo jogo muito difícil: é um objeto conceitual adorável – na maneira como consegue forçar o espectador a entreter uma outra relação de fruição com o filme para além da "realidade", da verossimilhança –, mas é também ao mesmo tempo um filme easygoing, que não convoca do espectador nenhuma habilidade ou saber especial para que ele se entretenha com aquilo que está vendo.

Um aspecto particularmente saboroso de As Panteras Detonando é o uso da cor. Aberrantes, extravagantes, nada harmônicas ou de bom gosto, as cores fazem tudo no filme menos convidar-nos a acompanhar melhor a trama. Chapam e plastificam todos os corpos que aparecem na tela, enfeitam agressivamente tudo aquilo que podem tocar (o rosto de Cameron Diaz é transformado quase numa cabeça de boneca monstruosa), transformam uma cena de crime em salão de boate. Nossa estilista Juliana Fausto bem captou parte da proposta de McG: transplantar para as telas o estranho mundo fotográfico de David LaChapelle: maquiagem excessiva, nonsense, multi-referência, cromatismos anti-realistas. Poder-se-ia também falar de uma farrellyzação da fotografia, de um requestionamento do bom gosto pelo sistemático desejo de ser do contra, de apresentar ao espectador uma imagem voluntariamente feia, sem matizes, deserotizada. Uma cena em especial: logo depois que voltam de um desmaio, nossas três panteras são banhadas por irrigadores de jardim automáticos, enquanto a banda de som começa a tocar "Raindrops Keep Falling On My Head" com B.J. Thomas. Elas põem-se a levantar e o filme passa imediatamente para a câmera lenta, onde poderemos ver, mais do que as meninas, um pedaço de azul bebê aberrante que brilha ao fundo e ofusca toda nossa atenção. Erro, feiúra, estupidez, podem dizer. Preferimos chamar uso anárquico e brincalhão da cor. Por que não se pode fazer comédia colorindo? McG parece afirmar categoricamente não só que se pode, mas que se deve.

Além de todas as peripécias em que se envolvem nossas três panteras – peripécias que constituem, deve-se dizer, a verdadeira razão de existir do filme –, elas ainda arranjam tempo para terem problemas individuais (que se constituem como a única concessão do filme à lógica narrativa de construção de personagem, evolução na trama, etc.). E nada mais sintomático do que os "dramas" das moças: ir morar com o namorado mas sem anéis de compromisso (Cameron), revelar ao pai a natureza de seu trabalho (Lucy), mas principalmente – e essa é de fato a única trama forte do filme – prolongar infinitamente a união das três moças para além de toda a passagem do tempo. Uma seqüência, hilária, nos confirma: Drew Barrymore sonha possíveis futuros: Cameron casa-se, Charlie substitui-a com outra; Lucy Liu abandona o time, aparecem duas gêmeas adolescentes enquanto Drew está toda enrugada (maquiagem forçada), velha, dormindo sentada. Confrontar-se com o passar do tempo e resignar-se a ele, então? As Panteras Detonando prefere seguir o outro caminho: negar o tempo e viver num presente infinito, Terra do Nunca sem nenhum Peter Pan e com três Sininhos. Que o tempo passe (e, conseqüentemente, que haja morte), isso pouco importa: o decisivo é aproveitar o momento enquanto ele está presente. Daí o desejo frenético do filme: não vale a pena gastar tempo fazendo as situações dramáticas casarem-se harmonicamente com as cenas de ação, e muito menos mostrar as lacunas entre uma cena de ação e outra. Direto ao ponto e cortar tudo que for desnecessário.

Um momento na luta final revela de certa forma toda a lógica de McG. Nele, enquanto a luta come solta ao som de uma música dos Chemical Brothers (o big beat tendo sido o movimento de pop mainstream mais esquizo dos últimos anos, a escolha reflete em parte a propopsta do filme), há espaço para um pequeno entreato amoroso, protagonizado por Drew Barrymore e Crispin Glover. A música pára, eles se beijam, até o momento em que o enlace do casal é ameaçado e o pretendente da moça é esfaqueado. Naturalmente, a música anterior volta à altura máxima e a cena de ação continua. O tempo para cada gesto é abolido, os minutos se equivalem e as situações se acavalam. Pergunte se ao final do filme alguém lembra da morte do defensor esquisito ou dos dramas com o passar dos anos. "Tudo ao mesmo tempo agora" parece ser o princípio do filme, e é esse o jogo sério – até certo ponto – que McG propõe ao espectador. Segui-lo não é exatamente cômodo ou fácil: é preciso que ao menos recontruamos mentalmente uma infinidade de situações para que consigamos nos ressituar a cada cena. Uma proposta dessas, assim como um filme que faz questão de quebrar a relação tanto com a verossimilhança quanto com o "bom-gosto", é verdadeiramente digno de apreciação dentro do cenário de Hollywood. O mais saudável exercício de hedonismo sem culpas que o cinema americano nos deu nos últimos anos. Vale apreciar e, não custa dizer, se deliciar.

Ruy Gardnier