E O BICHO NÃO DEU
J.B. Tanko, Brasil, 1958

Costuma-se enxergar as comédias produzidas por Herbert Richers como espécies de primas pobres da Atlântida: não haveria nelas nem o glamour de um "período de ouro" da chanchada, marcado por duplas como Oscarito/Grande Otelo ou Eliana/Anselmo Duarte, nem a excelência técnica e artística de um Watson Macedo ou de um Carlos Manga. As comédias com o selo Herbert Richers seriam bem mais desleixadas, ainda mais pobres, e não teriam propriamente uma personalidade como a Atlântida, empresa que o crítico Sérgio Augusto, em seu clássico livro Este Mundo É um Pandeiro (1989), denominou de forma significativa como a "Metro Tropical".

Comparativamente, tais observações fazem sentido. Mas é necessário questionar se a comparação com a Atlântida tem mesmo toda essa razão de ser. Sim, tanto a empresa de Severiano quanto a de Richers faziam chanchadas. Sim, a parceria entre Ankito e Grande Otelo era uma reedição da famosa dupla cômica da Atlântida. E muitos artistas que trabalhavam na "Metro Tropical" passaram também para a Herbert Richers (diretores-roteiristas como Victor Lima e J. B. Tanko ou astros como Renato Restier, Renata Fronzi, Sérgio de Oliveira e Bill Farr, sem falar, é claro, de Grande Otelo). O próprio Richers saiu dos quadros da Atlântida, onde trabalhava como cinegrafista, para se tornar um produtor de cinejornais e, posteriormente, o principal concorrente de Severiano Ribeiro. Essas ligações sem dúvida existem, mas quando excessivamente reiteradas de forma acrítica, criam uma falsa noção de continuidade na produção chanchadística. O complicado nessa noção é que ela induz a pensar que todas as comédias produzidas pela Atlântida e por Herbert Richers, embora concorrentes e qualitativamente distintas, na verdade seriam uma coisa só: chanchadas cariocas dos anos 1950 e fim-de-papo.

Um outro aspecto negativo da comparação entre a Atlântida e as produções de Herbert Richers é a desigualdade na pesquisa sobre as duas empresas. Embora ainda hoje pouco se saiba de concreto sobre as formas de produção da Atlântida, é inegável que a produtora de Severiano Ribeiro é muito mais estudada, reportada e detidamente analisada do que a trajetória de Herbert Richers. Quase nada sabemos, por exemplo, das relações entre Richers e seu co-produtor Arnaldo Zonari. Quem é Zonari? Qual a sua origem? Quais eram os termos contratuais entre ambos? Sabemos pouquíssimo sobre a Sinofilmes, empresa de Richers e Zonari. Viria a ser a mesma Herbert Richers Produções? Como se dava a parceria entre a Sinofilmes (Richers/Zonari) e a Cinedistri (Oswaldo Massaini)? Sabe-se que essa parceria entre a produtora carioca e a distribuidora paulista de Massaini se deu em função dos vantajosos financiamentos que o Banco do Estado de São Paulo concedia nos anos 1950, mas em que medida essa prática influía na realização dos filmes? Em que medida tal parceria interestadual (que já relativiza o termo "chanchada carioca") diferenciava ainda mais Herbert Richers da Atlântida, ao mesmo tempo em que o aproximava de outras pequenas produtoras como a Cinelândia e a Produções Watson Macedo, ou de uma distribuidora como a Unida Filmes, lideradas respectivamente por produtores independentes como Eurides e Alípio Ramos e Watson Macedo, ou por essa figura misteriosa e, apesar disso, central que é o distribuidor ítalo-carioca Mario Falaschi?

Em termos de chanchada, francamente, caminhamos no escuro. Em termos de informação concreta sobre as formas de produção do cinema brasileiro dos anos 1950, então, o breu é ainda maior. Há muito a ser pesquisado, muito a ser repensado. Por isso, lançamentos em DVD como esse de E o Bicho Não Deu são sempre bem-vindos, são sempre necessários. É muito pouco, certo, mas já é algo: pelo menos possibilita ao pesquisador e ao público em geral interessado no assunto o contato direto com o filme, não somente intermediado por uma idéia pré-concebida do que significa esse gênero de filmes dentro de um entendimento mais ou menos convencional da história do cinema feito no Brasil.

