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                          perguntas, dúvidas? 
                          Mande e-mail para info@contracampo.com.br 
                           
                          Domingo, 4 de novembro de 2007 
                           
                           Passada a correria 
                          da cobertura em tempo real, faltando ainda algumas críticas 
                          para entrar no ar, elaborando em cima dos mimos ao leitor 
                          para a próxima edição (entrevistas 
                          com Nicolas Klotz e José Luis Guerín, 
                          trechos de áudio de Jia Zhang-Ke falando de seus 
                          filmes), a repescagem se vive um pouco como os minutos 
                          de acréscimo de um jogo ganho, a chance de rever 
                          alguns filmes, rever os amigos, matar as saudades das 
                          salas de cinema e do doce périplo de subir e 
                          descer a Augusta ou passear pela Paulista, de vez ou 
                          outra fazer uma locomoção maior rumo às 
                          salas distantes da parte central (a maravilhosa nova 
                          sala da Cinemateca, na Vila Mariana, ou a antiga cinemateca 
                          que era UOL e agora é IG, em Pinheiros). Mas 
                          o fim de uma mostra é também a oportunidade 
                          de um balanço do evento, de suas retrospectivas, 
                          de sua organização, de sua seleção, 
                          do que tantos filmes juntos dão ao pensamento. 
                          No que diz respeito aos filmes contemporâneos, 
                          a superioridade cantada em prévia ao Festival 
                          do Rio não se fez valer. Ainda que a Mostra tenha 
                          permitido entrar em contato com obras estonteantes que 
                          não estiveram no Festival (A Viagem do Balão 
                          Vermelho, En la ciudad de Sylvia, Onde 
                          os Covardes Não Têm Vez, Redacted), 
                          parte disso se deve à vantagem de um mês 
                          que a Mostra tem em relação ao Festival 
                           sobretudo para exibir os filmes estreados em 
                          Veneza  e parte se deve a filmes que estão 
                          comprados e vão estrear. E, se lembrarmos que 
                          a Mostra não trouxe dois filmes considerados 
                          fundamentais para a revista exibidos no Rio, Mulher 
                          na Praia de Hong Sang-Soo e Floresta dos Lamentos 
                          de Naomi Kawase, a equivalência das seleções 
                          contemporâneas se faz bem mais presente. Nas retrospectivas, 
                          onde São Paulo tinha toda a chance de dar goleada 
                          no Rio, na hora do vamos ver os filmes de Jia Zhang-Ke 
                          foram exibidos em digital de baixíssima qualidade 
                          (isso era tão costumeiro ouvir nas filas e salas 
                          quanto a reclamação sobre os intermináveis 
                          atrasos das sessões) e os filmes de Jean Paul 
                          Civeyrac não se revelaram tão fortes quanto 
                          imaginávamos, e a descoberta de um novo e sólido 
                          autor não aconteceu. Não que Civeyrac 
                          seja péssimo ou algo do tipo: há boas 
                          idéias, há um charme desajeitado nesse 
                          elogio do amor excessivo, autodestrutivo e desembestado 
                          de seus personagens, mas a forma estabelece sempre um 
                          terreno bastante confortável para a ficção 
                          se desenvolver, na área bastante conhecida e 
                          codificada do cinema de autor com bom gosto e grandes 
                          sentimentos (a morte, mamória, a infância). 
                          Os que não vi  e alguns dos que falaram 
                          que eram os melhores, Através da Floresta, 
                          Fantasmas  pretendo completar no futuro, 
                          mas ao menos na Mostra não causou comoções 
                          maiores em ninguém. Os destaques mesmo vão 
                          para Tabu, em sessão com excelente acompanhamento 
                          ao vivo no CineSesc, e Lost Lost Lost  
                          Diaries, Notes & Sketches, de Jonas Mekas, 
                          uma dessas obras que demandam uma outra relação 
                          com a imagem cinematográfica e com o ato de ver 
                          filmes projetados numa sala escura. No quesito organização, 
                          como já dissemos, a Mostra involuiu alguns estágios 
                          na precaríssima pontualidade das sessões, 
                          e manteve seu padrão de trocar sessões 
                          na última hora. Mas, em comparação 
                          com o Festival do Rio, a tentativa de acomodar o máximo 
                          de espectadores interessados nas sessões lotadas, 
                          ainda que tivesse rendido uma ou duas confusões 
                          (em especial uma de A Questão Humana ao 
                          meio-dia de uma terça-feira com direito a uma 
                          dúzia de senhoras histéricas), foi algo 
                          louvável e mostrou uma real preocupação 
                          de cinéfilo dos gerentes de sala e organizadores 
                          para com o público. Quanto aos convidados internacionais, 
                          Civeyrac esteve por aqui, Klotz e Guerín também, 
                          Jia Zhang-Ke teve uma passagem relâmpago e portanto 
                          nós, "sites" (para a assessoria essa 
                          é a nossa designiação), não 
                          tivemos acesso a ele. Por conta de uma greve na Air 
                          France, Pedro Costa não pôde estar presente 
                          na Mostra como jurado  o que empata com a ausência 
                          de Chantal Akerman no júri do Festival do Rio. 
                          E apenas para informar ao leitor a situação, 
                          já que essa coisa de ficar reclamando mais uma 
                          vez da pouca honra concedida a nós pela Mostra 
                          não nos agrada muito, novamente tivemos direito 
                          a apenas duas credenciais, o que de certa forma prejudicou 
                          o andamento do diário porque uma de nossas editoras, 
                          a Tatiana, não pôde programar seus dias 
                          com antecedência e acabou tendo que pagar por 
                          filme e entrar no cansativo esquema de correr às 
                          bilheterias ainda cedo no dia, e mesmo assim perdendo 
                          certas sessões por falta de ingressos. Se é 
                          lógica da Mostra, tudo bem. Se é birra, 
                          direito deles. Agora, só não dá 
                          para aceitar que o curador de uma mostra que dá 
                          duas credenciais a revistas eletrônicas sérias 
                          e ensaísticas ao passo que concede várias 
                          credenciais a veículos informativos ou de fofoca 
                          venha falar em "crise da crítica e da cinefilia" 
                          sem que ele coloque o processo seletivo de credenciais 
                          de sua própria mostra como uma das evidências 
                          maiores de uma "crise". Que não é 
                          da cinefilia nem da crítica, mas de uma geração 
                          que foi qualitativamente ultrapassada por assentar-se 
                          muito confortavelmente em seus papéis de poder 
                          (geralmente legitimado pelo renome do veículo 
                          mais do que pela coerência e perspicácia 
                          da escrita) e fazer da crítica o objeto mesquinho 
                          de diatribes personalistas de prima donna. Mas, 
                          como já diz o bom senso, trust the tale, not 
                          the teller, e confiemos na obra mais que no autor. 
                          Porque o cinema é muito, muito maior que isso. 
                          E, mesmo com tantas questões ainda a resolver, 
                          os filmes exibidos fazem a perfeita confirmação 
                          disso.  
                           
