O CAÇCADOR DE PIPAS
Marc Forster, The Kite Runner, EUA, 2007


O “ponto de vista da pipa”, efeito visual ícone da série de metáforas primárias que alimentam o filme de Marc Forster.

O papel desempenhado pelo céu em O Caçador de Pipas é central. Não se trata, entretanto, da mecânica do “espaço como personagem”, recorrente em filmes em que, por exemplo, cidades assumem importância determinante. O céu aqui é muito mais um ponto de vista e uma metáfora do que uma prosopopéia. O símbolo, na verdade, é primário: por mais diferenças que haja entre os homens, o firmamento, aquele onde o vento faz as coisas voarem, é sempre o mesmo. O que, no final das contas, seria um ideal de espelhamento: uma vez que é o mesmo azul que nos encobre, a fraternidade deveria ser quase uma determinação. Somos todos iguais sob um mesmo céu.

Babel complicada, claro, utopia política mais ainda. Ainda mais difícil utopia estética. Sobretudo porque a equalização produzida por essa metáfora em O Caçador de Pipas, o filme, é dramatúrgica e de mise-en-scéne. Sem eufemismos ou floreios, então: o filme é de uma banalidade acachapante. Claro, o primeiro componente dessa banalidade é o livro que lhe dá origem. O Caçador de Pipas, o romance de Khaled Hosseini, é já uma história pejada de todos os clichês dramáticos que se possa imaginar – o que é obviamente uma influência para o filme – e é escrito com todos os clichês literários que se possa imaginar – o que não precisaria influenciar a versão cinematográfica. Mas influencia.

Além disso, Marc Forster, um diretor estranhamente consagrado, provavelmente mais pelos temas “curiosos” escolhidos para seus filmes do que por algum “projeto estético” que o afaste da banalidade, opta por fazer um filme cuja estratégia principal é a conversão em celulóide de algo que se poderia chamar de “multiculturalismo”. Visto de “longe” (do alto?), O Caçador de Pipas parece um filme de, digamos, Samira Makhmalbaf (ou de qualquer diretor meso-oriental de exportação). É um filme americano com cara de filme-do-oriente-médio-que-tem-cara-de-filme-americano. É como Filhos do Paraíso (Majid Majidi) ou Cinco Horas da Tarde (Samira). Ou seja, é um filme que segue uma cartilha de universalização de princípios e de situações dramáticas. É um filme americano com cara de filme que concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

Forster nos apresenta, então, a história com uma temperatura de cores e com uma textura e granulação mais próximas de um cinema do Oriente Médio do que de uma produção americana. Não bastasse isso, o filme é encenado em pashto e dari, as duas línguas do Afeganistão. Tudo é feito ali para que se trate de um “filme afegão”. E essa emulação do cinema meso-oriental se torna ainda mais estranha se se considera o conjunto de clichês do roteiro: sob um mesmo céu, dois meninos diferentes – em termos de raça e em termos de classe – são feitos iguais. É um clichê recorrente. Já vimos barreiras semelhantes serem vencidas pela “inocência da infância” inúmeras vezes. Hassam e Amir poderiam ser um filho de fazendeiro e o outro trabalhador rural na Itália, filho de casa grande um e da senzala outro no Brasil ou, digamos, um menino alemão oriental e um alemão ocidental (que, por exemplo, trocariam pipas de um lado a outro do Muro de Berlim). Igualmente, sob um mesmo céu, o homem, do outro lado do mundo, retornará a seu antigo país, para reencontrar suas raízes, atendendo a um chamado do passado. E, no limite, sob um mesmo céu, no final das contas, Amir e Hassan, cuja amizade os igualava a irmãos, eram, enfim, irmãos, de sangue. E, além disso, não satisfeito com essa conexão, o roteiro ainda faz com que o mesmo menino que violentou Hassam na infância tenha crescido para se tornar o talibã que compra seu filho e repete a história com o menino. Mais ainda, o roteiro – espelhando o livro – ainda colocará Amir e Assef (o menino que virou talibã) diante de situação esquematicamente semelhante à vivida entre eles na infância. Tudo isso aproxima O Caçador de Pipas mais de uma soap opera do que qualquer outro formato dramatúrgico.

Não se trata, entretanto, de um purismo culturalista nem de gênero. Não é que se fosse feito por um diretor iraniano “puro sangue” ou que se se afastasse do novelão o filme seria melhor. E nem mesmo se assumisse claramente uma versão metalingüística do melodrama ocidental. O que torna O Caçador de Pipas um filme inócuo é o despropósito mesmo de todas as suas operações estéticas. Tudo nessa obra mais a iguala a tudo mais que já se viu do que a diferencia, nada ali mostra alguma novidade na maneira de olhar.

O limite de tudo isso é uma operação estética que chamaria de “ponto de vista da pipa”. Trata-se de um efeito que o maior grau de recursos tecnológicos do cinema americano permite a Forster – afinal, seu filme só precisa parecer afegão, só precisa soar pobre, não precisa ser de fato. O “ponto de vista da pipa” é uma câmera que sobe aos céus acompanhando o vôo das mesmas. Lá de cima, do céu que tudo iguala, tudo é sempre puro êxtase inocente. Mesmo a competição entre os meninos – uma forma que se amplia os laços entre uns, destila falta de solidariedade entre outros – é pura doçura, apenas “coisa de meninos”. Daí os momentos em que as pipas estão na história serem uma espécie de “lado de fora” no filme. Quando elas voam, é um sinal de que os conflitos são menores que as relações e que os laços. Quando há pipas no céu, tudo está bem. Não à toa, a primeira constatação do menino já adulto na carta a seu amigo é que não há mais pipas no Afeganistão. E seu grande sonho é que elas retornem aos céus.

Para que, metáfora primária, eles possam voltar a ser crianças novamente. Para que a “inocência” retorne ao Afeganistão. Como filme político, O Caçador de Pipas tem a complexidade de uma anedota de salão. E como drama humano, a profundidade de uma planta baixa. Tudo que a trama consegue estabelecer é uma dicotomia entre aqueles que, adultos, mantêm sua índole infantil – Hassam e, depois de rever a si mesmo em uma viagem praticamente iniciática, Amir – e os que, crianças, já traziam a “maldade” de adultos. O Afeganistão mesmo é apresentado com essa dicotomia “era da inocência” (período pré-invasão soviética) x “era da maldade” (o talibã). Não se trata, então, de aproximar o filme das mentes juvenis. Não é um filme simplificado. Trata-se de um filme simplório.

Alexandre Werneck