PROFISSÃO: REPÓRTER
Michelangelo Antonioni, The Passenger, Itália/França/Espanha, 1975

Nos comentários de Jack Nicholson presentes nesta edição do DVD de Profissão: Repórter, a respeito da penúltima cena do filme, que dá conta da morte de seu personagem num longo e inacreditável plano-seqüência em movimento, o ator comenta que perguntou a Antonioni o porquê desta sua escolha – que obrigara a produção a construir do zero um hotel inteiro no meio do deserto espanhol, para possibilitar a saída insuspeita da câmera através das grades de um dos quartos, um hotel que “se partia em dois”, como diz o próprio Nicholson, entregando o truque –, e contra toda a justificativa retórica e estética que se pudesse esperar, Antonioni responde simplesmente: I just didn’t wanna film the death scene. “Eu só não queria filmar a cena da morte”. Um dos mais famosos planos-seqüência da história do cinema foi produzido, paradoxalmente, pela vontade de não ver.

Antonioni tinha sido um diretor que, até ali, ou um pouco antes, até o começo de sua carreira fora do cinema italiano, assumira o ofício do cineasta justamente como o trabalho imperativo da visão. Suas imagens precisavam ser pontos de atração centrípeta, para as quais tudo convergia, justamente para que estas coisas pertencentes ao mundo pudessem, pela simples organização diante de um dispositivo imitador do olhar (como é uma câmera), pertencer agora também ao cinema. Retirados de sua auto-regulação natural e então atraídos por este terceiro ator dos dramas cotidianos, homens e mulheres não mais dividiam entre si seus dissabores, decepções e parcas alegrias, mas incorporavam neste jogo um horizonte, um fora-de-tela para o qual sempre podiam se desviar, uma nova fonte de ressonância dessas emoções, que não era presença física, mas que se sentia como tal.

Pensemos numa construção recorrente em O Eclipse, A Noite ou A Aventura: no clímax de uma discussão entre um casal, ou mesmo na jornada solitária de um deles, haverá sempre o momento em que um personagem se colocará no primeiro plano da imagem, relegando ao fundo desfocado tudo aquilo que, naquele instante, o repele, e, em silêncio, deixará seu olhar se perder na vastidão do que está para além dos limites do quadro. O Antonioni que vai até O Deserto Vermelho é justamente este que encontra os olhares perdidos, que os reúne: o que consegue dizer a estes personagens desolados que existe ali alguém disposto a fazer ecoar esta desolação, tirá-la do tédio burguês e instalá-la no limite das dores da existência, e para isso precisa que eles se disponham às investidas deste olhar objetivo, exterior, que sempre os encontrará, não importa se isolados numa ilha ou perdidos numa mansão em festa. Ver, aqui, significa dar sentido ao existir, significa oferecer algum ponto de extravaso ali onde tudo parecia rumar para a introspecção muda e fatal. O preço disso é o oposto, acúmulo e convergência: ainda que se tenha aberto um fora-de-tela para o qual olhar, é preciso que se faça isso de dentro da imagem; ainda que se tenha permitido viver de maneira íntegra a angústia do não-saber, é preciso se deixar filmar durante a dúvida. Se o espírito tenta se redefinir, tenta descobrir quem agora é, o corpo, este que não muda, servirá sempre ao desejo de observação do cineasta.

David Locke, protagonista de Profissão: Repórter, seria, assim, a manifestação suprema deste circuito criado por Antonioni. Temos um jornalista de televisão que vive da realização de documentários sobre temas políticos de sua época (portanto, alguém que também exerce esse trabalho imperativo da visão), mas que, em algum momento da vida, decide embarcar na fantasia do duplo, se fazendo passar por um sujeito que conheceu casualmente e que morre de maneira repentina. Um personagem que são dois, um corpo que muda de roupa e assim também muda de personalidade, um outro espírito, um outro ponto-de-vista flutuante tentando se equilibrar com aquele que ali já habitava, e assim se repetiria aquele mesmo acordo tácito entre câmera e personagem já visto nos filmes anteriores, não fosse o fato de que aqui acontece uma cisão fundamental entre estes dois. Ela certamente começa no próprio David Locke, que não encara nunca a dupla personalidade como motivo de confusão mental. A identidade não é uma questão: Locke se torna Robertson, abandona o eu anterior e se dedica ao novo – e mais que isso, uma vez que também não consegue criar qualquer relação com esta segunda identidade, Locke é verdadeiramente uma subjetividade sem sujeito, uma fonte humana de emoções e ações que, no entanto, parece estar descolada de qualquer meio material e histórico através do qual se manifestar, como se prescindisse de caráter, de passado, de definição, e apenas estivesse ali usando o corpo de Jack Nicholson, e chamando-se eventualmente “Locke” ou “Robertson”, muito mais para orientar aqueles com quem convive do que necessariamente para dar conta de sua própria existência. Não haveria, portanto, maneira de estabelecer com este não-personagem a mesma relação centrípeta de antes, não haveria como exigir dele a mesma disponibilidade aos desejos investigativos da câmera, uma vez que qualquer relação identitária se desfaz diante de alguém que não nos pode garantir identidade nenhuma. O que faria, então, Antonioni, se a objetividade de seu olhar aparece em xeque, desafiada pela dimensão fugidia de tudo aquilo que se coloca à frente de sua câmera?

