paraíba, vida e morte de um bandido E
mineirinho, vivo ou morto

Victor Lima, Paraíba, Vida e Morte de um Bandido, Brasil, 1966
Aurélio Teixeira, Mineirinho, Vivo ou Morto, Brasil, 1967


O lançamento da Coleção Herbert Richers é mesmo um evento digno de comemoração: à medida que mais títulos são lançados, um conjunto realmente significativo da produção comercial brasileira das décadas de 50 e 60 vai tornando-se (novamente) acessível. Os DVDs são, em geral, fruto de telecines de cópias antigas, nos quais podem-se ver eventuais manchas de mofo, por exemplo. Mas o que realmente importa, neste caso, são as janelas de visibilidade abertas – seja para alegres reencontros, seja para descobertas promissoras.

De alguma forma, a produtora de Richers parece ser um “elo perdido” (ou pelo menos um deles) entre os esforços “industriais” anteriores e o cinema popular de baixíssimo orçamento que se estabeleceria posteriormente. As chanchadas – gênero mais lembrado do período e o favorito das recentes releituras da época – já não eram aquelas feitas na Atlântida, e tampouco o carro-chefe privilegiado. E junto delas, figuravam outros gêneros que buscavam, eles também, seu espaço cativo. Entre estes, é claro, o policial. E, para quem duvidar que o Brasil soube um dia contribuir dignamente para este rico gênero, as imagens podem agora atestar.

Se nos acostumamos, no cinema dito “da retomada”, a um cinema, via de regra, com ambições autorais protocolares, ou claramente desajeitado quando busca se aproximar de uma formatação de linguagem mais corrente, não é sem alguma surpresa que contemplamos filmes como Mineirinho, Vivo ou Morto, de Aurélio Teixeira, e Paraíba, Vida e Morte de um Bandido, de Victor Lima. A precisão funcional da forma deste filmes, assim como sua eficiência narrativa, é de admirar qualquer um não-familiarizado com o que se fazia por aqui àquela altura. O interessante é que a atual conjuntura do nosso cinema, com seu incipiente gênero do “filme de favela”, propicia contornos ainda mais instigantes a esta reflexão.

Como em clássicos exemplares americanos, os criminosos, habilidosos e sagazes, e os policiais, absolutamente operacionais e eficientes, ocupam-se antes de mais nada de um jogo de gato e rato baseado na pura competição. A perseguição constitui a alma destes filmes e a montagem paralela dá a medida do suspense para os perseguidos, que são o foco de atenção privilegiado. Ambos os filmes apresentam um fôlego notável (sem dúvida, em muito debitário da excelente montagem de Rafael Valverde) e pouco se dedicam a questões envolvendo a ética das ações, seja dos bandidos, seja dos policiais. Importam mais suas performances, como elemento central deste dinamismo narrativo, do que inferências voltadas para um diálogo direto com a realidade.



Não obstante, é bastante curioso observar as posturas e falas do personagem do bandido-herói nesta encarnação tupiniquim do arquétipo, consagrada pela expressão inconfundível de Jece Valadão. Nos gestos e na voz do ator imortalizou-se um tipo marginal praticamente sem ambigüidades, às vezes frio e desumano, às vezes compreensivo e generoso, mas sempre dono de uma notável consciência de si. Este mocinho às avessas, espécie de meio-termo entre o bandido romântico e o herói trágico, apresenta-se quase sempre como sintoma manifesto dos desajustes da sociedade.

Em Paraíba, Vida e Morte de um Bandido, há um diálogo brilhante neste sentido. Pressionado pelo jornalista a contar sua vida, Paraíba recusa toda tentativa de compreensão sócio-psicológica de sua trajetória e, quando questionado sobre sua consciência, responde: “eu nem sei o que é isso”. No entanto, seu discurso de “ih, não vem com essa conversa mole que eu não entendo” deixa transparecer claramente sua idéia de pertencimento social e sua auto-determinação. O enfrentamento entre ele e o repórter não é, portanto, apenas um conflito de interesses; é também o choque entre suas respectivas classes (e culturas).



Entra em cena, desta forma, o background deste marginal brasileiro. Embora razoavelmente distante de justificativas sócio-econômicas para seus atos, trata-se de um marginal propriamente dito, um criminoso com contexto. Seja “paraíba” ou “mineiro”, ele procede de um lugar determinado, tem história e circula numa área urbana reconhecível (subúrbio, favela, zona norte, tanto faz). Através de suas ações, ele vai além da apropriação de um arquétipo já consagrado; trata-se de um personagem que fará sempre uma espécie de passagem entre seu mundo de origem (ou de eleição) e este outro mundo que ele vem confrontar.





As constantes perseguições/escapadas que povoam as histórias dão o tom: indivíduos em constante instabilidade, que não possuem de fato um lugar na sociedade, ou uma solução de vida possível. Entre a favela (ou a Zona Norte) de Nelson Pereira dos Santos e tiroteios à la faroeste e entre flertes com a tônica neo-realista do cinema moderno e emulações de aspectos do noir, o herói-bandido (não necessariamente positivado) é aquele cuja trajetória possui ligação direta com o tempo-espaço em que se encontra. Viver para ele é mais do reunir traços reconhecíveis de personalidade ou se engajar em ações prefiguradas, é estar também imerso numa conjuntura.