                          Quinta-feira, 
                          1 de novembro de 2007 
                           
                           Não foram poucas 
                          as discussões ontem sobre Redacted, de Brian 
                          De Palma. Fosse saindo da sessão do filme no Cinesesc 
                          e caminhando pela Augusta ao lado de Rodrigo de Oliveira, 
                          fosse sentando no bar à noite, na companhia de Eduardo 
                          Valente, Gilberto Silva e, novamente, Rodrigo. Muito 
                          pensei durante o filme e nas conversas posteriores, 
                          mas não possuo ainda certezas sobre ele. O trabalho 
                          com diferentes formatos audiovisuais que De Palma realiza 
                          é sem dúvida um mérito incontestável. Temos em Redacted 
                          um episódio de estupro e morte na Guerra do Iraque narrado 
                          através de registros de imagem diferenciados: um documentário 
                          humanista, um diário filmado, depoimentos através de 
                          webcams (disponibilizados em sites pessoais), 
                          noticiários locais, câmeras de vigilância nas bases 
                          americanas, vídeos terroristas realizados por milícias 
                          e colocados na internet, live chat. O filme tematiza, 
                          de fato, esta inflação de imagens-narrativas suscitada 
                          por um evento político marcante. Se o 11 de Setembro 
                          caracterizou-se pelo imponderável de uma imagem “cinematográfica” 
                          tornando-se realidade e sendo então repetida à exaustão, 
                          os eventos dele decorrentes revelaram-se bastante profícuos 
                          em termos de representações. Desde a fotografia feita 
                          com um celular de Saddam Hussein sendo retirado do seu 
                          esconderijo, temos a certeza de que as novas tecnologias 
                          da imagem estão disseminadas por todos os cantos, presentes 
                          em todo e qualquer tipo de acontecimento e suscitando 
                          a proliferação de documentos audiovisuais de proveniências 
                          diversas. O que De Palma faz é “compendiá-las” e retomá-las 
                          em sua dimensão de dispositivo, para narrar a boa e 
                          velha história de guerra que conhecemos, inclusive com 
                          seus personagens típicos. Minha pergunta é: até que 
                          ponto pode-se utilizar um dispositivo de forma maneirista, 
                          a despeito de sua carga discursiva e ideológica? Para 
                          mim não resta dúvidas de que todos os dispositivos-forma 
                          empregados por De Palma em Redacted respondem 
                          intrinsecamente a uma vontade de verdade do registro, 
                          de autenticidade do que é mostrado. Ora, De Palma claramente 
                          deseja realizar com seu filme uma narrativa de guerra 
                          deveras tradicional, uma ficção nos moldes hollywoodianos. 
                          Não seria a combinação entre este desejo de narrar e 
                          a multiplicação de formas narrativas audiovisuais que 
                          o filme propõe, uma combinação fatal? Ou, ao contrário, 
                          a revelação de que nossas vontades de ficção permanecem 
                          as mesmas, mesmo que sua forma de produção tenha mudado? 
                          Corte: Senhores do Crime, de David Cronenberg. 
                          Espécie de derivação de Marcas da Violência, 
                          o último filme de Cronenberg emprega a violência mais 
                          como signo visual a ser retrabalhado (seca, dura, física, 
                          pesada, sombria), do que como efeito dramático. No franco 
                          diálogo com o gênero, Senhores do Crime busca 
                          seus desvios de uma pura narrativa da ação, para mergulhar 
                          nos detalhes mórbidos da violência. Curiosamente, senti 
                          ter ali mais verdades do mundo (sem considerar isto 
                          um mérito a priori, bem entendido) do que em Redacted. 
                          As nuances indefiníveis entre personagem do bem e personagem 
                          do mal e entre ato criminoso e ato justo nos colocam 
                          a um passo de uma violência repugnante quando aplicada 
                          às vítimas erradas, mas estranhamente aceitável como 
                          método de garantir o sono dos justos. Em tese, ao menos. 
                          Quando vista graficamente, como Cronenberg nos apresenta, 
                          o impacto do vermelho do sangue nos coloca contra a 
                          parede e nos interroga. Sem dúvida, dois filmes que 
                          ainda dão muito pano pra manga. (TM) 
                           
                          Quarta-feira, 31 de outubro de 2007 
                            
                          Christophe Honoré em questão? Aparentemente 
                          a Mostra é uma ocasião apropriada para 
                          isso, uma vez que até aqui seus filmes não 
                          tinham circulados por telas brasileiras. Até 
                          então, só tinha assistido a sua versão 
                          para Ma mère, romance póstumo (na 
                          verdade, inacabado) de Georges Bataille que seria uma 
                          continuação do decisivo Madame Edwarda. 
                          A questão principal com a versão de Honoré 
                          para Bataille é que Bataille é infilmável 
                          por qualquer um que não seja um verdadeiro místico, 
                          que acredite verdadeiramente que filmando o filmável 
                          pode se chegar ao infilmável. Kiarostami, Lynch, 
                          Tarkovski poderiam tranqüilamente se arriscar nesse 
                          terreno, mas a questão para Honoré é 
                          acima de tudo narrativa, uma certa celebração 
                          da vida a partir da dor, ou da vida com a dor. Acaba 
                          que Ma mère não é exatamente 
                          ruim, simplesmente um filme que se observa, um pouco 
                          pelo fetiche, um pouco pelas interpretações 
                          de Isabelle Huppert e Louis Garrel, e não mais. 
                          Com Canções de Amor e Em Paris, 
                          nasce a chance de um olhar mais detido ao cinema de 
                          Honoré. Fala-se muito de seus empréstimos 
                          (ou citações, ou elogios) à nouvelle 
                          vague  em Canções, ecos 
                          de Uma Mulher É uma Mulher, As Duas 
                          Faces da Felicidade, Jacques Démy, Jean-Piere 
                          Léaud; Em Paris, um desejo de filmar a 
                          cidade pela cidade, uma certa graciosidade veloz de 
                          um Zazie no Metrô, por exemplo , 
                          de um apego às situações vividas 
                          entre luto, desespero, depressão e uma certa 
                          alegria de viver de filme musical, uma graciosidade 
                          gratuita que por sua própria liberdade transborda 
                          na tela. Isso aparece nos dois filmes que a Mostra exibe 
                          nessa 31ª edição. Mas falar de nouvelle 
                          vague e do gosto acridoce particular dos filmes 
                          de Honoré é revelar apenas uma faceta 
                          de seu cinema, e mesmo apenas uma faceta da adesão 
                          à história do cinema francês. Porque 
                          se ele toma emprestado muito do desejo de ser charmoso 
                          e de uma certa vontade de filmar a vivacidade do mundo, 
                          por outro lado, existe uma espécie de elogio 
                          fácil da vida em seus filmes que rima um pouco 
                          com uma certa abstinência da mise-en-scène 
                          em criar um tipo particular de olhar, uma generosidade 
                          já dada de antemão e não construída 
                          pelas situações vividas, que rima em parte 
                          com aquilo que Daney falou de Lelouch e que Cássio 
                          Starling Carlos citou recentemente em artigo da Folha 
                          polemicando com Leon Cakoff: um certo elogio publicitário 
                          da vida. É claro que em seus momentos melhores 
                           e Em Paris é um bocado mais interessante 
                          que seus outros filmes  a menção 
                          é improcedente, e tampouco se trata de atribuir 
                          um fardo tão pesado e deselegante quanto a comparação 
                          com Lelouch, mas me parece haver nos filmes de Honoré, 
                          ao menos os três vistos até hoje, um certo 
                          ar açucarado voluntariamente em demasia que quer-se 
                          fazer traduzir rápido demais por charme e graça, 
                          mas que em contrapartida também representam o 
                          limite desse cinema, um tanto simpático demais, 
                          um tanto auto-indulgente, sem no entanto considerar 
                          como menor essa minoridade (porque há sempre 
                          o peso da vida, etc.). Talvez o final de Aprile, 
                          de Nanni Moretti, lhe valha uma pequena lição. 
                          (RG) 
                           
                           Terça-feira, 
                          30 de outubro de 2007 
                           (II) 
                            