Assistir a E o Bicho Não Deu possibilita, por exemplo, que afirmações como essas de que as comédias de Herbert Richers seriam "desleixadas", sejam reavaliadas com mais cuidado. Basta observarmos a segurança da direção de J. B. Tanko. Nada que lembre o despojamento radical de um Victor Lima; em termos de mise-en-scène, Tanko é bem mais "clássico", mais moderado, mais limpo. A sua leitura da ação é sempre elegante: a câmera antecipa-se aos atores, em curtos travellings de correção, observando-os sempre em escalas variadas de primeiros planos a planos médios, de forma tanto a valorizar o corpo (essencial na comédia) quanto os cenários. Um plano que porventura destoe dessa estrutura formal é sempre justificado pelo inusitado da ação. A direção de Tanko pode ser, por isso mesmo, acusada de burocrática ou algo assim. Tendo a vê-la mais como uma direção aliada aos atores. Nem muito acima, nem muito abaixo.

Com essas observações impressionistas não quero afirmar que E o Bicho Não Deu é uma obra-prima. Não se trata de falar aqui em exceções. O que acredito ser mais interessante é, por exemplo, examinar o quanto essa direção de Tanko, para além do fato de se mostrar segura em seus movimentos de câmera e enquadramentos, também sinaliza a incorporação de uma linguagem televisiva já em gestação naquele momento. As comédias produzidas a partir de meados dos anos 1950 parecem não mais pensar a mise-en-scène em termos de reprodução do clássico-narrativo a la Macedo (Carnaval no Fogo, 1949) ou Manga (Matar ou Correr, 1954), mas antes em termos de um diálogo com a televisão, em moldes semelhantes àqueles que aproximavam a comédia musical carnavalesca dos anos 1930 (Adhemar Gonzaga e Wallace Downey, sobretudo) do rádio e do teatro de revista.

É por isso que, nos anos 1930, um realizador como Luís de Barros, com sua liberdade criativa que o permitia juntar cenas documentais e em estúdio num filme como Tererê Não Resolve (1938), era um diretor excepcional no gênero. Com isso, ele escapava do "lugar-comum" radiofônico. Já no caso de Tanko, pelo menos em E o Bicho Não Deu, filme realizado em 1958, tratava-se justamente de se encaixar em um tipo de relação entre veículos (cinema/televisão), ainda que, naquela época, tal relação não fosse necessariamente vista como convencional. Nesse sentido, Tanko pode ser visto como um diretor "comportado", que busca um determinado padrão. É um estilo bem diverso do de um Victor Lima, este sim um mestre na radicalização do diálogo cinema/TV, com sua entrega absoluta à frontalidade inquieta e à agressiva bidimensionalidade de seus enquadramentos.

Não por acaso muitas das comédias realizadas nesse período posterior a 1956 (que a pesquisadora e professora Hilda Machado chamava de "chanchadas tardias"), utiliza-se da televisão como elemento cenográfico e dramático, ou mesmo como tema central. Em E o Bicho Não Deu, por exemplo, os dois meios (cinema e TV) interagem e se intercomunicam: a megera vê seu esposo (Costinha, caracterizado com um inacreditável bigodinho de Hitler) se esbaldando na boate, porque a televisão transmite de lá, ao vivo, o show que o filme incorpora à narrativa.

Nesses filmes, e o exemplo acima confirma, a televisão não é vista com horror pelo cinema, como mais tarde, isto é, a partir dos anos 1960, será comum acontecer, conforme afirma Jean-Claude Bernardet a propósito da relação entre o cinema culto e a TV, em seu livro Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro. Basta pensarmos no tratamento positivo dispensado à televisão, em Absolutamente Certo! (Anselmo Duarte, 1957), para percebermos a diferença de tom.