Paraíba, assassino cruel, fala de sua família e de seu passado de forma desapegada e proclama não ter medo de morrer; concentra em si não apenas toda a origem de suas capacidades, mas também concede ao acaso/destino o desdobramento de sua vida. Mineirinho, por sua vez, é convertido em bandido pelas circunstâncias; a irrupção dos acontecimentos irá determinar a impossibilidade dele se estabelecer em família e a imagem de homem mau se estabelecerá à sua revelia. Ambos encontram-se sempre na iminência de uma virada nos acontecimentos; são heróis trágicos que deparam-se necessariamente com a morte pela impossibilidade de uma solução para o eterno impasse que incorporam.

Como indica a música da seqüência de abertura em MineirinhoOlha o menino no morro/Pede socorro, mas ninguém dá/O morro é muito alto/Como é que a gente da cidade vai fazer para subir lá? –, sua relação com a sociedade não se dá apenas na chave da ameaça; pois ser marginal configura menos uma escolha do que uma forma de existir. O bandido-protagonista torna-se, assim, este corpo estranho dentro da economia da cidade, ocupando um meio-termo entre a exclusão e o confronto e encarando uma escalada de tensão rumo à aniquilação – afinal nem o lugar de criminoso ele pode ocupar tranqüilamente. Paraíba morre em decorrência de suas ações, mas antes, moribundo, faz o balanço em retrospecto de sua vida, em essência, descompensada. Já Mineirinho morre encurralado pelo circo armado em torno dele, tendo todo o seu desejo de integração infinitamente frustrado.

É quando entra em cena a população urbana, como o “público” da trajetória deste personagem de exceção. Em Paraíba, a classe média, que, aqui e ali, serve de refém; em Mineirinho, os habitantes da favela que acolhem o fora-da-lei e são beneficiados por ele (Mineirinho-Robin Hood que rouba um carregamento de leite para contemplar os despossuídos). E é a imprensa, como ator social e como veículo de comunicação, a principal responsável pelo estabelecimento desta “espectorialidade” atravessada. Imprensa que anuncia a necessidade de visibilidade do acontecimento social que é o bandido e que reclama para si alguma intervenção positiva (como no caso do jornalista que oferece garantias para que Paraíba se entregue). Imprensa que busca o sensacionalismo barato, que precisa de heróis fantásticos e bandidos terríveis, que estampa em suas páginas as histórias que mais chamam a atenção, sejam reais ou não (como nos tablóides em Mineirinho). Ou imprensa marrom que termina por denotar faces nada agradáveis do que se dá em nosso entorno.





Na já citada seqüência de abertura de Mineirinho, sob a música, uma série de fotografias de corpos assassinados e de repressão policial concentra diversos destes aspectos, fazendo-os coincidir, em alguma medida, com a própria instância do filme. Assim como as fotos e as reportagens escancaram e criam dramas baratos, este cinema policial toma pra si estas narrativas e a necessidade de pô-las em evidência, de devolvê-las à sociedade em forma de espetáculo dramatizado. No decorrer do filme, Aurélio Teixeira irá, inclusive, retomar algumas das imagens vistas na abertura em tomadas próprias, explicitando este diálogo e reforçando o viés crítico que elas sugerem.






Em Paraíba, é outra interseção com imagens “externas” que reforçará a interação do filme com a sociedade à qual se dirige: a montagem paralela entre o corre-corre de bandidos e polícia e a movimentação dos jogadores de futebol do outro lado dos muros do Maracanã entrelaça filme e mundo de maneira não apenas formal, mas também afetiva. A ficção e os personagens demonstram não estarem assim tão distante do universo vivido diariamente por seus espectadores. O entretenimento-à-base-de-adrenalina não dispensa a crônica de costumes. Forja-se, assim, uma caracterização bastante peculiar do gênero policial.





Na esteira destas construções visuais, outro fator digno de atenção são algumas escolhas arrojadas de mise-en-scène, que nada têm de gratuitas, como se poderia pensar. O jogo destes cineastas com o espaço é potente o suficiente para desconectar planos quando o cenário de estúdio pede, ou criar, eventualmente, planos-seqüência vertiginosos que brincam com a orientação espacial, como campo-contracampos através de reflexos em espelhos. A decupagem, no todo, demonstra que a lição do cinema clássico foi apreendida de forma significativa: cada plano serve para fazer avançar a narrativa, de forma que manifestações mais enfáticas de autorismo dêem-se apenas em alguns pontos. Admiráveis exemplos são a seqüência de perseguição de Isabel ao início de Mineirinho, na qual vemos apenas a mulher olhando diretamente para a objetiva e fugindo desesperada em jump-cuts, segundo o ponto de vista dos perseguidores, ou a fuga de Paraíba em meio ao tiroteio final do filme, em que a câmera exibe seu trabalho de acompanhar a ação, ao girar rente ao chão e enquadrar o personagem na horizontal.















Em todas estas articulações de sentido e construções formais, este nosso cinema policial nacional revela sem dúvida um vigor insuspeito. Tanto o filme de Teixeira quanto o de Lima atestam uma real incorporação do gênero na nossa cinematografia, sempre com distintas apropriações e reconfigurações. Infelizmente, nossa história e nossa historiografia preferiram esquecer disto.

Tatiana Monassa

(DVD: Europa Filmes)