Impossível passar ileso
por A Cor do Romã de Sergei Paradjanov;
a experiência é no mínimo arrebatadora.
Através de uma narrativa visual vertiginosa,
a vida do poeta Sayat Nova se torna matéria.
Os planos fixos de Paradjanov atiram o cinema num regime
de imagem e de duração sem similares.
Um cinema de composições alegóricas complexas, mas também
de temperaturas e estados da matéria (daquilo que precede
o simbolismo, por assim dizer). A cor é mais
e menos do que ela mesma: dá forma a um pensamento
sobre o universo artístico e histórico
de Sayat Nova, mas preserva ao mesmo tempo seu estatuto
primeiro, bruto e assignificante. Paradjanov visita
um subterrâneo do cinema (no sentido de um lugar pouco
explorado) e escava suas potências. O filme é
como um baú de tesouros e relíquias; o incrível
acervo de utensílios, figurinos, tecidos, apetrechos,
instrumentos... toda sua caixa mágica de ferramentas
paira bem acima de um prazer museológico. São
signos perdidos no tempo, transformados em puros objetos
icônicos – prevalece
a platitude dos elementos plásticos. A história
da arte (a história dos homens) vive uma profunda
e irremediável amnésia. O passar do tempo
esvazia tanto a potência simbólica de um
signo artístico, desplugando-o do tempo histórico
que comunica, quanto a trajetória dos povos vencidos,
que são jogados em uma vala coletiva. Se a máquina
do tempo paradjanoviana promove um retorno ao iconismo
medieval, ela o faz pela reconquista de um certo tipo
de representação do espaço, e através
de uma construção de imagem superpovoada
de visões, figuras, referências, objetos
de antiquário (sem que isso implique barroquismo
ou maneirismo). As composições
dos planos em A Cor do Romã trazem
também a presença e a influência
crucial da tapeçaria, principal forma de arte
medieval ao lado da pintura. Desaparece a profundidade,
desaparece o canal óptico que relaciona o próximo
e o distante. Ressurge uma experiência espacial
direta, chapada, uma composição em horizontal
e vertical (em vez de superfície e fundo). É
um espaço n-dimensional, sem parâmetro
de distância –
porque é intuído, é obra de visionário,
é o testemunho de uma zona de percepção
situada para além da realidade física.
O filme não revela o olhar de alguém que
sai do nosso tempo e aporta à Idade Média
com uma câmera de cinema. Ele sugere, antes, como
seria se alguém da Idade Média
tivesse uma câmera de cinema. Algo como
um elo perdido entre o sentimento místico dos
afrescos medievais e os tableaux vivants de Raoul
Ruiz em A Hipótese do Quadro Roubado.


Os rituais religiosos
e a profanação artística se fundem
em um só traço-movimento: Paradjanov consegue
ser simultaneamente um bruxo e um artista sacro. O
que há para ver
nas suas imagens? Algo mais para além das imagens?
Algo que, em outra época, em outro meio e suporte,
Giotto ou Fra Angelico quiseram também mostrar?
Ele reformula a questão do que está ou
não está presente no visível, essa
partilha misteriosa da imagem, seja ela a via de acesso
a uma ordem transcendental ou não. Há
um dado importante sobre esse aspecto, que diz respeito
ao trabalho dos atores. O lado teatral de A Cor do
Romã é um acréscimo impressionante.
Sua dramaturgia encarna
uma resposta (com toda violência que
isso implica) à proibição do ator
no universo cênico medieval. As mesmas alegorias
presente nas igrejas, nas grandes decorações
murais, não eram encenadas com figuras de carne
e osso. A arte que almejava o divino não podia
ser mediada por corpos reais, mas somente pela figuração
icônica. Paradjanov vai então aonde a arte
medieval não se permitia ir, nutrindo-se da representação
teatral para evocar aquele mesmo universo de que ela
havia sido banida. Em A Cor do Romã, esse
teatro proibido encontra sua liberdade na imagem de
cinema.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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