Tentando entender a estética do refém


Alguns dias atrás, "O Estado de São Paulo" publicava um texto de Luís Zanin Oricchio sobre o filme coreano Endereço Desconhecido. Nesse texto, o crítico conclamava alguém a se debruçar mais sobre esse cinema recente de cineastas como Kim Ki-Duk, Michael Haneke ou Ulrich Seidl, diretores que (cito de cabeça) "não se preocupam com o prazer do espectador". Bem, há que se dizer que Oricchio delimitou pertinentemente e com inteligência o objeto de análise mas não classificou lá muito bem. Ora, questionar o prazer do espectador é coisa antiga, data historicamente do momento em que a classe artística já não conseguia mais gostar da filistinice da alta burguesia, isso em meados do século XIX. Logo, antes do cinema ser cinema. Agora, o chamado foi perfeito (agradecimentos) e tratamos de dar algum alento e contribuição a essa pesquisa.

A começar por um nome. A questão não é a do prazer, mas da dor. E chamar de cineasta sádico é meramente inconclusivo, uma vez que todo artista digno desse nome deve ter um certo grau de sadismo e curiosidade, mesmo um Kiarostami ou um Coutinho, mestres da discrição. O que parece novo nesse gênero de cinema – ou ao menos nos filmes desses diretores – é que eles colocam o espectador como um refém das imagens. Para atingirem os efeitos desejados, é necessário que esses diretores realizem uma estética do refém, ou seja, uma experiência de violência (psicológica e física), causar a sensação no espectador de que o filme pode (e não tem por que não) machucá-lo. A cena clássica, a que resume de forma mais completa a estratégia desse cinema encontra-se em Código Desconhecido, de Michael Haneke: sem sabermos se se trata de uma filmagem ou da vida real, Juliette Binoche aproxima-se timidamente enquanto uma voz em off (presumivelmente do diretor) diz "eu vou te matar!", evocando um snuff movie.

Muitos filmes poderiam se inserir nessa estética, totalmente ou em parte: os filmes de Michael Haneke e Dias de Cão, de Ulrich Seidl, sim, mas também e de certa maneira os de Kim Ki-Duk, Todd Solondz, Sérgio Bianchi e Neil LaBute, e uma certa maneira geral que há no novo cinema americano de se aproximar de seus personagens. O que desencadeia essa fórmula é um profundo desprezo em relação aos personagens, e a estratégia para com o espectador de jamais deixar-lhe uma saída, algum personagem com quem se identificar, pois todos aqueles que estão diante da tela são ou monstros, ou impotentes, ou têm problemas mentais. Nesse huis-clos, a única coisa que se partilha são as intenções de violência, a necessidade de transmitir e contaminar uma infinidade de impressões e ressentimentos.

Fosse esse o único atrativo desse cinema, isso passaria ao largo. A pergunta que vem à tona é a seguinte: por que há por parte de tantos um sabor profundo em assistir a esse cinema, por que esses filmes ganham prêmios em grandes festivais, que tipo de relação têm esses filmes com o universo que eles retratam e o que eles de fato trazem a quem os assiste? Há muitas maneiras de responder a todas essas perguntas, mas eu adiantaria acima de tudo uma: a estética do refém não passa de uma exacerbação de um certo ideal de arte burguesa, apoiada no conceito kantiano de sublime e de uma certa idéia de que o sentimento artístico deve, se possível, atingir níveis físicos, provocar dor e prazeres físicos no espectador. Em suma: criar fortes efeitos, pouco importando a natureza deles.

Quão inicial e precária a definição pareça ser, ela já nos permite entender o uso de tantas coisas em comum realizadas por todos esses cineastas para criar sentimentos de indigestão no espectador: sexo explícito, deformações físicas, autoflagelação, violência indiscriminada e acima de tudo inútil, nudez grotesca e constante, perversões sexuais, secreções e excreções, entre outros, com uma posição cínica e/ou cômica diante de tudo isso. Que não haja dúvidas: por qualquer viela que se penetre nessas obras, todas essas viagens por todos esses mundos repletos de seres humanos desviantes só irão nos remeter ao mais pleno chamado à ordem. É preciso considerar-se a si mesmo normal, inatingível por tudo que está na tela, para que esse efeito se produza.