                          Após uma inspiradora entrevista-conversa com Nicolas 
                          Klotz e sua parceira Elizabeth Perceval (a ser publicada 
                          em nossa próxima edição), na qual cinema e mundo pareciam 
                          uma coisa só, o que mais esperar da Mostra? E eis que 
                          ontem me vi frente a frente com o filme de José Luis 
                          Guerín, fortemente recomendado pelos amigos contracampistas 
                          Filipe Furtado e Rodrigo de Oliveira. En la ciudad 
                          de Sylvia é uma autêntica celebração ao “estar no 
                          mundo”. Guerín filma rostos, gestos e movimentos de 
                          forma a nos inserir como observadores no espaço em que 
                          o filme se passa. O som ambiente, trabalhado magistralmente 
                          para criar uma ambiência completa, reforça e amplia 
                          a sensação de passagem, de estar provisório. Embora 
                          calcado no olhar de um personagem, que dedica-se 
                          a perscrutar atenciosamente seu entorno, o filme não 
                          trabalha o registro exclusivamente como criação de um 
                          ponto de vista. Os enquadramentos são precisos em seus 
                          recortes, compondo diferentes quadros a partir de cenas 
                          super-populadas ou de espaços complexos. Nestes quadros, 
                          a escolha do foco simula a focalização da atenção humana 
                          e os diferentes eixos das tomadas fracionam o espaço 
                          em uma série de fatias isoladas, como diferentes pinturas 
                          possíveis a partir de um mesmo cenário. Pinturas impressionistas, 
                          sobre pessoas num determinado instante, num determinado 
                          canto da cidade. A circulação constante em torno do 
                          personagem principal, obcecado com as fisionomias femininas, 
                          que ele interroga de um ponto fixo no qual ele se instala 
                          – na esperança de encontrar um rosto do passado –, faz 
                          surgirem fantasmas, imagens incompletas e temporárias. 
                          Preocupado mais em construir um sentimento de precariedade 
                          do que de síntese, Guerín cria uma belíssima sinfonia 
                          urbana. Mas de uma urbis modesta, Strasbourg, e a partir 
                          de seus habitantes mais que comuns. Que o cinema se 
                          alimenta do mundo para nos devolvê-lo em imagens, nós 
                          já sabíamos; mas que ele poderia se confundir com o 
                          mundo em situações tão corriqueiras e banais quanto 
                          encantadoras, pareceu-me ali 
                          dentro da sala uma grande descoberta. Guerín filma 
                          sobretudo pessoas anônimas em espaços públicos 
                          e, embora em diversos momentos (como os planos que envolvem 
                          o ônibus elétrico), ele crie eventos puramente cinematográficos, 
                          no que tange a efeitos da imagem e do quadro, na maior 
                          parte do tempo ele parece estar filmando o nada e o 
                          tudo ao mesmo tempo. Em suma, o estar cotidiano de todos 
                          nós, para o qual não há sentidos possíveis. De forma 
                          atravessada, lembro-me agora de A Curva, de Salomão 
                          Santana, visto no último Festival de Cinema Universitário, 
                          que evoca sentimentos afins. Em ambos, não há tentativa 
                          de extrair poesia deste “nada” – como em Suíte Havana, 
                          de Fernando Pérez, por exemplo –, mas apenas o desejo 
                          de conferir mistério a ele. (TM)  
                           
                          Terça-feira, 30 de outubro de 2007 
                           
                          (I) 
                            
                          (Esse diário era para ter entrado no ar quatro dias 
                          atrás, mas por empecilhos técnicos só pôde entrar hoje. 
                          O interessante é que outras pessoas da revista já viram 
                          o filme Sukiyaki Western Django, que aqui detonarei, e gostaram, portanto meu ponto 
                          de vista provavelmente terá, em breve, uma crítica 
                          que faça contraponto. Continuo bem impaciente 
                          com a brincadeira adolescente do filme e avesso ao tipo 
                          de comportamento espectatorial que o acompanhou na sessão em que estive – HSBC 
                          Belas Artes 2, sexta-feira 
                          à noite.) Não chego a ser um fã de Takashi 
                          Miike, mas sempre espero dele 
                          alguma coisa no mínimo dos mínimos original e visualmente 
                          instigante. Embora Sukiyaki Western Django não fosse alvo de muita expectativa (faz tempo 
                          que um filme de Miike não 
                          chega por aqui e, sinceramente, não foi uma falta das 
                          mais sentidas), um gosto de decepção pairou no ar. O 
                          prólogo do filme é até divertidinho, 
                          tem Tarantino fazendo participação especial, tem cenário de estúdio 
                          muito bem arquitetado, tem uma decupagem 
                          pastiche de western spaghetti... 
                          tem um bocado de aspectos divertidos e interessantes. 
                          A piada, contudo, podia ter terminado ali. O resto de 
                          Sukiyaki Western Django é um amontoado 
                          de clichês de um cinema que usa as hipérboles de violência 
                          e os jogos de saturação e de deslocamentos (no caso, 
                          aqui, o western é ambientado nos cenários e mitos do Japão e hibridizado aos filmes de yakuza 
                          e de samurai) dos códigos de 
                          gênero como novas convenções de espetáculo. A galera 
                          ri aos montes, aplaude, mas a anedota para mim dura 
                          pouco, meu entusiasmo acabou, como já disse, no prólogo. 
                          O lúdico e a extravagância da representação não chegam 
                          aos pés de Rápida 
                          e Mortal do Sam Raimi, 
                          por exemplo (outro filme onde o faroeste também é uma “terra 
                          dos mortos”). Os últimos quinze minutos, para não dizer 
                          que me entediei com o filme por completo, foram quinze 
                          minutos de ação intrigantes pela inventividade da montagem 
                          (sobretudo da pista sonora). Mas nem como brincadeira 
                          carinhosa com Corbucci e Leone 
                          o filme convence. E se lembrarmos de todo o western maneirista feito de lá para cá, a coisa perde ainda 
                          mais sentido. Acredito na autenticidade das refrências 
                          cinéfilas de Miike, mas mesmo assim acho que 
                          esse filme não passa de um tipo de espetáculo 
                          pós-Tarantino cada vez mais 
                          bobo, ótimo para ser exibido no final das maratonas 
                          e alimentar não a cinefilia, mas a cinefolia. (LCOJr)  
                           
                          Segunda-feira, 29 de outubro de 2007 
                           
                           
                          Como sobrevivem ao tempo as obras-primas? Como confrontamos 
                          as obras-primas do passado com aqueles filmes que elegemos 
                          como as obras-primas de hoje? Como se transforma o estatuto 
                          de um filme, quase sempre multifacetado e controverso 
                          quando de sua estréia, comportando senões, ressalvas, 
                          desbanques, a ponto de fincar pé definitivamente na 
                          História do cinema como um dos grandes marcos da arte? 
                          Dizemos isso porque o CineSesc presenciou ontem a um 
                          desses momentos em que uma dessas grandes obras definidoras 
                          do passado – Tabu, de F. W. Murnau – passou logo 
                          depois de I'm Not There, filme de-agora-agora 
                          de Todd Haynes, que este mesmo diário coloca como ápice 
                          cinematgráfico do ano. Muito pouco em comum, naturalmente, 
                          entre esses dois filmes: um fala de um destino impiedoso, 
                          o confronto com a tradição e a conseqüente derrota trágica, 
                          a limitação das ações, dos saberes, o elogio dos sentimentos 
                          autênticos e primitivos contra a avidez do planejamento 
                          e da má-fé. Outro empenha-se em mostrar o sentimento 
                          autêntico como um gesto de resistência, autodestrutivo 
                          mas definitivamente poderoso, um libelo contra o mundo 
                          desencantado dos clichês, das respostas prontas, de 
                          uma política de identidades que gosta mais de encerrar 
                          significados do que de provocá-los pelo choque criativo. 
                          Não se trata, obviamente, de colocar um contra o outro 
                          – ambos sairiam perdendo. O importante é acima de tudo 
                          o trabalho sobre o material artístico tendo como finalidade 
                          a expressão, e atentar para os diferentes momentos da 
                          História do cinema em que surgem essas obras. Tabu 
                          nos remete a um mundo em que havia um pacto de crença 
                          na imagem: crença nos sentimentos puros, crença no poder 
                          de conotação da arte, no trabalho de inserção de código 
                          figurado através de gestos, luz, montagem. Essa crença 
                          permite, por exemplo, a fantástica seqüência de montagem 
                          em que o herói planeja quitar suas dívidas com uma enorme 
                          pérola. Essa crença também auxilia a transformar a aparição 
                          do patriarca da tribo, primeiro como fantasia e depis 
                          como carne e osso, em alguns dos planos mais assustadores 
                          do cinema. Essa crença, dos anos 60 até os dias de hoje, 
                          só diminui. Cabe aos cineastas, a cada geração, trabalhar 
                          com novos níveis de verossimilhança, de naturalismo, 
                          de jogar com o código tentando ir além da simples mímese 
                          naturalista mas negociando com o tipo de expectativa 
                          de um determinado público. I'm Not There cria 
                          seu mundo conotativo pelo tom operístico, pela inserção 
                          do glamour e pelo jogo dos tempos distintos com personagens 
                          distintos, pelos efeitos rítimicos de montagem que, 
                          pela velocidade e pelo poder evocativo de certos cortes 
                          que remetem a Vertov, a Eisenstein, a Godard. Mas o 
                          filme só o consegue fazê-lo porque ele reconstrói uma 
                          realidade a aderir, uma crença wildiana-baudelairiana-nietzschiana 
                          na máscara como princípio revelador, não porque ele 
                          tem um traço de filiação automático, direto, uma via 
                          límpida de acesso com aquilo que ele filma. Haynes, 
                          em todo seu cinema, diz que essa via precisa ser construída, 
                          trabalhada, conceitualizada, disponibilizada ao espectador 
                          como um jogo de decifração. De certa forma, todos os 
                          melhores realizadores contemporâneos participam dessa 
                          idéia de um real difícil, ou complexo, que se precisa 
                          escavar (Eastwood), fantasiar (Shyamalan), retemporalizar 
                          (Kiarostami), perspectivar historicamente (Oliveira), 
                          modular ritmicamente (Hou Hsiao-hsien), jogar (Weerasethakul, 
                          Haynes), olhar no microscópio (Hong Sang-Soo). De certa 
                          forma, essa construção de um real complexo por parte 
                          dos melhores realizadores contemporâneos é talvez a 
                          maior evidência da impossibilidade do classicismo no 
                          cinema contemporâneo. (RG) 
                           
