MEU NOME É DINDI, de Bruno
Safadi
NOME PRÓPRIO, de Murilo Salles
Em um dia, dois filmes intensos,
e duas personagens magnetizantes. Dindi e Camila; Bruno
Safadi e Murilo Salles. Não se pode dizer que haja
propriamente semelhanças entre eles, mas a exibição
consecutiva de Meu Nome É Dindi e Nome
Próprio proporcionou
paralelos um tanto interessantes entre os dois filmes,
envolvendo as relações câmera-ator e narrativa-personagem.
Tanto Djin Sganzerla quanto Leandra Leal apresentam
uma entrega física e emocional considerável, que parece
só poder existir em função do dispositivo cinematográfico
que as colocam em cena. O rosto como polarizador da
imagem, e uma câmera que busca seu lugar no espaço
se colando a estas figuras femininas.
A câmera em instabilidade de registro tornou-se uma espécie de tique do realismo
no cinema contemporâneo, mas Lula Carvalho talvez saiba levar este tique a outros
lugares. Seja provocando crises de adesão ao objeto de interesse em Tropa
de Elite, seja construindo um espaço ficcional lacunar e abismado em Meu
Nome É Dindi. Se Dindi é a baliza absoluta da imagem do filme, são
a movimentação
da câmera e o enquadramento preciso os principais responsáveis por criar a “verdade” do
universo em que ela vive. Este universo é o da ficção desenfreada, dopada de
história do cinema, na qual não se sabe o que se encontrará ao virar a esquina,
ou ao trocar de plano. O fora-do-quadro impõe-se, pois, como elemento estruturante,
como abertura e não como ausência, como a virtualidade de todas as possibilidades.
Meu Nome É Dindi começa como um filme de cotidiano, transforma-se
rapidamente
em filme de suspense, em filme romântico, em filme de perseguição, e daí em diante.
O jogo “sujo” com os clichês – talvez fosse melhor dizer, o jogo com clichês “sujos” –,
alastra-se de forma nada prescritível por um território situado entre o mambembe
e a armação intelectual. Na mesma medida em que se alimenta de referências de
um cinema pregresso, envelhecido até, o filme provoca uma abertura para o desconhecido
e o inexplorado. Safadi, sem dúvida, trabalha a partir de uma dimensão lúdica
que há muito não se via no cinema (e no cinema brasileiro em particular): a “brincadeira” abrange
desde o próprio fazer cinema até o drama vivido pela personagem, passando pelas
configurações de gênero.
O mundo, nesse sentido, é apenas uma deixa para que o cinema se imponha: o tempo
e o espaço da narrativa são vagamente situados e as problemáticas que a trama
corteja não existiriam sem o desfile grandioso do melodrama, do terror, da fantasia
e de personagens perfeitamente icônicos. Neste sentido, Dindi é menos uma personagem
do que uma sensibilidade a percorrer um vertiginoso labirinto; labirinto que
se alimenta, como bem observou nosso Bernardo Barcellos, do espírito da escrita
automática ao gosto dos surrealistas.
Em Nome Próprio, a escrita é outra. Trata-se, por um lado, de um roteiro
que avança, mas sem eira nem beira, sem nunca construir um ciclo fechado de acontecimentos,
e, por outro, de uma escrita precária que se impõe como expressão pessoal em
caráter de urgência, expressão orientada por experiências de vida e por auto-fabulações.
O exagero que pauta a evolução das cenas comunga, em alguma medida, dos mesmos
princípios que informam a existência de Camila. Não se sabe ao certo até que
ponto Nome Próprio é uma ficção blogueira romanceada e miserabilista – mais
um sintoma deste expoente de nossa vivência urbana contemporânea – e até que
ponto ele versa sobre este fenômeno, motivado por um interesse premente e uma
necessidade de resposta imediata ao entorno.
O certo é que, surpreendentemente, Murilo Salles fez um filme que tangencia diversas
questões importantes que circundam este universo, distante até então de nossas
telas de cinema – exceto talvez pelo desastroso empreendimento de Heitor Dhalia
em Nina. O glamour meio indie, meio rocker, meio junkie,
explorado abundantemente por jovens e adolescentes numa cultura visual constituída
de forma um tanto autônoma em fotologs e orkuts, vem à tona, para mesclar-se
com as narrativas poetizadas de si, nas quais se rasga o peito para versar os
sentimentos publicamente de forma que o maior dos sofrimentos pareça atraente
e sedutor. O resultado é esta figura que protagoniza um relato permeado de abstrações
originadas por experiências físicas.
