CRÍTICA À MODA ANTIGA PARA UM FILME GENIAL

Para João Miguel, Iara e Jorge, filhos do André Sampaio e da Gabriela Gusmão, e também para Mathias, o bebê do Guilherme Sarmiento e da Juliana, que ainda vai nascer.

I - Aviso aos navegantes: não posso falar de Conceição – Autor Bom É Autor Morto como “crítico” distante. Conceição é afetivamente um filme meu, se me permitem os cinco diretores do longa (André Sampaio, Cynthia Sims, Daniel Caetano, Guilherme Sarmiento e Samantha Ribeiro). Reafirmo aqui, portanto, minha total parcialidade, minha total adesão e entrega ao projeto e ao filme, em exibição num cinema talvez perto de você. Ou seja: quem estiver querendo “crítica imparcial” (como se tal coisa existisse) pode parar de ler por aqui.

II - O cinema brasileiro recente tem mania de perseguir os jovens. São inúmeros os filmes que buscam “dialogar” com o chamado “universo” do jovem. Querer dialogar com um universo também é pressupor não fazer parte do mesmo. De fato, é tão grande a distância entre a maior parte desses filmes e os “jovens”, que só é possível travar contato e puxar assunto por meio de walk-talkies.

Às vezes o problema juvenil migra das telas para o próprio meio cinematográfico, e o que se vê não é menos desolador: como que tomados por uma súbita maldição, jovens envelhecem da noite para o dia e velhos de bermuda e boné insistem em continuar a perseguição implacável.

Acrescente-se a tudo isso o peso da tradição. O cinema brasileiro é profundamente tradicional. Mais do que isso, ele acredita na tradição, e a aceita de bom grado. Ou melhor, preza o fato de se julgar pertencente a uma tradição enraizada no espírito nacional. Ora, todos sabem que entre a juventude e a tradição existem (ou deveriam existir) sérios conflitos. Pois a maior parte dos filmes sobre jovens, para não terem as palmas das mãos inchadas e os joelhos em carne viva, respeita rigorosamente a tradição.

III - Em Conceição, um justiceiro (Jards Macalé) persegue com um enorme facão um personagem anônimo (Augusto Madeira), fruto da imaginação de um dos jovens cineastas que bebem cerveja numa roda de botequim, discutindo idéias para possíveis filmes. A rigor, o justiceiro também faz parte do imaginário desse jovem, já que todo fugitivo requer um caçador. Porém, Macalé é um personagem incontrolável: com seu facão, abre caminho por entre matas e cemitérios, quando não se torna a própria câmera deslizante no encalço da sua vítima. O jovem cineasta que o “criou” nem sequer se apercebe disso.

Voltarei ao personagem de Macalé mais tarde. Antes, vale a pena determo-nos um pouco mais no grupo desses jovens cineastas, para sobre eles dizer duas coisas.

A primeira delas é que, apesar de pensarem o tempo inteiro em cinema e claramente pertencerem à classe média, não são jovens problemáticos. Melhor dizendo: o filme não se interessa pelos inúmeros complexos que cada um deles certamente tem. O que isso significa? Que Conceição felizmente não procura psicologizar nenhum personagem, nem mesmo os “personagens-autores”. Conseqüência natural do fato de que Conceição também pertence a uma tradição, qual seja, a do cinema físico, epidérmico, de ação. Eu sei que a maior parte de nós ligados à atividade cinematográfica esquecemos ou nem sabemos o que vem a ser tal cinema, mas houve um tempo (e por isso falo em tradição) que ele estava presente tanto em Rogério Sganzerla e Ozualdo Candeias quanto em Luiz Gonzaga dos Santos e Oswaldo de Oliveira.

Ao esquecermos esse tipo de cinema, igualmente nos afastamos de uma certa vitalidade cinematográfica nascida do prazer de enxergar o mundo através do cinema. Eis porque Conceição é um filme realmente maravilhoso: pertence a essa antiga, fantástica e, nos dias atuais, raríssima linhagem dos filmes que dão prazer.

A segunda coisa que se deve dizer sobre esses jovens cineastas biriteiros e criativos é que todos eles são muito sinceros. Com isso (é bom explicar novamente para bonequinhos e afins) quero dizer que são filmados de forma sincera. Lembro-me de que, no processo de finalização, um dos diretores de Conceição, André Sampaio, defendia a idéia de que os personagens da roda de botequim (um dos quais é encarnado pelo próprio André) deveriam ter as vozes originais substituídas por dubladores profissionais de tevê. Dá para imaginar o quanto uma solução como essa enriqueceria e tornaria ainda mais sincera a caracterização dos personagens. Mas a solução final – manter as vozes de seus respectivos atores – acabou tendo a vantagem de garantir a unidade e a espontaneidade documental da encenação: entre os diretores que também atuam (Sampaio, Samantha Ribeiro, Guilherme Sarmiento) e os demais atores e não-atores que completam a roda (Fernan Donan Tunes, Djin Sganzerla, Luis Eduardo Amaral, Márcio Menezes, Leo Dabreu e Renata Reis) cria-se um diálogo de fascinante intimidade. Quem acompanha a Contracampo e conhece as crônicas de Daniel Caetano, que com Cynthia Sims é o único diretor de Conceição a não aparecer nessas seqüências, saberá identificar, nelas, muito do seu estilo.