                           Domingo, 
                          28 de outubro de 2007 
                           
                          Depois 
                          de uma maratona São Paulo-Rio-São Paulo 
                          devida a shows e compromissos de trabalho  digredindo, 
                          é impressionante como todos os principais eventos 
                          internacionals do ano ocupam o bimestre setembro/outubro, 
                          muitas vezes com diversos eventos concomitantes, ao 
                          passo que o resto do ano funciona sempre em marcha baixa, 
                          sem muito de interessante acontecendo  voltamos 
                          à mostra no corre-corre, deixa malas, sono em 
                          ônibus, essas coisas. O cansaço se instala, 
                          mas faz parte do percurso. Solução? Dorflex, 
                          água, cafeína, o que se preferir. Se concentrar 
                          nos filmes, com certeza. Deserto Feliz, primeiro 
                          do dia, revela uma curiosidade grande mais como projeto 
                          do que obra. Co-produção entre Brasil 
                          e Alemanha, o filme parece ter inscrito em seu modo 
                          de constituição uma certa interface internacionalizante, 
                          cinco ou seis tiques do cinema de autor contemporâneo, 
                          e uma emulação por vezes muito forte de 
                          alguns filmes brasileiros recentes que têm relação 
                          forte com o exterior: O Céu de Suely, 
                          Cinema, Aspirinas e Urubus, Sonhos de Peixe. 
                          Imagem com uma plasticidade frontal, jump cuts, elipses 
                          fortes, personagem errante tanto pelo espaço 
                          geográfico quanto pelo sentimental, registro 
                          estetizante-objetivo. Tem lá sua graça 
                          quando não se deixa levar pela forçação 
                          de barra no miserabilismo, como o vergonhoso movimento 
                          de câmera que revelando que um cafofo infecto 
                          recebe em sua porta o nome "suíte prezidencial" 
                          (sic), criando entre um espaço sujo e a vida 
                          pouco honrosa de seus personagens determinações 
                          um tanto fáceis e, no fundo, bem babacas. Formalmente 
                          o filme se resolve meio mal e, apesar de usar e abusar 
                          de uma plasticidade "moderna", a beleza dos 
                          planos não apresenta muita organicidade em relação 
                          ao que é apresentado  trocando em miúdos, 
                          a beleza aparece um tanto gratuitamente  e a estrutura 
                          é dispersa, criando frouxidão ali onde 
                          esperaríamos síntese de diversos. Algum 
                          comentário social interessante, alguma graça 
                          nas situações (em especial pela atuação 
                          de João Miguel e da atriz principal, Nash Laila), 
                          não mais. Em seguida, meu primeiro filme de Jean-Paul 
                          Civeyrac (na semana estão agendados alguns outros), 
                          O Doce Amor dos Homens. E ainda que algumas das 
                          cenas sejam bastante interessantes, sobretudo as que 
                          envolvem relações sexuais, o filme funciona 
                          numa chave auto-complacente ultra-romântica meio 
                          desgastada, e o despojamento de certos planos rima muito 
                          mal com a previsibilidade da história e o clima 
                          de mini-série televisiva da mise-en-scène 
                          (montagem sem criatividade, trilha sonora muitos tons 
                          acima). Esperemos coisas melhores nos outros filmes. 
                          Depois, Jovem Yakuza, sobre o qual farei texto, 
                          belo filme sobre o cotidiano dos yakuza que rima em 
                          várias formas distintas com alguns objetos audiovisuais 
                          mais ou menos recentes, A Família Soprano, 
                          Big Brother, esse lance de fazer um dispositivo 
                          ficcional esgarçar uma área do cinema 
                          já bastante codificada. Os reality shows 
                          fazem pela duração, Sopranos faz 
                          pela serialização, o filme de Jean-Pierre 
                          Limosin faz pelo registro entre ficção 
                          e documentário. Ao fim do dia, já um tanto 
                          desgastado, vejo Senhores do Crime, título 
                          absolutamente estúpido para o original Eastern 
                          Promises. O diretor é David Cronenberg. E dele 
                          espera-se sempre algo genial, avassalador. Não 
                          é o que temos aqui: temos um realizador contido, 
                          claramente aderindo a procedimentos e situações 
                          utilizados em A History of Violence  tipificação 
                          no trabalho com os atores, intriga de auto-destruição 
                          dentro do seio familiar, vida dupla  para fazer, 
                          como sempre, a perturbação surgir a partir 
                          do familiar (no sentido de "já conhecido", 
                          mas aqui também no sentido mais próprio). 
                          Só que a narrativa é muito pesada, as 
                          deixas aparecem na trama meio como pisadas de elefante, 
                          e se alguns atores estão geniais (Viggo Mortensen, 
                          Jerzy Skolimowsky), alguns me pareceram deixar muito 
                          a desejar, em especial Naomi Watts, genérica 
                          demais para criar uma instalação mais 
                          pronunciada na construção daquele mundo 
                          (pensar em Maria Bello seria até covardia). Mas 
                          essas, é preciso confessar, são impressões 
                          de alguém que viu o filme cansado e que reverá 
                          o filme ainda nessa mostra para tirar a prova. Reconversão 
                          ou ratificação? Leia aqui nos próximos 
                          dias. (RG) 
                           
