DE VOLTA À NORMANDIA
Nicolas Philibert, Retour en Normandie, França, 2007

Normandia, 2006: as folhas mexem

Na escola primária, na galeria zoológica do museu de história natural ou no Louvre, os documentários de Nicolas Philibert têm sempre uma estrutura conceitual, uma sensibilidade plástica evidente e uma curiosidade ao mesmo tempo científica e infantil de observar pessoas em seu métier (é como se a câmera perguntasse: “pra que serve isso? por que fazer desse jeito?”). Há também uma vontade de registrar cenas emblemáticas, tensas, às vezes realmente fortes – a exemplo do plano de abertura em De Volta à Normandia, que mostra em detalhe o nascimento de porcos. Não bastasse a cena deles sendo expulsos do corpo da mãe ser uma imagem violenta em si, depois ainda vemos o fazendeiro arrancando, com uma tesoura, os dentes dos filhotes. Philibert começa seu filme instaurando toda uma idéia de esforço, violência e dificuldade no vir ao mundo. Descobriremos, ao longo do filme, que essa dificuldade é uma parte fundadora do ato criativo, e nisso se inclui também o cinema, trabalho que depende de muitos fatores (internos e externos) e encontra toda sorte de empecilho pelo caminho. De Volta à Normandia é o retorno à cidade onde René Allio, em 1976, rodou Eu, Pierre Rivière..., filme do qual Philibert foi assistente. Ele reencontra as pessoas que participaram do filme (os atores não profissionais que Allio recrutou na cidade), deixa que elas falem de suas vidas, das lembranças do set, do que fizeram depois. Buscar os documentos, refazer a trajetória de Allio desde pré-produção até filmagem de Eu, Pierre Rivière... significa ativar um novo esforço criativo e uma nova proposição estética. O trajeto de carro à Normandia é filmado de modo fenomenal: ele corta da paisagem vista através da janela do carro para trechos do filme de Allio, alternadamente. O diálogo memorial, portanto, está inserido num projeto acima de tudo estético. Eu, Pierre Rivière... será posto novamente em movimento, e não somente contemplado na estaticidade e no mutismo dos arquivos. Philibert prefere uma arqueologia dinâmica, feita de pessoas e de eventos, e não apenas de pesquisa e documentação exaustivas.

O filme de Allio foi baseado no livro de Foucault sobre o famoso diário de Pierre Rivière, que matou a mãe e os irmãos e foi julgado por este que, no século XIX, era considerado o pior dos crimes (matar os próprios parentes). Hoje, Philibert nos informa, outros crimes tomaram a frente na escala de abjeção. Desde o sistema jurídico até os meios de conservação dos filmes, De Volta à Normandia fala de coisas que mudam. Ou, nos momentos mais extremos, de coisas que ameaçam desaparecer. A cena no laboratório que restaurou o filme de Allio é impressionante: Philibert fala de uma arte que está sempre por um triz (em A Cidade Louvre também havia esse deslumbre mesclado de espanto com a dificuldade de conservação das obras). Claude Hebert, por sua vez, o protagonista de Eu, Pierre Rivière..., é o último a aparecer em De Volta à Normandia, pois Philibert não conseguia localizá-lo de jeito nenhum. Alguns informavam que ele estava morto, outros diziam que ele teria ido pro Canadá. Finalmente, uma informação correta leva até Hebert, que virou um padre missionário no Haiti. Por pouco o filme não o encontra. Depois de Eu, Pierre Rivière..., Hebert fizera o belíssimo La Drôlesse, de Jacques Doillon, e sumira. Em La Drôlesse ele curiosamente já era um rapaz recluso, terno e tímido, características que o adulto Hebert ainda apresenta quando ressurge aqui em De Volta à Normandia. Trinta anos depois, reaparece o rosto que havia emprestado sua doçura ao retrato de um dos mais famosos assassinos do século XIX. Trinta anos depois, o filme de Allio sobrevive apesar das dificuldades em plena era de transição dos suportes. Trinta anos depois, os depoimentos colecionados por Philibert, adoráveis em sua maioria, mostram o cinema como uma possibilidade de encontro – com o lugar e com as pessoas. Em boa parte dos depoimentos, a câmera de Philibert está ao ar livre, no quintal da casa, no capim, próximo às árvores. Enquanto as pessoas falam, percebemos que o vento balança as folhas. Philibert foi lá na Normandia para constatar que o cinema ainda existe como essa revelação primitiva: as folhas mexem.

Luiz Carlos Oliveira Jr.