Em termos, portanto, de mise-en-scène, E o Bicho Não Deu traduz uma espécie de segundo momento da chanchada, não mais aquele correspondente a uma possível necessidade de reproduzir, em moldes brasileiros, a linguagem cinematográfica hollywoodiana, mas, sobretudo aquele imbuído em pensar a encenação em termos de um diálogo ainda experimental com a televisão. Um exemplo máximo dessa postura é Na Corda Bamba (1957), filme produzido pela Cinelândia, com direção de Eurides Ramos. Volta e meia ele é exibido no Canal Brasil. Confiram.

O que foi dito acima nos permite deixar de ver essas comédias - dentre as quais incluo E o Bicho Não Deu - como uma espécie de fim-de-linha da chanchada, que estaria aos poucos migrando para a televisão com um melancólico suspiro derradeiro. Trata-se de enxergá-las como um outro estágio mesmo do gênero, naquele momento muito mais interessado em dar conta de um novo tipo de articulação audiovisual - a televisiva - do que em perpertuar sabe-se lá que compromisso com a paródia ao filme clássico-narrativo. Esses filmes do final dos anos 1950 - sobretudo os produzidos pela Cinelândia e por Herbert Richers - não querem mais saber disso; eles procuram ser modernos.

A relação com a televisão, presente em E o Bicho Não Deu, não é o único elemento que nos parece construir laços de interesse com o momento atual. O próprio tema do filme - as relações de total promiscuidade entre a polícia e o crime - não poderia ser mais contemporâneo. O detetive Bartolomeu (interpretado por Ankito) perde a memória e pensa ser um bicheiro. Quando ele ouve qualquer apito, recobra a outra identidade e volta a ser policial. A ironia está no fato de que não sabemos se ele é um policial que era bicheiro ou se era um bicheiro que se tornou policial. Na verdade, Bartolomeu encarna a ambivalência em pessoa: ele é ao mesmo tempo o detetive e o bicheiro, valendo-se tanto de um quanto de outro, dependendo da maré. A inconsciência é pura farsa, que o filme assume como real por ser exatamente isso mesmo: uma farsa.

E como toda boa farsa E o Bicho Não Deu é crítica política e social da melhor qualidade. Basta substituir o jogo do bicho pelo tráfico de drogas - e, claro, descontar as passagens que, para os olhos do espectador de hoje, são muito ingênuas - e teremos o retrato do Brasil da "banda podre", do crime organizado, de Renans Calheiros, FHCs, Malufs e Garotinhos, da indistinção entre quem serve à lei e quem serve ao crime, da corrupção desenfreada em todos os níveis da sociedade, da mentira deslavada, do surrealismo financeiro e da impunidade. Os diálogos não são violentos, mas dificilmente se vê no cinema brasileiro de hoje uma réplica tão simples, objetiva e certeira como essa de Bartolomeu para Jujuba, o bicheiro interpretado por Grande Otelo:

JUJUBA: Eu sou bicheiro, mas sou honesto. Sujeito que engana o povo não é bicheiro.
BARTOLOMEU (concordando): Não: é político!

Um pouco de tudo isso certamente nasce da parceria de Tanko (roteirista) e de Sérgio Porto (argumentista), o Stanislaw Ponte-Preta do Febeapá. Aliás, mais um mito que se desmorona. Como relegar a um eventual segundo plano uma produtora que tinha em seu time um argumentista como Sérgio Porto, um fotógrafo como Amleto Daissé, um cenógrafo como Alexandre Horvarth, um montador como Rafael Justo Valverde, um compositor de trilha musical como Remo Usai e atores como Grande Otelo, Costinha, Ankito, Vera Regina e Zé Trindade?

Confiram E o Bicho Não Deu. Além de tudo, é divertido.


Luís Alberto Rocha Melo

(DVD: Europa)

 

 












Costinha se esbalda ao vivo na boate,
sob o espanto de sua mulher, que o vê na telinha:
E o Bicho Não Deu e a chanchada entre o cinema e a televisão