                          Sexta-feira, 
                          26 de outubro de 2007 
                           
                          Que 
                          melhor metáfora dentro da história do 
                          cinema para exprimir a arte da leveza e da fluidez que 
                          existe no cinema de Hou Hsiao-hsien que o balão 
                          vermelho? Errante, caminhando apenas ao controle do 
                          vento, livre das determinações de uma 
                          mise-en-scène rígida, originando ele mesmo 
                          o caminho que a câmera fará para dramatizá-lo, 
                          o balão vermelho é o renascimento dos 
                          trens de Café Lumière, as viagens 
                          de Adeus ao Sul, as economias de amores, de dinheiro, 
                          de poder em As Flores de Xangai. A 
                          Viagem do Balão Vermelho é mais uma 
                          poderosa afirmação de Hou Hsiao-hsien 
                          de que o mundo se compõe de passagens e intensidades 
                          desgarradas (de fechamento, de amarração), 
                          de uma valorização do instante fruido 
                          em sua hecceidade, da presença de certas pessoas 
                          e coisas e da circulação entre uns e outros. 
                          Essa circulação, Hou nos mostra, compõe 
                          uma música. E o cinema, ao menos para Hou, é 
                          essa melodia da circulação, os diferentes 
                          ritmos, timbres e harmonias da existência de determinadas 
                          pessoas dentro de um determinado período de tempo 
                           um tempo, aliás, que o filme não 
                          nos força a ver como um tempo privilegiado no 
                          sentido dramático dos personagens, mas como instantes 
                          quaisquer. "O futuro do cinema", disse Juliette 
                          Binoche recentemente em entrevista à Cahiers 
                          du Cinéma. E nós referendamos, evidentemente. 
                          Há uma qualidade quase táctil, palpável 
                          que Hou constrói com sua imagem, um gosto que 
                          deriva da imagem em seu abandono, em seu pouco respeito 
                          à idéia de narração da forma 
                          que o cinema condicionou-se a funcionar. Como espectadores, 
                          somos convidados não a apreender uma gama de 
                          informações, mas a acompanhar flutuações, 
                          instabilidades, movimentos. Da mesma forma que segue 
                          o balão vermelho, Hou acompanha as variações 
                          luminosas, as muitas maneiras de reenquadrar um espaço, 
                          de inserir seus espectadores no ritmo daquilo que ele 
                          mostra. Totalmente nova equação entre 
                          controle e liberdade que o cinema de Hou hsiao-hsien 
                          estabelece, e ainda que isso tenha começado (ou 
                          tenha sido reelaborado) a partir de Café Lumière, 
                          A Viagem do Balão Vermelho impacta como 
                          o desbravamento de um território misterioso que, 
                          por um estranho capricho do acaso, é também 
                          a lapidação mais perfeita de um processo. 
                          Ressalta no filme o uso de overlapping de som, ao menos 
                          um absolutamente inédito no cinema, como a conversa 
                          entre Song Fang e o menino Pierre em off, que mergulha 
                          no plano seguinte, que mostra o menino com uma menina 
                          loira, caucasiana, ao longe descendo uma escada. Aos 
                          poucos, os dois se aproximam da câmera, atravessam 
                          a rua, a conversa continua e dura até o momento 
                          que Louise conversa com seu irmão sobre o mesmo 
                          assunto, como se todas as coisas se interligassem numa 
                          dinâmica harmoniosa de passagens. Esplêndido. 
                          Em seguida, Vocês, os Vivos, de Roy Andersson, 
                          começa citando Goethe e fazendo referência 
                          ao rio Lethe, o rio dos mortos, o rio do esquecimento. 
                          As imagens, dessaturadas, envoltas numa sensação 
                          de bruma ou de uma consistência pesada, combinam 
                          com o ritmo de personagens que, também desafetados, 
                          exercem pequenas atividades pitorescas, não sem 
                          uma certa morbidez. O filme trabalha com isso na chave 
                          de uma comédia da melancolia, lembrando talvez 
                          alguns momentos do cinema de Kaurismaki. Mas aqui o 
                          jogo é o mesmo, e só funciona com um tanto 
                          de fastio: uma série de esquetes, repetindo por 
                          vezes alguns personagens, de personagens em penúria 
                          existencial, que o título e a citação 
                          ao rio mitológico sugerem estar mortos. A vida 
                          está em outro lugar, parece dizer o filme. E, 
                          no confronto com o espectador, parece perguntar: "E 
                          quanto à sua vida?" Vocês, os Vivos 
                          funciona um pouco como uma obra de auto-ajuda, ou como 
                          uma comiseração loser que é 
                          tanto batida (absurdo surrealista + feeling depressivo 
                          = já vi isso antes) quanto desigual (a alguns 
                          momentos de real força seguem-se diversos previsíveis 
                          e tolos). Curioso dia: re-revisão de uma obra-prima, 
                          decepção com um filme que se tinha em 
                          alta expectativa, e no final uma bela surpresa (que, 
                          é verdade, já tinha sido antecipada por 
                          nosso co-editor LCOJr na crítica). Essa última 
                          corresponde a Caixas, filme de Jane Birkin que 
                          se desenvolve como uma comovente trabalho de auto-terapia 
                          familiar, onde entra pais, maridos, filhas, todos os 
                          fantasmas de isneguranças, desejo, amor, faltas 
                          de comunicação, ditos-não-ditos 
                          e toda sorte de coisa que criam problema no convívio 
                          com entes próximos. Esses fantasmas, o filme 
                          os vive como etapas necessárias de um processo, 
                          como realidades que, se ao mesmo tempo criam ruído 
                          e dificuldade em nossas vidas, também são 
                          dados constitutivos do gosto de viver, e permitem sempre 
                          uma superação  tanto uma auto-superação 
                          quanto superação do poder destruidor do 
                          fantasma. Caixas não encanta tanto por 
                          sua mise-en-scène, truncada, aleatória 
                          até. Encanta mesmo é por sua entrega, 
                          pela profundeza do mergulho que não precisa do 
                          menor sadismo para ir fundo em feridas familiares (é, 
                          Bergman, é com você). E, last but not least, 
                          atenção a um belíssimo trabalho 
                          de atores, liberados por sua condição 
                          de seres meio reais, meio iamginários, para renderem 
                          interpretações gloriosas de vivacidade 
                          e galhardia. Belo fim, delicioso dia. (RG) 
                           
                          Quarta-feira, 
                          24 de outubro de 2007 
                           
                          Que 
                          privilégio é ter diante de si a história 
                          do cnema se fazendo a nossos olhos. Que privilégio 
                          é poder admirar Diaries, Notes & Sketches, 
                          também conhecido como Lost Lost Lost, 
                          presenciar a maneira muito peculiar, quase à 
                          moda de filme caseiro, de intimizar as imagens, de atribuir 
                          a elas um caráter afetivo, uma fragilidade tão 
                          bonita e contrastante com a maneira trivial e objetiva 
                          com a qual a imagem é tão freqüentemente 
                          utilizada. E que privilégio poder ver um outro 
                          homem, de outro país, do outro canto do globo, 
                          em outro registro de cinema, lutar a mesma luta, fazer 
                          a briga entre o narrar e o mostrar para fornecer ao 
                          espectador uma liberdade devastadora, um mais acompanhar 
                          o filme do que propriamente vê-lo, entendê-lo. 
                          Le Voyage du ballon rouge é outro triunfo 
                          de Hou Hsiao-hsien, e é um desses instantes em 
                          que confirmamos que temos diante de nós alguém 
                          do patamar de um Renoir, um Mizoguchi, um Hitchcock, 
                          um Lubitsch: a maneira de fazer um mesmo filme, utilizando 
                          os mesmos procedimentos, e ao mesmo tempo ser totalmente 
                          inédito, fazer o cinema atingir sensibilidades, 
                          lugares que nunca se imaginava que ele pudesse chegar 
                          porque simplesmente ninguém perguntou dessa forma, 
                          ninguém nunca levou a ele essa inquietação. 
                          À maneira de Jonas Mekas, Hou também faz 
                          seus cinediários, sua declaração 
                          de amor à vida e ao passar do tempo e o movimento 
                          das coisas, um cine-mantra, hipnótico, doce, 
                          apaixonante. É claro que voltaremos mais longamente 
                          a ele, mas o exíguo tempo que há nesse 
                          momento é para compartilhar a enorme alegria 
                          de ver no mesmo dia dois filmes de diretores distintos, 
                          com estéticas inteiramente distintas, mas que 
                          encontram uma harmonia, uma sincronididade no gesto 
                          artístico. (RG) 
                           