Eis aí o que ocorre com Conceição, e esta é uma de suas principais qualidades: a sinceridade. A relação viva entre os personagens nasce do próprio cinema, ou melhor, do talento que os diretores têm de criar cinematograficamente. Libertos do compromisso de serem “profundos” (isto é, de aparentarem aquela profundidade que, segundo Nelson Rodrigues, só vai até as canelas de uma formiga), os cineastas-personagens-autores reinventam-se na tela. É total perda de tempo querer enxergar ali, nas conversas que se desenrolam na mesa do bar, uma tentativa de “auto-reflexividade”: generosamente, o filme nos convida a também reinventarmo-nos como espectadores, a também libertarmo-nos de nossa profundidade, e faz isso através da via mais inteligente, isto é, do humor.

IV – Humor, aliás, é o que não falta em Conceição. Como isso hoje em dia é um artigo raro no cinema brasileiro, apesar das diversas comédias voluntárias ou não exibidas por aí, é compreensível que uma parte da crítica estranhe uma obra que não pretende promover-se como “filme sério”. E o que realmente confunde e talvez inquiete tal crítica é que o humor de Conceição não tem sua raiz apenas na comédia rasgada, mas assenta-se também no seu lado mais sutil. Além das inúmeras piadas que se sucedem no roteiro, nos diálogos e nas ótimas gags visuais, o filme apresenta um humor dos mais difíceis de se conseguir: aquele que está presente na montagem, no corte/colagem de imagens que rimam ou se chocam, na mise-en-scène, na escolha dos tipos, dos atores e dos objetos de cena, na mixagem e na edição de som.

Episódios como o da enfermeira/açougueira e seu amante gringo, ou como o da aula de uma professora sobre o Dia do Trabalho, marcam bem os dois pólos do humor de Conceição.

No primeiro caso, o que interessa é o escracho, o flerte com o filme de terror de décima categoria. Todos os recursos são válidos para se criar um clima gore, e é por isso que predomina a auto-ironia. No conjunto do filme, trata-se de um dos episódios que mais agrada o público, não tanto por sua deliberada bizarrice, mas sobretudo por ousar experimentar onde bem poucos se aventuram: nos diálogos e no tratamento sonoro das vozes.

No segundo caso, o humor é intrínseco à escolha de uma linguagem aparentemente bem-comportada, à maneira clássico-narrativa aplicada a uma ação que se passa em uma escola pública quase em ruínas. Só ao longo da seqüência é que percebemos que tudo, na verdade, está por um fio: tal como a escola, a própria construção dramática parece estar constantemente ameaçada de desabamento. É justamente aí que reside o tom do episódio, isto é, nesta tensão entre a ironia demolidora e a compaixão construtiva.

A propósito de Conceição muito já se falou – para o bem e para o mal – de sua estrutura irregular e de sua antropofágica voracidade referencial. Considerações como essas no fundo escondem a necessidade de afirmar, paternalisticamente, que se trata de um filme de estudantes. Assim, para esse tipo de expectativa, seria apenas natural que se constatasse a proliferação de citações, jogos e trocadilhos visuais, sendo o resultado disso tudo uma geléia geral mais ou menos aceitável. Quem quiser se prender a isso, que se prenda. Sigo achando muito mais interessante embarcar na multiplicidade de estilos que, de seqüência para seqüência, Conceição oferece aos olhos e aos ouvidos. Trata-se de uma outra lógica: o que importa não é o manual de roteiro contendo a soma milionária de todos os acertos, mas simplesmente o coração.

V – E se falamos de humor, também é necessário falar do lado mais sombrio de Conceição, que ele também existe, e em proporções quase tão grandes quanto a comédia. No fundo, no fundo, Conceição fala mesmo é sobre o fim do mundo. Dificilmente saberei aqui explicar essa minha afirmação, porque ela é de ordem intuitiva. Trata-se de uma sensação, e ela só existe porque Conceição é um filme construído a partir da lógica da poesia. E já que falamos em referências e citações, valeria dizer que a minha sensação de fim-de-mundo tem raízes em filmes como Orgia, ou o Homem Que Deu Cria (João Silvério Trevisan, 1970), Os Monstros de Babaloo (Eliseu Visconti, 1970), Bang-Bang (Andrea Tonacci, 1970), Perdidos e Malditos (Geraldo Veloso, 1970) e Sem Essa, Aranha (Rogério Sganzerla, 1970). A mim parece que todos esses filmes, assim como Conceição, de uma forma ou de outra falam do fim do mundo.

Um exemplo: o tempo suspenso. Um bandido pé-de-chinelo olha para o céu apontando a arma; corta para o vôo dos urubus que pousam em um cemitério. Não é a sugestão de violência (a arma) ou o cenário escolhido (o cemitério) que eventualmente impressiona. O que inquieta e cria angústia nessa junção de planos é a duração de cada um deles.

