Normandia, 2006: as folhas
mexem
Na escola primária, na galeria zoológica do museu
de história natural ou no Louvre, os documentários de
Nicolas Philibert têm sempre
uma estrutura conceitual, uma sensibilidade plástica
evidente e uma curiosidade ao mesmo tempo científica
e infantil de observar pessoas em seu métier (é como se
a câmera perguntasse: “pra que serve isso? por
que fazer desse jeito?”). Há também uma vontade de registrar
cenas emblemáticas, tensas, às vezes realmente fortes
– a exemplo do plano de abertura em De Volta à Normandia, que mostra em detalhe
o nascimento de porcos. Não bastasse a cena deles sendo
expulsos do corpo da mãe ser uma imagem violenta em
si, depois ainda vemos o fazendeiro arrancando, com
uma tesoura, os dentes dos filhotes. Philibert começa seu filme instaurando toda uma idéia de esforço,
violência e dificuldade no vir ao mundo. Descobriremos,
ao longo do filme, que essa dificuldade é uma parte
fundadora do ato criativo, e nisso se inclui também
o cinema, trabalho que depende de muitos fatores (internos
e externos) e encontra toda sorte de empecilho pelo
caminho. De Volta
à Normandia é o retorno à cidade onde René Allio,
em 1976, rodou Eu, Pierre Rivière...,
filme do qual Philibert
foi assistente. Ele reencontra as pessoas que participaram
do filme (os atores não profissionais que Allio
recrutou na cidade), deixa que elas falem de suas vidas,
das lembranças do set, do que fizeram depois. Buscar
os documentos, refazer a trajetória de Allio desde pré-produção até filmagem de Eu, Pierre Rivière...
significa ativar um novo esforço criativo e uma
nova proposição estética. O trajeto de carro à Normandia
é filmado de modo fenomenal: ele corta da paisagem vista
através da janela do carro para trechos do filme de
Allio, alternadamente. O diálogo memorial, portanto, está
inserido num projeto acima de tudo estético. Eu, Pierre Rivière... será posto novamente
em movimento,
e não somente contemplado na estaticidade
e no mutismo dos arquivos. Philibert
prefere uma arqueologia dinâmica,
feita de pessoas e de eventos, e não apenas de
pesquisa e documentação exaustivas.
O filme de Allio foi baseado
no livro de Foucault sobre o famoso diário de Pierre
Rivière, que matou a mãe e
os irmãos e foi julgado por este que, no século XIX,
era considerado o pior dos crimes (matar os próprios
parentes). Hoje, Philibert
nos informa, outros crimes tomaram a frente na escala
de abjeção. Desde o sistema jurídico até os meios de
conservação dos filmes, De Volta à Normandia fala de coisas que mudam. Ou, nos momentos mais
extremos, de coisas que ameaçam desaparecer. A cena
no laboratório que restaurou o filme de Allio
é impressionante: Philibert fala de uma arte que está sempre por um triz (em
A Cidade Louvre também havia esse deslumbre
mesclado de espanto com a dificuldade de conservação
das obras). Claude Hebert,
por sua vez, o protagonista de Eu, Pierre Rivière...,
é o último a aparecer em De Volta à Normandia, pois Philibert não
conseguia localizá-lo de jeito nenhum. Alguns informavam
que ele estava morto, outros diziam que ele teria ido
pro Canadá. Finalmente, uma informação correta leva
até Hebert, que virou um padre
missionário no Haiti. Por pouco o filme não o encontra.
Depois de Eu, Pierre Rivière..., Hebert fizera o belíssimo La Drôlesse, de Jacques Doillon,
e sumira. Em La Drôlesse ele
curiosamente já era um rapaz recluso,
terno e tímido, características que o adulto
Hebert ainda apresenta quando
ressurge aqui em De
Volta à Normandia. Trinta anos depois, reaparece
o rosto que havia emprestado sua doçura ao retrato de
um dos mais famosos assassinos do século XIX. Trinta
anos depois, o filme de Allio
sobrevive apesar das dificuldades em plena era de transição
dos suportes. Trinta anos depois, os depoimentos colecionados
por Philibert, adoráveis em sua maioria, mostram o cinema como
uma possibilidade de encontro – com o lugar e com as
pessoas. Em boa parte dos depoimentos, a câmera de Philibert
está ao ar livre, no quintal da casa, no capim, próximo
às árvores. Enquanto as pessoas falam, percebemos que
o vento balança as folhas. Philibert
foi lá na Normandia para constatar que o cinema ainda
existe como essa revelação primitiva: as folhas mexem.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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