Voltemos a Blow-up, de 1966, ali onde Antonioni filmou pela primeira vez fora da Itália, começo de uma quadrilogia involuntária formada ainda por Zabriskie Point, o documentário Chung Kuo – China e nosso Profissão: Repórter, todos eles “filmes estrangeiros”. O fotógrafo de Blow-up encarna um amontoado de clichês do sujeito-produtor-de-imagens, começa disfarçando-se de operário para fazer uma série de fotos proto-políticas de denúncia social no interior de uma fábrica inglesa, sem disfarçar o interesse claramente mercadológico desta investida, depois se impõe arrogantemente sobre um grupo de modelos posando para uma revista de moda, consciente de que é ele quem consegue perceber ali a possibilidade da arte onde elas e nós só vemos roupas estranhas em mulheres muito magras. Essa soberania sobre aquilo que registra com sua câmera chega ao máximo na descoberta do casal de amantes se encontrando secretamente num parque, e na futura interpelação da mulher fotografada, quando Thomas responde que a ele foi dado o direito, por esta operação simples de estar num lugar com uma câmera e perceber uma situação de interesse, de capturar este instante de privacidade e torná-lo público. Ora, contra todo este aparente controle que o fotógrafo exerce sobre o mundo de coisas que se colocam à sua frente e que ele transforma em imagem, Antonioni o desafiará com a intromissão de um elemento decisivo dentro desta imagem supostamente controlada e que, no entanto, escapou completamente do controle de seu produtor. Numa foto ampliada e recortada inúmeras vezes, ali onde se via apenas um arbusto, Thomas encontrará o corpo de um homem morto, um corpo que esteve sempre ali, mas que seu olhar imediato fora incapaz de perceber.

Impossível não pensar na trajetória deste fotógrafo como um rearranjo ideológico do próprio Antonioni. Em algum momento de sua obra, aquilo que se acreditava como a capacidade de desvendar as implicações mais íntimas de personagens em conflito estava se tornando, cada vez mais, o estudo das evidências, de uma intimidade trazida à superfície, tornada artefato de exibição, com aquele olhar imperativo de antes sendo destituído de um “trabalho” propriamente dito, e funcionando mais como exercício de afirmação deste poder sobre a imagem (a seqüência final de O Eclipse, abandonando a presença física dos protagonistas e investindo no lastro imaterial que eles deixaram pelos ambientes por onde passaram é o maior anúncio dessa supremacia de quem produz uma imagem de alguém, um controle de tal maneira alardeado que pode até mesmo prescindir deste alguém, e ainda assim afirmar algo sobre ele). Blow-up é um ataque a essa imagem-totem, a essa consideração absoluta daquilo que está no primeiro plano, um apelo para que se enxergue ali alguma perspectiva interna, abandonando a investigação dos corpos e dos espíritos em nome de algo que esteja para além deles (a metonímia dos sentimentos, uma angústia particular que vira a angústia de uma geração, de uma época), e que passe a se importar com aquilo que está no interior da própria imagem, mas que a visão superior e distanciada não nos permitiu enxergar.

É por isso que, em Profissão: Repórter, Antonioni já não mais pode oferecer a seus personagens a possibilidade do fora-de-tela. Blow-up criou a separação entre o registro de uma imagem e a completa insurreição dela enquanto universo particular que, momentaneamente, se deixa capturar por uma câmera. O que nasce ali é uma distinção entre filme e cinema, entre o recorte de um momento específico do fluxo daquele mundo ficcional e a existência continuada deste, independente de qualquer olhar exterior. Antonioni se assume, finalmente, enquanto ponto-de-vista igualmente subjetivo, e quebra a dinâmica entre o olhar perdido de seus personagens e sua obrigação de encontrá-los. Cada pedaço de vida desses funciona por uma lógica própria, e o trabalho da visão já não está condicionado à produção de um sentido: paga tributo exclusivamente à sua própria condição de parcialidade, à investigação de sua própria intimidade, de sua natureza observacional. Ver, agora, significa questionar a existência deste olhar.