                          Terça-feira, 
                          23 de outubro de 2007 
                           
                          Sala 
                          do Unibanco Arteplex 1 
                          lotada, como era de se esperar, e Inland Empire com pouquíssimos minutos instaura o silenzio!. Estamos no clube do silêncio de Mulholland Drive. E Lynch 
                          nos apresenta agora uma  vídeo-ambiência que não se estrutura 
                          em cadeia significante, mas antes em circuitos de imagens 
                          (reconhecíveis como “lynchianas” 
                          ou não). Quando duas modalidades de olhar se cruzam 
                          (quem olha, quem é olhado – 
                          talvez haja ainda uma terceira modalidade, neutra, vigilante) 
                          e vários níveis de realidade se chocam, o resultado 
                          é Inland Empire. Tudo é rabiscado a um ponto onde 
                          não mais compõe signo. Em A 
                          Estrada 
                          Perdida, em 
                          Mulholland Drive, 
                          a iconicidade das imagens 
                          (relação com o cinema de gênero, com o thriller) ajudava 
                          o espectador a construir o universo do filme, ou melhor, 
                          a se instalar no filme, mesmo que, no fim das contas, 
                          em termos narrativos, o reconhecimento de um ou outro 
                          signo mal alterasse a disposição geral dos eventos. 
                          Agora, em 
                          Inland Empire, 
                          vemos um tachismo videográfico 
                          até então não catalogado no cinema contemporâneo. Através 
                          do digital de baixa definição, Lynch devolve ao rosto feminino a sujeira, os poros, os hematomas, 
                          a escatologia, as impurezas, a feiúra, enfim, tudo que 
                          o star-system recalcou. 
                          Sobre a calçada da fama, onde estão gravados os nomes 
                          das estrelas, dormem mendigos, imigrantes, marginais. 
                          Laura Dern lá se deita ensangüentada, 
                          com o rosto sujo, acabado, vomita sangue. Lynch 
                          realista? Essa sujeira, essa feiúra repentina, coagulada 
                          em meio ao fluxo de incompreensão e ambigüidade que 
                          marca o filme, não seria o mais estridente signo do 
                          real visto recentemente no cinema? A beleza deserta 
                          o corpo. Somos atirados ao abstrato, aos dejetos. Do 
                          rosto-miragem da estrela, passamos à careta. Não faltam, 
                          ao longo do filme, rostos histéricos, closes aldrichianos elevados a uma potência de bizarrice inédita, 
                          distorções faciais, expressões borradas: a imagem precária 
                          de Lynch a serviço de um novo tipo de nudez – patológica e pornográfica, 
                          ok, mas no fundo uma nudez 
                          qualquer, inchada no detalhe e esvaziada na essência. 
                          Inland Empire faz uma centrifugação dos lugares 
                          do espectador e do personagem. Lynch 
                          mergulha no mais insondável e angustiante da relação 
                          de um ser humano com o outro (de preferência o outro 
                          amado), ou consigo mesmo. A relação de 
                          um espectador com um filme, a propósito, é 
                          desta mesma natureza: a relação de um 
                          com o outro. “Quem é ela?”, pergunta-se no filme. “Quem 
                          é ela?”, interrogação matricial de Vertigo, de Marnie, de Dublê de Corpo. 
                          De Veludo Azul. 
                          Quem são elas? (LCOJr.) 
                           
                           
                          Terça-feira, 23 de outubro de 2007 
                           
                          Primeiro de tudo, é importante que se diga: É 
                          INACEITÁVEL A TERRÍVEL DESORGANIZAÇÃO 
                          DA MOSTRA QUE ATRASA TODAS AS SESSÕES DOS FILMES. 
                          E dessa vez, antes que se comece por achar o bode expiatório 
                          em qualquer um ou outro de sala exibidora, basta que 
                          se olhe o tempo ridículo dado entre o fim de 
                          uma sessão e o começo de outra. É 
                          algo que está em todas as conversas dos freqüentadores 
                          da Mostra, seja no relato pessoal de como perderam sessões 
                          ou pela previsão dos dias seguintes, já 
                          contando com os futuros atrasos. Até agora, começo 
                          do dia 23, essa vem sendo a tônica negativa da 
                          Mostra. Em todo caso, os atrasos alongam a expectativa 
                          mas não nos impedem de ver bons filmes. Como 
                          Finye, de Souleymane Cissé. De Cissé, 
                          só tínhamos visto o soberbo Waati, 
                          numa dessas Mostra Banco Nacional da vida. Em Finye, 
                          nada da sofisticação sensorial do filme 
                          que até agora é o mais recente de Cissé, 
                          mas em compensação temos uma frontalidade 
                          política, um primarismo da encenação 
                          e do trabalho com os atores utilizado como máquina 
                          de precisão e aguda descrição da 
                          causalidade das decisões individuais e/ou políticas 
                          no seio de um conflito entre estudantes e direção 
                          numa escola. Vale ressaltar que o filme passou em formato 
                          digital, e um dos méritos de Waati era 
                          exatamente a utilização da luz para dar 
                          carnalidade e uma solidez sensual às situações. 
                          E, com o transfer que passou, de baixa qualidade, essa 
                          característica pode no máximo ser presumida. 
                          Mas como só se pode ver assim, é assim 
                          que vemos mesmo. Mais à noite, o destaque do 
                          dia: revisão de I'm Not There. No Rio, 
                          vi cansado e, ainda que totalmente maravilhado, não 
                          consegui acompanhar o filme totalmente como ele pede, 
                          como uma ópera tresloucada passando em ritmo 
                          de trem-bala, o teatro épico brechtiano carnavalizado 
                          por um enorme iconômano (Terra em Transe, 
                          anyone?) e revitalizado por uma enorme crença 
                          no pathos individual (como em Fassbinder, com 
                          quem Haynes já tinha flertado cinematograficamente 
                          tanto em Longe do Paraíso quanto em A 
                          Salvo), o Encouraçado Potemkin do 
                          novo século, claro, muito mais libertador e político 
                          que o filme de Eisenstein. Os superlativos e o name 
                          dropping se justificam pela incrível exuberância 
                          multifacetada do filme, sintetizada por uma montagem 
                          mágica, tanto em estrutura quanto em ritmo, fazendo 
                          surgir turbilhões de informação, 
                          vida real, fantasmas, documentário de televisão, 
                          criando Dylan como um caso social, como uma figura política, 
                          recriando a Karen Carpenter de Superstar ou o 
                          Bowie de Velvet Goldmine para explodir no rosto 
                          do espectador sua dylanologia negativa (como se fala 
                          em teologia negativa) e afirmar a mais bela das verdades, 
                          rock'n'roll, heraclitiana, impiedosa, admiravelmente 
                          instável: de que o sentido não tem essência, 
                          ele só se acontece on the run, fugitivo, 
                          na carona de alguma outra coisa, cheio de perigos e 
                          mudanças de percurso, máscaras, e para 
                          isso ele tem que assumir todas as formas sem se instalar 
                          em nenhuma: cor, p&b, melodrama, documentário, 
                          bonito, feio, refinado, tosco, preto, branco, mulher, 
                          homem, criança, absolutamente tudo desde que 
                          seja veloz veloz veloz. Um desses raros filmes dos quais 
                          se sai da sala querendo gritar, pular, lágrimas 
                          nos olhos, extravazando vida. É definitivamente 
                          pra mim nesse ano o que Juventude em Marcha foi 
                          no ano passado, o que Mal dos Trópicos foi 
                          em 2004: essa mistura de fascinação e 
                          beleza, mistério e novidade, essa percepção 
                          de que alguém está fazendo com o cinema 
                          alguma coisa que ainda não havíamos visto. 
                          É meio temerário dizer isso no dia em 
                          que você ainda vai ver o Hou Hsiao-hsien novo, 
                          mas digo mesmo assim: filme do ano. (RG) 
                           