Há um lado cômico quando se vê um filme como A Professora de Piano ou Dias de Cão. Porque não há nada mais engraçado que a pornografia, item desde sempre detestado pela boa fruição burguesa do espetáculo, venha agora servir justamente a ela para provocar efeitos no espectador. Claro, a relação é diferente: um filme pornográfico é aquele que cria no espectador uma ilusão sensual, geralmente mensurável por um fim em si (quase sempre a excitação e a masturbação). Eles não têm (ao menos na acepção geral) nenhum outro efeito estético que transmitir este de prazer puro e simples. Quando em filmes "sérios", o estatuto muda: o espectador sente-se chocado, há uma espécie de contrato tácito entre realizador e espectador que é quebrado, e daí produz-se uma sensação "forte" de interdito, mas humoristicamente o significado das imagens muda, passando a comportar um segundo olhar, não mais de prazer, mas de repugnância, de excesso dos sentidos. E o cineasta é transformado no artista que vai até o limite permitido, que o ultrapassa e que finalmente revela imagens recônditas, "proibidas".

Ao contrário da pornografia, que vende um sonho de felicidade, o cinema da estética do refém se apodera das imagens de sexo (e de uma forma geral tudo que deriva das produções "escondidas" do corpo) para tirar dele qualquer construção de mundo. A Professora de Piano poderia deixar de ser um filme ridículo simplesmente caso Haneke em algum momento considerasse bastante significativa a "perversão" de sua personagem e deixasse isso claro ao espectador. Mas não: cassa-se nesses filmes qualquer possibilidade de construção de mundo, e se cinema é a esquisita sensação de identidade que se tem quando se vê corpos que poderiam ser o seu diante de uma tela, cassa-se o cinema.

Reside nesses filmes um ideal: a imagem de que a verdadeira arte deve desnudar uma realidade profunda, escondida da hipócrita vida social, uma realidade pútrida, fétida, nojenta. E o cineasta, por viajar por mundos tão inóspitos, logo é alçado à categoria de iconoclasta. Mentira: é moralista e nada mais. Entre William Wyler e Michael Haneke, a diferença não é de natureza, mas de tom. Até o Bergman mais físico, o do final da década de 60 (Vergonha, A Paixão de Ana), não está muito longe.

Por fim, com propósitos de início de uma discussão (é a idéia do texto desde o princípio), alguns postulados gerais – precários – sobre esse cinema:

1. Jamais havendo herói positivo ou atitudes positivas da parte dos personagens – mesmo que porventura alguém possa se identificar em algum grau a algum dos personagens –, todos os efeitos produzidos são negativos, ou seja, revogam certas posibilidades de mundo.

2. O efeito estético desses filmes não é purgar ou purificar o espectador daquilo que ele vê. É antes repartir, dilatar e partilhar o ressentimento, fazer de todo espectador um impotente diante de todas as situações que presencia.

3. Do ponto de vista político ou social, são filmes de uma inutilidade política brutal. A estética do refém produz sempre uma lacuna entre diretor e personagens – que naturalmente transforma a relação personagens-espectadores – que deixa o espectador numa posição muito fácil, qual seja, a de rir daquilo que vê, mas acima de tudo o de jamais se identificar. Nunca vi ninguém saindo de Código Desconhecido ou Cronicamente Inviável que tenha se reconhecido dentro do filme. Serve apenas para reconhecer os outros e rir deles. A cada um o seu ressentimento.

4. Pior de tudo, são filmes que apenas reproduzem sem crítica um estado de violência que existe em sociedade. Assim, não resta dúvidas. Ao se deixarem seduzir pela violência e ao partilhá-la com o espectador, esses diretores fazem mais apologia do que purgação.

5. O sexo sempre aparece como a principal frustração. Santa esterilidade!

Ruy Gardnier