Inspirações beatnik à parte, temos situações que capturam gestos, trejeitos
e comportamentos numa chave distanciada do drama (cinematográfico ou televisivo),
do realismo documental, ou de um cinema imersivo-sensorial. Parte do frescor
do filme está aí. A oscilação entre entrega e repulsa que Camila experimenta
com o rapaz de Ribeirão Preto, seu cara-a-cara com o ex-namorado à porta do apartamento,
seu reencontro com a amiga Paula, são exemplos de momentos em que alguma coisa
diferente torna-se objeto da encenação. Estes momentos não apenas remetem a cenas
observáveis no mundo real, como condensam os traços de uma sensibilidade feminina
contemporânea que a personagem, bem ou mal, representa. De uma forma geral, no
entanto, esta sensibilidade parece sempre conformada por um olhar masculino. Nome
Próprio, na verdade, se faz numa “disputa” entre o domínio do filme e o domínio
da expressão da atriz/personagem.
Se Leandra Leal parece erguer o filme com a força de sua presença, a câmera está ali
para determinar os moldes sua existência – pautados sempre por um gosto pelo
excesso. Vemos tudo o que Camila faz, inclusive falar de si. Mas talvez tudo
aquilo que vemos seja menos registro de uma realidade patente do que um acoplamento
entre a produção do filme e a produção da própria personagem, como sugerem a
cenografia sempre oscilante dos espaços internos e a mudança da primeira para
a terceira pessoa. Os textos sobre a condição emocional de Camila deixam de ser
confessionais para serem descritivos. E, ao final, duas Camilas ocupam o mesmo
plano, uma vestindo a personagem, outra visualmente mais “neutra”, supostamente
a escritora por trás de tudo.
O filme situa-se, assim, num limbo entre o universo mental interno de Camila
e sua manifesta existência no mundo real. Trata-se de um limbo não-organizado,
uma sensação evocada pelo atropelamento das imagens, que se seguem sem a noção
de mise en scéne no horizonte. A conformação dos planos parece sempre
decorrer do intuito de registro da câmera, e nunca o contrário, o que de alguma
forma reforça a urgência de capturar a combustão que vive a personagem e rima
com a produção literária “precária” de que eu falava.
Em alguma medida, Nome Próprio guarda afinidades com Cão Sem Dono,
de Beto Brant. Personagens que experimentam ligações afetivas muito intensas
e fugidias, um certo sentimento de abandono no mundo, a instabilidade constante
em relação ao futuro, um universo literário brasileiro contemporâneo que privilegia
a expressão de estados d’alma cotidianos. Por outro lado, o tratamento gráfico
que Murilo Salles empresta à sua matéria-prima narrativa – no trabalho de caracterização
visual de Camila, na sobre-impressão da escrita na imagem, na reprodução frontal
da tela do computador – o distanciam do trabalho “essencialmente” cinematográfico
de Brant (buscar uma forma para dar conta da relação dos personagens com o espaço
e com o tempo que traduza a fluidez e espontaneidade do que eles vivem).
Meu Nome É Dindi, por sua vez, apresenta-se como um bicho raro, sem pares,
a despeito de suas referências: Belair, melodramas vagabundos, pornochanchadas...
Seu impactante vigor está em se apropriar destes imaginários para fazê-los funcionar
dentro de sua lógica própria, na qual tudo se justifica a partir da pregnância
da personagem principal e de sua montanha-russa particular. As expressões de
Djin não acumulam-se sobre o seu rosto, para dar corpo e consistência à personagem,
elas expandem os limites da imagem, abrindo uma outra dimensão perceptiva, de
ordem abstrata, que faz circular em torno dela, e diante de nós, diversos “filmes”,
que compõem uma só narrativa, multifacetada e enigmática.
Para concluir, digo que a ocasião não poderia ter sido mais propícia para assistir
os dois filmes. Dentro do clima reinante em Tiradentes, de afinar os olhos e
ouvidos para a um presente ainda em construção, ambos apresentam-se como peças
vitais para a reflexão sobre o cinema brasileiro em 2008.
Tatiana Monassa
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