63º FESTIVAL DE CANNES

Film Socialisme, Jean-Luc Godard, Suíça, 2010
(UN CERTAIN REGARD)


Ainda que tentemos assisti-lo quantas vezes for possível, o novo filme-bricolagem de Jean-Luc Godard é mais uma de suas obras incontornáveis, que põem em cena infinitas e inesgotáveis questões. Um filme sobre o qual é realmente difícil falar sem ser simplista, mas que, no entanto, nos obriga a confrontá-lo, até porque a essa altura já é seguro dizer que se trata do grande filme do Festival de Cannes desse ano. Tentarei fazer o único texto que me parece possível e justo – uma resposta pessoal a algumas das suas provocações.

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De imediato, é impossível não ter a atenção desviada para o que é feito deliberadamente na tradução dos diálogos do filme, que ocorrem em múltiplas línguas, embora predominantemente em francês. Apesar de o texto dito pelos personagens parecer sempre composto de sujeito e predicado, gramaticalmente completo, o que vemos nas legendas (quando elas existem) é uma supressão absoluta da sintaxe, restando apenas duas ou três palavras-chaves que nos dão um sentido geral daquilo que é dito, se incorporando assim à imagem como mais um dos elementos da bricolagem godardiana. Essa escolha, se para muitos a princípio parecerá absurda (e é excelente que o Festival a tenha respeitado), no limite é apenas uma derivação natural do cinema de J.-L.G. Pois o que ele faz e sempre fez essencialmente é associar imagens a idéias (ou pensamentos), um principio elementar do cinema. Para Godard, toda imagem sem idéia é inútil, assim como de nada serve, para um homem de cinema, uma idéia sem imagem.

É claro que nada é tão simples assim. Vincular uma idéia a uma imagem é tanto um dos princípios do cinema quanto serve de moto perfeito para a publicidade. Godard, mais do que ninguém, tem plena consciência disso, e é por isso que alguns dos efeitos mais impactantes de Film Socialisme vêm justamente da construção dramática, que vai sendo tecida de forma razoavelmente aleatória na primeira parte do filme, quando acompanhamos alguns personagens (entre os quais, a cantora Patti Smith e o filósofo Alain Badiou representando eles mesmos) que fazem um cruzeiro no mediterrâneo e discutem, entre outras coisas, sobre história, dinheiro e geometria. Ao mesmo tempo, o filme vem complementar estas questões através de uma colagem de imagens de arquivo que se alternam às do navio, que por sua vez também tomam a forma de colagem – de texturas e de sons. Godard alterna planos filmados em um HD que exacerba a cor e a limpidez a um limite quase irreal (como num comercial de perfume) com imagens toscamente registradas em um aparelho de celular. Cabe aqui uma observação: incrível como parte exclusivamente dos veteranos (Manoel de Oliveira e agora Godard, segundo realizador mais velho da mostra Un Certain Regard) toda tentativa de atualizar a ontologia da imagem a partir das novas possibilidades tecnológicas.

Passando para a segunda parte, o filme alcança o ponto máximo de narratividade (no entanto de maneira igualmente não-convencional), a partir de uma dramaturgia familiar que vem encontrar seu lugar ao lado do discurso global do filme, mas não necessariamente intrincada nele. Nesse momento não há mais imagens de arquivo nem mudança de registro (mantém-se apenas o HD). O cenário é a casa/posto de gasolina da notável família Martin, que este ano concorrerá às eleições, enquanto uma jornalista e uma cinegrafista esperam indefinidamente por uma entrevista. Os Martin representam no filme um posto de resistência (tal qual sugere um intertítulo que, na conclusão da história, os associa à Resistência francesa na Segunda Guerra) à política e à cultura da sociedade contemporânea. O filho mais novo, um garoto de não mais de sete anos, veste a camisa do partido comunista, escuta música clássica e pinta como Renoir. Sua irmã mais velha se recusa a utilizar o verbo ser e ameaça matar aqueles que falarem mal de Balzac. Uma lhama e um burro terminam de compor o cenário absurdo no qual vivem esses personagens – para que possa haver uma alternativa política ao modo como as coisas se encontram hoje, se trata antes de dinamitar todas as convenções.

Film Socialisme se conclui em uma terceira parte onde finalmente não há mais personagens, mas apenas um emaranhado de imagens e de textos que complexificam boa parte das questões que já haviam aparecido até ali, assim como encaminham outras. Planos de The Cheyennes de John Ford, entre outros filmes, vêm unir-se a uma cena de Les Plages d’Agnès onde vemos dois trapezistas saltando no ar, sobre a qual o próprio Godard diz (em entrevista à Inrockuptibles1) ter achado a imagem perfeita para a representação da paz entre Israel e Palestina. Film Socialisme desenvolve através de suas mil imagens um pensamento trágico sobre o estado atual do mundo e da Europa, cujo presente traz as marcas indeléveis de um passado de guerras, repressões e imperialismo – hoje os canalhas são sinceros, eles acreditam na Europa – é a principal frase do filme, que será repetida até que possamos decorá-la. Trágico, digo, não apenas por sua gravidade, mas também por sua estrutura em três atos, onde cada um é a parte constituinte que não poderia faltar – um primeiro que se planifica sobre o presente de um mundo irremediavelmente contaminado pelo dinheiro, um segundo que representa uma possibilidade (ainda que utópica e surrealista) para o futuro, e um terceiro, que vasculha fundo o passado da humanidade até chegar a um ponto em que não há mais imagem possível, se não o intertítulo conclusivo: “No comment”.


Alice Furtado

1. Uma tradução em inglês encontra-se disponível no blog Cinemasparagus.

Maio de 2010