11ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES
Cobertura diária

SÁBADO À NOITE, de Ivo Lopes Araújo

Tudo o que se poderia imaginar de um documentário autoral/conceitual que se anuncia como uma "viagem noturna por Fortaleza" está lá, materializado nas imagens de Sábado à Noite. Os planos silenciosos e estáticos em que nada parece acontecer até que se descubra eventualmente uma invenção do cotidiano (uma pessoa que passa, carros que cruzam o quadro, rostos fugidios em lugares estranhos, ruídos e formas diversas), a câmera observadora, destinada à paciência da espera por alguma iluminação natural, alguma manifestação do mundo ao qual se dirigir. Por outro lado, a apreensão surrealista dos indícios mais corriqueiros de realidade (postes de luz que se tornam pontos brancos móveis e indistintos, reflexos das mais variadas naturezas e motivos, o jogo de agitação da imagem quando a câmera passeia dentro de um ônibus). Cada momento desses, no fundo, uma reapresentação, em contexto diferente, de uma mesma idéia de beleza cotidiana que brota "naturalmente" diante do aparato cinematográfico, a golpes extremamente calculados do realizador, numa onda que tem atingido o documentário brasileiro recente (sobretudo dentro do espectro de filmes realizados no projeto DOC-TV, do qual Sábado à Noite faz parte, e que já teve recentemente filmes como Acidente seguindo esta mesma lógica da plasticidade a fórceps).

Ao mesmo tempo, sempre que decide embarcar naquilo que parece lhe pertencer muito particularmente, uma idéia posta em cena na primeira seqüência do filme, Sábado à Noite não só consegue produzir imagens de absoluto encanto, como também se veste de um conceito que não nasce de outro lugar que não de sua própria estrutura. É o tal momento da "regra do jogo" que Eduardo Coutinho tanto comenta e que Ivo Lopes Araújo apresenta na única fala em off dita no filme todo. Estamos na rodoviária de Fortaleza e ouvimos a abordagem de alguém da equipe a um grupo que está saindo dali de carro. A idéia é que a câmera ("de um documentário que vai passar na TV Cultura") os acompanhe no carro, numa espécie de carona, até onde o motorista for, para que então se aborde um novo carro, e o filme nasça deste passeio involuntário pela cidade. O grupo da rodoviária se nega à carona, mas ali está lançada a idéia de um trabalho de câmera e de som que só se materializa pelo gesto físico, pelo deslocamento anunciado, muito mais pela busca atribulada de imagens e ruídos do que necessariamente no encontro plácido e ocasional com eles. Há, num certo sentido, um desejo de perceber em Fortaleza uma cidade que nunca dorme, jogando-se na idéia de que a madrugada é um espaço tão pleno de movimento quanto o dia (não se começa numa rodoviária à toa). Mas Fortaleza não é São Paulo ou Nova York e quando sua noite dá sinais de cansaço e anuncia claramente que ali se dorme sim, Sábado à Noite começará, por conta própria, a forjar movimento onde antes não havia nenhum. São os únicos momentos de perda de controle da câmera, que está na mão e atua frontalmente sobre (e contra) o que se põe à frente. Persegue pombos que comem coisas da rua, afugentando-os até que alcem vôo e depois se embriaga de uma seqüência de postes numa praça, correndo atrás deles e provocando um efeito de dispersão confusa da luz, muito distante daquela figuração de vídeo-arte dos pontinhos luminosos brancos e dançantes.

O momento no qual esta operação aparece mais bem exposta (e que, isolado, é uma das grandes seqüências exibidas na Mostra de Tiradentes até agora) é o longo plano que mostra Danilo Carvalho, o técnico de som do filme, armado de um gravador e um microfone enorme, registrando o ambiente da cidade a partir de uma passarela de rua. Há uma coincidência entre a movimentação física do técnico, que aponta o microfone para diversos pontos do ambiente, e aquilo que ouvimos na banda sonora do filme. Um grupo de pessoas vem atravessando a passarela e, ainda que percebamos que conversam entre si, só ouviremos um resquício desse diálogo uma vez que o técnico, manualmente, desvia o microfone dos carros da rua e aponta-o diretamente para estas pessoas. A interação com a cidade não é passiva, muito pelo contrário: está baseada no contato direto, corpóreo, da equipe com o que a cerca. E então, tendo ficado longos minutos observando aquele jogo de suposta "denúncia" do aparato, Ivo Lopes de Araújo deixará a tela preta e seguirá com o som ambiente ocupando sozinho o espaço do filme. Para onde estará o técnico direcionando seu microfone agora? Em nome daquilo que ouvimos de fato, que outros sons estão sendo deixados de fora por quê não participam do campo de captação do aparelho (e das intenções do realizador)? A tela preta se estende e o filme – tendo nos mostrado literalmente sua produção a fórceps, esforço concentrado, cálculo sobre o acaso – finalmente não nos amarra à apreensão obrigatória de um belo de força centrípeta, que restringe os sentidos, que se fecha no interior da imagem. Pelo contrário, se há alguma beleza na banalidade (mesmo quando a imagem for suprimida e o que ouvirmos for o mesmo som presente diariamente na vida de qualquer cidade grande), seu princípio só pode ser a expansão da experiência perceptiva. É quando retornaremos à luz, desta vez não mais na rua agitada, mas diante do quebra-mar, e aquilo que imaginávamos como puro barulho do trânsito se transformará alquimicamente no som das ondas na praia. Não são muitos os filmes que conseguem, ainda hoje, devolver ao jogo simples de imagem e som uma categoria de revelação sensorial e são mais raros ainda aqueles que, como Sábado à Noite, parecem verdadeiramente nos meter num buraco negro (ou noturno), de onde se saia com a impressão de que nossa relação com o cinema foi verdadeiramente "re-purificada". E que essa ilusão só dura até o amanhecer.

Rodrigo de Oliveira