Outro exemplo: a fantasmagoria do cotidiano. Uma velha miserável pede comida a uma menina aficcionada por escopetas. Entre as duas, há a cumplicidade dos mortos-vivos. No apartamento cercado pelo som de tiroteios, essas duas criaturas transitam como espíritos. O espaço transfigura-se, reconfigura-se a cada escolha de enquadramento.

Eis porque é possível afirmar que Conceição é também um filme de terror. Não porque eventualmente espirra sangue na lente da câmera, mas porque quase tudo o que os cinco diretores filmam parece ter um ar sobrenatural. E talvez seja mesmo isso que o cinema deveria se propor a ser: um olhar além. Um dos diretores-roteiristas do filme, Guilherme Sarmiento, que estudou e estuda a fantasmagoria brasileira no século XIX, certamente teve, nesse processo, alguma decisiva participação, assim como André Sampaio, cineasta que começou no curta-metragem incorporando Noel Rosa e Wilson Batista nos não-atores do já clássico Polêmica, que não por acaso começa com uma voz over perguntando se “não seria o cinema paranormal a salvação do cinema nacional”.

Há muito de sobrenatural na roda da mesa de bar, e não é à tôa que os personagens criados pelos “autores” acabam baixando no local. Há o sobrenatural na escolha das locações e sobretudo na maneira como as mesmas são filmadas. Sobrenaturais são o steady-cam de Fabrício Tadeu e a inventiva sonora de Luís Eduardo Gomes, o requisitadíssimo “Bum”. Sem falar na especial participação do Papa e da população da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, nas fabulosas seqüências de ação e fanatismo.

VI - Seria talvez mais preciso falar não propriamente em “terror”, mas sim em um certo romantismo que predomina na construção dos personagens e das situações, todas elas atravessadas pelo experimentalismo de um tempo interno que deságua no concreto das ações e dos objetos. Há uma conjunção, melhor dizendo, uma comunhão entre a nostalgia de uma natureza anterior (não saberia dizer se cinematográfica ou não) e a vivência de um momento político e social de extrema melancolia. Talvez por isso, Conceição se apresente no meio termo entre a ironia desencantada e a paixão revolucionária. São esses dois pólos, absolutamente postos em escanteio pela tal “contemporaneidade”, que pressionam e geram o fluxo poético romântico de Conceição. E é então que se torna mais clara a tensão entre o grupo dos jovens cineastas e um dos personagens criados por eles, o único que se rebela e que imprime, no filme, a sua marca definitiva: o justiceiro – ou caçador – interpretado por Macalé.

Esse personagem é um pouco a síntese das influências cinematográficas consciente ou inconscientemente absorvidas e expelidas pelos diretores de Conceição. Entre a chanchada e o spaghetti-western, lá pelas tantas Macalé canta a música de O Amuleto de Ogum (Nelson Pereira dos Santos, 1974), na qual ele vai, mata, morre e volta pra curtir, reproduzindo, na própria letra, a característica “sobrenatural” a que já me referi antes. As seqüências em que Macalé transita pelo cemitério reiteram a atração pela morte como renovação, ou como ciclo.

O banho de sangue final, que justifica o subtítulo de Conceição, é o resultado de um duelo entre duas sensibilidades (ou entre dois imaginários) postos em enfrentamento pelos cinco diretores. A matança promove a vitória de um imaginário claramente atrelado à paixão revolucionária, que só é possível respirar se estiver livre da carcaça de uma juventude senil. O grupo dos personagens-autores, que detêm o micro-poder da mesa de bar, passa dessa para melhor, e só então podemos ver e ouvir plenamente os depoimentos das pessoas comuns (até então apresentados pelo filme em voz off e imagens estáticas). Macalé promove a liberação do imaginário, que, tal como uma entidade multicriativa, invade extras, figurantes e a platéia informal que assiste às filmagens, num carnaval que celebra a alegria e que, na cinematografia brasileira, estará ao lado de Aventuras Amorosas de Um Padeiro (Waldir Onofre, 1975), um dos filmes a que Conceição, voluntariamente ou não, acaba fazendo uma bela homenagem. Estaria aí indicado um caminho? Talvez o único autor recolhido ainda vivo pela ambulância do crítico João Luiz Vieira sobreviva para confirmar a hipótese. Matéria para futuros acadêmicos.

VII – Conceição – Autor Bom É Autor Morto traça, assim, um dos principais retratos autocríticos de uma juventude destinada a enfrentar o imenso deserto que é fazer cinema no Brasil. O que vemos no filme não é autocompaixão, autocomiseração ou cinismo. Há ali um testemunho geracional, e o filme resolve extraordinariamente bem o desafio de falar, com liberdade e talento, sobre a tensão entre a tradição e a transformação, entre o compromisso e o desencanto, entre a loucura e a desistência. Falar dessa maneira sem abrir mão do humor é um risco. Mas é exatamente por isso que Conceição conquista a quem o assiste.

VIII – Vida longa a Conceição!


Luiz Alberto Rocha Melo
Rio, 03/08/2007

 

 




Conceição, um desses raros filmes que dão prazer