4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS
Cristian Mungiu, 4 luni, 3 saptamani si 2 zile, Romênia, 2007

Talvez seja uma estratégia um tanto maliciosa encarar o filme mais pela repercussão e pelas premiações que tem em festivais do que por ele mesmo. Ao mesmo tempo, é meio inevitável observar um laço problemático que une um ao outro, ou que até cria uma determinação direta de um a partir do outro. Porque é uma constante de trabalho, tão verificável quanto os filmes de "olhar humano" sobre pessoas desamparadas, geralmente crianças, geralmente em períodos de guerra, abocanham oscars estrangeiros. Assim, é impressionante como filmes que modulam sua intriga de forma a afrontar um grande tema, construídos com uma estrutura formal suficientemente visível para não ser confundido com os filmes convencionais mas também suficientemente simplória para ser compreendida mesmo por pessoas com interesse reduzidíssimo por questões artísticas, costumam abocanhar fatias relativamente grandes das partilhas de prêmios em grandes festivais. Exemplo mais recente: 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, segundo longa-metragem do diretor romeno Cristian Mungiu, que vem de consquistar a Palma de Ouro em Cannes.

Inicialmente vemos a câmera nervosa que acompanha a situação, meio esbaforida, meio tateando pra fazer sentido em uma situação que ela pega já começada. Ecos aí dos irmãos Dardenne, de A Morte do Sr. Lazarescu, do também romeno Cristi Puiu. Mais que ecos, na verdade: a impressão de uma fórmula suficientemente fácil e reprodutível para se encaixar em quase qualquer esquema ficcional que se queira realista e despojado das habituais construções de roteiro. OK, estamos instalados num presente e há uma situação premente. Resta identificar qual, o que acontece, claro, rapidamente: num alojamento universitário para mulheres numa cidade da Romênia dos anos 80, uma mulher está grávida e prepara com sua amiga um plano para abortar. Plano intrincado, fora da lei, sujeito a uma série de mudanças de percurso e aparentemente regido por uma lei misteriosa.

Assim, o filme garante o interesse em seu começo pelo desbravamento desse mundo, feito de constrangimentos psicológicos e uma sensação de urgência garantida pela consecução das ações: conseguir dinheiro, cigarros, sabonete, falar com o namorado, reservar um quarto de hotel, encontrar um homem num carro. 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias se desenvolve, inicialmente, como a clínica observação de um processo. Se seguisse assim, ainda que não fosse um candidato a grande obra-prima de cinema, ao menos manteria seu respeito e um certo interesse pela austeridade da forma. No entanto, Cristian Mungiu prefere conferir cores mais fortes à trama, fazendo das situações de constrangimento um motor óbvio e desagradável: a cada seqüência, uma nova notícia, uma nova negociação, uma nova economia de surpresas que o filme opera sadicamente em sua relação com o espectador: a todo momento um novo saber que atravanca a situação e a impede de seguir adiante. Assim, um telefone toca sem que ninguém atenda, uma situação se estende e provoca ansiedade, a mudança nas regras do jogo obriga a ações vergonhosas, um corpo imóvel na cama pode significar o pior. Se os filmes-painel costumam operar segundo uma análise combinatória da merda que pode acontecer unindo tal a tal personagem, 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias opera como um videogame, por fases de humilhação, desrespeito e constrangimento, e sobrevivência a eles (mas, espertinho mais que humano, o filme não enfatiza em momento nenhum a grandeza de sobreviver à penúria, preferindo o sentido de miserabilismo que se instala do começo até o último plano, vergonhoso e previsível). Fase 1, merda 1; fase 2, merda 2, e assim por diante. Talvez as fases sejam em ordem invertida, como o título do filme. Pouco importa. Resta ao espectador apenas assistir o diretor jogar.

E o jogo é claro, com intenções claras. Basta ver uma câmera que reenquadra a cena para mostrar escandalosamente um feto jogado no chão entre toalhas ensangüentadas, uma imagem tremida e escura para acompanhar a personagem em sua descida ao inferno ou, talvez principalmente, os momentos dedicados às situações que se desenvolvem no extra-campo, em especial o sexo psicologicamente forçado que o aborteiro tem com as duas amigas. Se o extra-campo em geral é um lugar da discrição, a duração dos planos opera em sentido inverso, dando tempo de sobra para sugerir imagens mentais ao gosto do cliente. Que não se duvide, temos diante de nós um diretor que saliva avidamente pela desgraça de seus personagens, primo-irmão de González-Iñarrítu ou Todd Solondz.

Ainda que não se inscreva totalmente na estética do refém apontada anos atrás a partir de certos filmes e cineastas (Michael Haneke, Ulrich Seidl, Sérgio Bianchi e mais alguns que podemos aproximar do "cinema da sordidez"), uma série de aspectos apontados a respeito dessa relação de refém feita com o espectador se aplicam ao filme de Cristi Puiu. Mas, em especial, o fetichismo criado pela indigestão, essa idéia estúpida e no entanto disseminada de que, ao se consumir (porque a palavra é bem essa) uma sensação artística desagradável, tem-se acesso a uma dimensão de conscientização ou padecimento que a sensação artística agradável, harmoniosa ou evasiva, não fornece. Mas é preciso jamais confundir masoquismo mesquinho, de pequeno sabedor, com desalienação. E definitivamente o objetivo de 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias é mais escandalizar do que compreender.


Ruy Gardnier