                          Segunda-feira, 22 de outubro de 2007 
                           
                          Ontem pude finalmente contemplar, em cabine de imprensa, 
                          os dois filmes do projeto Grindhouse, de Robert Rodriguez 
                          e Quentin Tarantino. Toda a idéia de resgatar não apenas 
                          um gênero ou uma tradição cinematográfica, mas também 
                          uma forma de consumir cinema, parece uma derivação da 
                          idéia do parque temático, aplicável a filmes de ação 
                          recentes como Piratas do Caribe, que nos chamam 
                          a experimentar a ficção mais como universo do que como 
                          narrativa. Em Grindhouse, o parque temático torna-se 
                          muito propriamente a sala de cinema: no instante em 
                          que começa a projeção, somos atirados para um cinema 
                          poeira especializado em filmes B. Vistos um após o outro, 
                          como deve ser, os filmes de fato nos instalam numa situação 
                          diversa daquela em que normalmente estamos como espectadores 
                          e nos solicitam a, simultaneamente, mergulhar na experiência 
                          proposta e identificar na imagem do filme suas referencialidades. 
                          Me chama particularmente a atenção a conversão de fatos 
                          que dizem respeito a condições sociais e históricas 
                          de exibição e à materialidade da obra, em fato estético. 
                          Riscos, sujeiras, desfoques, pulos na imagem, revelação 
                          vagabunda; tudo isso torna-se característica plástica 
                          do filme e fator determinante de sua constituição como 
                          espetáculo. Sem dúvida, Planeta Terror beneficia-se 
                          disto mais do que À Prova de Morte. A “equação” 
                          proposta entre a emulação de um determinado cinema, 
                          situado no tempo e no espaço, e a realização de uma 
                          obra autoral é, para mim, mais bem-sucedida em Rodriguez 
                          do que em Tarantino. Planeta Terror é abundante 
                          em todos os efeitos de imagem citados e conta ainda 
                          com um trailer de um filme de ação B dos mais típicos. 
                          Já À Prova de Morte, neste sentido, parece ficar 
                          um pouco perdido entre o gênero e as preocupações de 
                          Tarantino como autor. Sinto inclusive que a primeira 
                          parte do filme peca em ritmo e não conta com diálogos 
                          tão bons quanto a segunda. Mas é preciso ressaltar que 
                          as seqüências de perseguição são todas fenomenais, assim 
                          como os usos de música. No geral, acho que Tarantino 
                          fez um belo filme, mas preocupou-se mais em tocar seu 
                          trabalho, já todo ele pautado em referências e ícones 
                          da cultura popular, do que em gerar um filme a partir 
                          de um modelo. À Prova de Morte me distanciou 
                          um pouco do cinema poeira no qual estive durante Planeta 
                          Terror e me trouxe um pouco mais para a sala do 
                          Unibanco Arteplex na qual eu de fato estava sentada. 
                          Ainda em relação a essa sensação de orientação no tempo, 
                          outro dado bastante interessante de ambos os filmes 
                          é o trabalho de arte perdido em algum lugar entre o 
                          passado e o presente. Celulares e roupas da moda convivem 
                          harmoniosamente com cortes de cabelo defasados e modelos 
                          de carros antigos. Da mesma forma, a citação a Bin Laden 
                          em Planeta Terror não parece nada deslocada de 
                          sua “trama” mezzo-inspirada nas ficções cinematográficas 
                          da época da Guerra Fria. À tarde, foi a vez de conferir 
                          De Volta à Normandia, que também não havia assistido 
                          no Festival do Rio. O filme de Philibert, como observou 
                          Junior em sua crítica, 
                          é preciso em seu desejo de mostrar o fazer das coisas, 
                          as atividades que inserem os homens na ordem da sociedade. 
                          Nesta observação do trabalho, matar um porco pode se 
                          assemelhar a cortar um filme na enroladeira. Mas, também, 
                          a matar a família “a pedido” de Deus. Talvez o mais 
                          instigante deste filme seja a relação que Philibert 
                          estabelece entre o crime de Pierre Rivière e o cotidiano 
                          rural, tanto no aspecto de uma relação com a natureza 
                          pautada pela proximidade e pela violência, quanto no 
                          aspecto da necessidade de organização de tarefas e de 
                          papéis sociais. E, neste cenário, o cinema, como trabalho, 
                          entraria para indagar e para buscar nas pessoas seus 
                          traços decisivos, para além da operacionalidade em que 
                          estão inseridas. Daí o filme encontrar, apenas no final, 
                          a imagem que era o motivo de toda a sua realização: 
                          o plano cortado da montagem final do filme de René Allio: 
                          a do pai de Philibert. Ali, na pura contemplação do 
                          registro em filme daquele ser ainda em vida, o realizador 
                          encontra motivo suficiente para ir ao encontro de tantas 
                          outras pessoas. (TM) 
                           
