O caminho dos ingleses
Antonio Banderas, El Camino de los Ingleses, Espanha/Reino Unido, 2006

"Gracias a la família Banderas-Griffith por permitir que papi se marchara a realizar su sueño". É assim que Antonio Banderas termina os créditos de seu segundo longa-metragem, e quando esses agradecimentos aparecem, vêm apenas reiterar verbalmente aquilo que já estava evidente em cada uma de suas imagens. O Caminho dos Ingleses é um filme de assinatura, é uma carta de princípios, pessoal como poucos filmes conseguem ser, honesto na mesma medida, uma vez que se expõe completamente enquanto construção parcial de uma memória, de um período, de uma maneira de lidar com a vida e com a arte. Confirma-se a cada seqüência como um projeto de sonho, como o sacrifício de se cumprir o caminho entre a casa atual (entendamos o "Griffith" nos agradecimentos não só como a família, mas toda a simbologia hollywoodiana inscrita aí) e a casa natural (um retorno à Espanha, à juventude que foi a sua própria, à Málaga natal da qual se saiu moleque pobre e que vinte anos depois o recebe como profissional realizado). Mais ainda, um filme que dá amplitude ao verbo "marchar", uma vez que claramente significa um passo firme numa carreira em direção de cinema, e não só um exercício de ator-por-trás-das-câmeras. Há em O Caminho dos Ingleses uma idéia, um controle, um pensamento sobre a arte coerente consigo mesmo e com as formas que se apresenta aos nossos olhos, e é isso que garante nosso interesse sincero diante de um filme que fracassa redondamente em quase todos esses seus esforços.

É mais uma história de amadurecimento, mais um conto de juventude perdido num verão do fim dos anos 70, mais um confronto entre gerações, entre os desejos íntimos e o curso da história e do destino, com uma turma de adolescentes artísticos e sexuais no meio disso. Só que ela começa com uma operação bastante gráfica de extração de um rim. As primeiras seqüências de O Caminho dos Ingleses dão bem a medida do que Banderas aprontará a seguir. Miguelito é um jovem que não quer seguir o curso que a vida modorrenta de sua cidade lhe impõe, e que decide que é poeta mesmo sem nunca ter escrito um verso sequer. Internado num hospital, ele receberá uma cópia de A Divina Comédia do paciente ao lado, e este é nosso passaporte para um universo paralelo estranhíssimo. A apropriação que Miguelito e Banderas fazem de Dante é lisérgica em seu sentido literal. A metáfora do caminho entre o inferno e o céu (ou o eterno vagar pelo purgatório) é materializada em objetos, em pequenos clipes estilizados, na utilização do kitsch tão caro à imagem que temos do Banderas-ator, só que agora a serviço do bom gosto, do sentimento nobre. É uma incompatibilidade óbvia, mas que O Caminho dos Ingleses atropela: piscinas de sangue, urina com sangue, tudo quanto é mal é vermelho, e mesmo algumas aranhas caranguejeiras podem ser jogadas aí para que o impacto visual seja efetivado. Do mesmo modo, Banderas não consegue conceber o sublime do ato sexual na velocidade normal dos acontecimentos, e qualquer respingo de desejo será devidamente embalsamado por uma câmera lenta, "expressiva e romântica".

É um festival de excessos, e o melhor: é exatamente este o motor de O Caminho dos Ingleses. "Isto é rádio demais para a rádio", é o que diz o narrador-personagem do filme, um radialista fracassado que acompanha à distância as aventuras melodramáticas dos quatro jovens protagonistas, e é como se Banderas quisesse exatamente isso, "cinema demais para o cinema". Temos aqui um ator de formação revelando o que mais preza em seu ofício, e sinalizando corajosamente os caminhos que pretende trilhar uma vez que agora também é um diretor de atuações, de representações. Em O Caminho dos Ingleses há o elogio do ato performático puro, instalado nos grandes picos emocionais (e eles são muitos), mas também nas situações mais banais. Tudo é "hiperbólico" (outra coisa dita pelo tal radialista), todo drama pessoal é vivido dois tons acima, qualquer olhar corriqueiro é um potencial registro fotográfico permanente na memória de alguém, qualquer beijo é uma marca definitiva no espírito de um amante. Mas não podemos nem falar em over, porque não há parâmetro de "normalidade" aqui: a realidade foi jogada para escanteio, e esse cinema nasce do puro delírio.

Mas haverá adiante uma nova incompatibilidade, e novamente o filme não se fará de rogado em passar por cima dela. Um chamado ao mundo terreno, "os sonhos podem ficar no mundo dos sonhos", o grande amor que até então tratávamos por Beatrice (como em Dante), mas que agora chamaremos por seu verdadeiro nome. O verão acabou, uma chuva lavou-nos a adolescência da alma, e agora é olhar para frente, para a vida adulta, enquanto o fundo do quadro vai servindo de depositário das experiências passadas (descrição visual e semântica do belo último plano do filme). Depois de um começo insípido com Loucos do Alabama, realizado dentro da roda industrial americana e sob sua influência sufocante, Antonio Banderas pôs finalmente as mãos em um projeto pessoal, com liberdade artística total, e compromisso único com suas próprias idéias. Errou novamente, mas o fez tão apaixonadamente que não há como não imaginar que O Caminho dos Ingleses é seu verão decisivo, aquele que o tirará da adolescência cinematográfica, e que precisava ser vivido em todo seu torpor e incongruência justamente para funcionar como um rito de passagem. E por mais que as aranhas caranguejeiras como metáfora do mal realmente nos assustem, é impossível ignorar que esse olhar para frente de Banderas promete coisas melhores, e é muito seguro afirmar que um diretor de cinema nasceu ali no meio daquela cafonice toda.


Rodrigo de Oliveira

(DVD: Visual Filmes)

 

 






Antonio Banderas e Alberto Amarilla, diretor e protagonista de
O Caminho dos Ingleses: um duplo rito de passagem