                          Domingo, 21 de outubro de 2007 
                           
                          Chegar num segundo dia de Mostra, mesmo que se tenha 
                          visto no Rio, mesmo que tenha sido inevitável 
                          por conta de trabalho, dá sempre uma sensação 
                          de ligeira defasagem, de uma falta a ser reparada, que 
                          é acompanhada do desejo de imersão e de 
                          compensação. Não sei se é 
                          regra geral, mas pelo menos funciona assim na maníaca 
                          cabeça deste que vos digita essas linhas. Resultado: 
                          cinco filmes no dia, e um trajeto bem irregular, envolvendo 
                          ao final dois filmes pelos quais a minha curiosidade 
                          já era pouca para começar (Manchevski, 
                          Moore), mas que são filmes "dos quais se 
                          fala", aquele filme que um editor de revista, mal 
                          ou bem, não pode deixar passar (ainda que passar 
                          por um desses também seja uma forma de afirmar 
                          alguma coisa, e até funcione como proposição 
                          crítica par défaut). Aos filmes: 
                          começar a Mostra de pé direito é 
                          sempre bom, e a minha foi assim. Inútil 
                          de Jia Zhang-Ke não é tanto um filme sobre 
                          o "mundo da moda", como foi propagandaeado, 
                          do que um filme sobre roupas, seu uso social, sua funcionalidade, 
                          o modo como ela reflete e constrói relações 
                          sociais e dados de mentalidade. O filme alterna, em 
                          sua estrutura, entre o acompanhamento de uma estilista 
                          (com depoimentos sobre sua concepção de 
                          roupas e de mundo, filmagem de uma apresentação, 
                          processo de trabalho, etc.) e o modo como os chineses 
                          "normais", aqueles que representam os traços 
                          comuns da maioria das populações chinesas 
                           o que para Jia Zhang-Ke sempre vai significar 
                          sua terra natal, Fenyang, em Shanxi , fazem uso 
                          da questão de roupas, como interpretam a vestimenta 
                          como necessidade, funcionalidade e beleza, e em que 
                          grau cada uma dessas coisas exerce mais influência 
                          dependendo do meio em que se vive. A vedete do filme, 
                          no entanto, é o belíssimo trabalho formal 
                          criado por Jia com o diretor de fotografia Yu Lik-wai, 
                          com seus movimentos laterais de câmera que, associado 
                          à música algo cavernosa de Lin Giong (dois 
                          parceiros habituais do cineasta), dão ao filme 
                          um pronunciado olhar de investigação sobre 
                          o comportamento humano. É impressionante como 
                          Jia, mais uma vez, consegue materializar em sua obra 
                          as questões históricas do processo de 
                          modernização da China contemporânea, 
                          com um olhar mais de investigador do que com uma visão 
                          moralizante. Em seguida, corridas de cima abaixo pela 
                          Paulista para retirar os ingressos dos filmes seguintes. 
                          Na correria, chega-se a O Homem de Londres, e 
                          atravessamos a cortina do ex-Cinearte 1, hoje Cine Bombril, 
                          a tempo de ver a vinheta da Mostra e pegar o filme do 
                          começo. A aventura, no entanto, não se 
                          vê refletida no filme, que tem um dos trabalhos 
                          de forma mais confortavelmente "de arte" que 
                          se pode imaginar. Não sou um conhecedor do cinema 
                          do Béla Tarr, mas O Homem de Londres me 
                          deixa a límpida impressão de uma estética 
                          já inteiramente mastigada, inteiramente assimilada 
                          depois de tanto trabalho em cima das formas que Antonioni, 
                          Welles, Dreyer e muitos outros ajudaram a consolidar. 
                          O filme dá a clara impressão de uma mistura 
                          entre Angelopoulos e irmãos Coen (os piores irmãos 
                          Coen, aqueles de O Homem Que Não Estava Lá, 
                          com o qual o filme de Tarr divide o preto-e-branco), 
                          de personagens fortes como imagens mais inexistentes 
                          em qualquer outra camada, mas acima de tudo a escolha 
                          de uma forma já toda pronta, toda acabada, um 
                          ritmo já todo concebido, que pode ser (e é) 
                          aplicado indiscriminadamente a qualquer conteúdo 
                          sensível (ou seja, espaço, personagens, 
                          intriga) sem que se precise negociar com as formas da 
                          matéria que o filme utiliza. E assim a arte definitivamente 
                          não tem graça, virando badulaque virtuoso 
                          para madames. Próximo: Reserva Cultural 1, com 
                          sua sala mais ampla do que a 2 que pertencia à 
                          Mostra nos anos passados, mas com uma total falta de 
                          jeito em atender ao espectador que, como eu, gosta de 
                          sentar na frente. La León, já passado 
                          e perdido no Festival do Rio, poderia tranqüilamente 
                          ter continuado perdido, pelo menos para mim. Há 
                          de se louvar, um pouquinho, a escolha pelo laconismo 
                          e a locação evocativa do filme, que lembra 
                          por vezes Los Muertos de Lisandro Alonso. Mas 
                          o filme fica por aí. Digital cinemascope em preto-e-branco 
                          que no entanto não se resolve como quadro, ora 
                          ostentatório ora pobre de enquadramentos, amadorismo 
                          "bressoniano" dos atores, blé. É 
                          chique, é bacana que tenha alguém fazendo, 
                          mas francamente não é nada demais. Mas 
                          se pode sempre piorar, e o dia piora: Sombras, de Milcho 
                          Manchevski. Já não conseguia compreender 
                          o estardalhaço feito com Antes da Chuva, 
                          que lé por meados dos anos 90 foi o filme engana-otário 
                          do ano: os vai-e-vens temporais ocasionavam comparações 
                          com Pulp Fiction, o sentimentalismo evocava Kieslowski, 
                          as várias intrigas emulavam Altman com seu influentíssimo 
                          Short Cuts. Mas... blé. Sombras, 
                          no entanto, é pior do que mesmo o espectador 
                          de maior boa vontade poderia imaginar. Narrativa que 
                          intercala susto de filme de terror com uma história 
                          metafísica (risos) de religação 
                          a um passado, o filme é tão primário 
                          em tudo que apresenta, nos ridículos excessos 
                          de composição (que, logo no início, 
                          o plano de um aparelho celular tocando em primeiro plano 
                          depois de um terrível acidente de carro, já 
                          antecipa) e na inépcia em instaurar o drama, 
                          que num dado momento só nos restou o sono (é 
                          por isso que o filme não terá uma bolinha 
                          preta minha no quadro de cotações, simplesmente 
                          porque dormi no meio  o que, aliás, aconteceu 
                          no Rio com Gregg Araki e o terrível filme de 
                          Michel Gondry). Ao fim, revigorado com um tantinho de 
                          sono num dia cansativo, vi S.O.S. Saúde 
                          de Michael Moore e confesso que achei muito mais interessante 
                          do que esperava. É claro que, em se tratando 
                          de Michael Moore, existem sempre umas facilidades na 
                          construção do argumento, sempre uma opção 
                          pelo espalhafato em lugar da análise. Pode-se 
                          dizer que é o modo de proceder dele, e que criticar 
                          isso é criticar o modelo. Mas me parece que, 
                          se os filmes se vendem como observações 
                          que tocam em temas sociais e políticos importantes, 
                          é também sob essa luz que eles devem ser 
                          avaliados. Mas, ao contrário de um Fahrenheit 
                          9/11 ou de um Tiros em Columbine, S.O.S. 
                          Saúde encontra um saudável foco (apesar 
                          de duas ou três digressões francamente 
                          dispensáveis) na necessidade (ou desnecessidade) 
                          de um sistema público de saúde. Convém 
                          dizer que o filme se sai impressionantemente bem quando 
                          trata de investigar o uso da palavra "social" 
                          (e a conseqüente "Socialismo") para desbancar 
                          o argumento conservador de que um sistema público 
                          de saúde é o caminho para a comunização 
                          de uma sociedade. Confesso que nunca vi o filme dele 
                          sobre a GM, que até hoje só vi o programa 
                          boboca de televisão (trechos de alguns episódios, 
                          na verdade, zapeando entre intervalos) e os dois filmes 
                          que entraram em cartaz. Como humor, tudo sub-Monty Python, 
                          e politicamente nada com muita verve de real polemista. 
                          Mas S.O.S. Saúde, ainda que irregular 
                          e definitivamente menor, até que tem seus momentos 
                          de interesse. (Ruy Gardnier) 
                           
                          Sábado, 20 de outubro de 2007 
                           
                          Por que não começar a mostra com A 
                          Questão Humana, do Nicholas Klotz? Parecia 
                          uma bela opção, tínhamos tudo para 
                          entrar com o pé direito (desde que vi A Ferida 
                          na Mostra de São Paulo, em 2004, aguardo ansiosamente 
                          por um novo filme de Klotz). Mas, logo ao chegar ao 
                          HSBC Belas Artes, o amigo e ex-contracampista Cláudio 
                          Szynkier poupou-nos de ir até a bilheteria para 
                          receber a má notícia: a cópia não 
                          havia chegado a tempo. Bom, não teve jeito, A 
                          Questão Humana ficou pra hoje no CineSesc 
                          (há males que vêm pro bem, assistirei ao 
                          filme numa excelente sala). Fomos então, eu e 
                          Tatiana, para o Reserva Cultural. Lá vimos Angel, 
                          do François Ozon, e Help Me Eros, o segundo 
                          longa-metragem de Lee Kang-sheng. Já nos primeiros 
                          minutos de Angel, percebemos que Ozon mergulha 
                          visual e dramaticamente no universo daquele tipo de 
                          best-seller mais cafona e vagabundo possível, 
                          aquele cuja escritora produz 2 ou 3 livros por ano e 
                          vende em tudo quanto é livraria e banca de jornal. 
                          Ozon fez com esse tipo de folhetim romântico alguma 
                          coisa que lembra a operação de Fassbinder 
                          com o melodrama. Acontece que Ozon não é 
                          Fassbinder (nem estamos exigindo que fosse). O filme 
                          tem algo estranho, que parece estar além da superfície 
                          do jogo e do efeito-imagem. É curioso ver um 
                          filme de Ozon tão perturbado por uma potência 
                          de morte, que sai da protagonista e contamina o entorno. 
                          A tonalidade do jogo é próxima de Oito 
                          Mulheres, mas com uma perturbação 
                          a mais. Pena que a cópia digital exibida (já 
                          legendada em português) seja de qualidade tão 
                          ruim, pois todos os matizes da fotografia de Denis Lenoir 
                          parecem se perder no excesso de brilho e nas cores, 
                          digamos assim, suspeitas que vemos na tela. Na sessão 
                          seguinte, vimos um Lee Kang-sheng mais desprendido (em 
                          relação a Tsai Ming-liang) e mais criativo 
                          do que a impressão que tive em O Desaparecido, 
                          seu primeiro longa (passou na Mostra de 2003). Help 
                          Me Eros tem algumas composições muito 
                          interessantes, por vezes sacações visuais 
                          realmente criativas e pregnantes (certos planos, no 
                          entanto, pareciam misturar reflexos de espelho ou televisões 
                          ligadas de forma despropositada, prejudicando a fruição 
                          da cena, mas, no geral a criatividade tinha um boa correlação 
                          na narrativa). Embora Lee demonstre em várias 
                          passagens que filma buscando um estilo próprio, 
                          alguns traços marcantes de Tsai podem ser verificados 
                          com facilidade (uso recorrente de plano fixo e longo, 
                          trama mínima, ambientação do filme 
                          em contra-espaços, lógica do desencontro 
                          entre os personagens, cenas musicais bem ao estilo Tsai). 
                          Incomoda-me em particular a cena em que Lee teria um 
                          encontro com a mulher com quem conversa no MSN, mas 
                          esse encontro, como era de se prever, não ocorre, 
                          se frustra. É exatamente o beco sem saída 
                          desse cinema sem confronto, sem campo-contracampo. Que 
                          o tête-à-tête não ocorresse 
                          era justo o que eu previa, mas gostaria de ver acontecer 
                          diferente. Falaremos mais nos textos. (LCOJr) 
                           
                          
                          
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