O equivalente daquela construção típica dos primeiros filmes se encontra no plano em que Locke concretiza a mudança de identidade. Temos novamente dois atores em cena, no momento crítico de sua relação, ambos novamente com os olhares perdidos, mas aqui não há horizonte fora do quadro. A investigação é interior, e qualquer ressonância só poderá ser encontrada com aquele que se dispõe ao seu lado. Robertson se perde no vazio da morte, e Locke o encara de frente, absorvendo dele não mais que um último brilho de vida, prestes a se apagar. Os rostos não se viram para a câmera, mas para si mesmos, e cabe a ela, cabe à Antonioni testemunhar o momento em que algo certamente está acontecendo, mas ao qual não teremos acesso imediato (e talvez nem mesmo a longo prazo). Tudo acontece no dentro-da-tela, e ainda assim, como o corpo que o fotógrafo de Blow-up nunca suspeitou estar ali, tanta coisa ainda há nesta imagem que nós mesmos produzimos e que, curiosamente, nunca deixará de ter algum quociente de mistério, de desconhecido.


Os olhos agora se perdem para dentro da imagem

Falando sobre Chung Kuo, Serge Daney dizia que no documentário encomendado à Antonioni pelo governo chinês nunca poderia acontecer aquilo que em Profissão: Repórter se dá quando um chefe tribal africano é entrevistado por David Locke e, diante da fragilidade das questões que o entrevistador propõe, pega a câmera e inverte sua posição, passando ele agora a filmar o jornalista que o inquiria. Ora, isso que Daney chama de “reversibilidade”, onde a câmera passaria pela mão de diferentes atores dentro de uma cena, confundindo-a, também não é possível em Profissão: Repórter. Vemos este momento através da recuperação de filmes antigos de Locke que, agora supostamente morto, sua ex-mulher e seu ex-patrão reúnem para assistir numa pequena sala de edição, um momento de filme-dentro-do-filme que Antonioni utiliza como mais uma das maneiras de trazer ao palco a discussão sobre o lugar do olhar no cinema. Esta reversão do sujeito-produtor-de-imagem, no entanto, nunca se opera no filme propriamente dito. Estamos aqui sempre diante de um único ponto-de-vista, que já não é mais o do “filme”, da “condição burguesa” ou da “estética moderna”, mas do próprio Antonioni enquanto também ator desta cena, enquanto sujeito ativo, que tem vontades e desejos, dúvidas e certezas. Um sujeito que divide com Locke sua errância pelo mundo, seu não-lugar, sua tentativa de buscar algo sem que nunca se saiba, no entanto, o quê (é assim, por exemplo, que por um longo trecho Profissão: Repórter se torna o filme policial de perseguição mais radical de todos os tempos, porque muito mais interessado nas razões que detonaram a perseguição ou nas conseqüências dela, seu interesse é a simples movimentação de corpos pela estrada, essência e, ao mesmo tempo, extrapolação das regras do gênero).

E então retornamos ao plano-seqüência da morte de Locke. Assim que chegam ao hotel, o jornalista e sua namorada-de-viagem brincam de transferir o olhar de um para outro, como se passassem uma procuração para que o outro assumisse, ainda que momentaneamente, seu trabalho de visão. Maria Schneider fica à janela do quarto, e Jack Nicholson, deitado, pergunta insistentemente: “o que você pode ver?”. Ela reporta a ele aquilo que seu olho percebe, e que está no dentro-da-tela, acontecendo em seu interior, ainda que, neste momento, encoberto pela cortina presa à janela: nós também, espectadores, precisamos confiar a visão à personagem de Maria Schneider, porque também não sabemos o que se passa do lado de fora. “Um menino e uma senhora. Eles estão discutindo sobre que caminho seguir... Um homem coçando seu ombro. Um menino atirando pedras. E poeira. Tem muita poeira aqui.”. Mais adiante, já com os dois deitados na cama, lado a lado, Locke contará a história de um homem que nasce cego e que vive assim até os 40 anos, mas que por uma operação milagrosa passa a enxergar, e substitui o deslumbre do primeiro contato visual com o mundo por uma depressão profunda, à medida que agora também vê a feiúra disto que, até ali, lhe parecia a perfeição, uma depressão que o leva ao suicídio dois anos depois.

A separação entre aquilo que sente o personagem e aquilo que sente o filme também se aplica aqui, e nunca poderíamos afirmar, não depois de toda a duração de Profissão: Repórter, que Antonioni comungasse desta mesma descrença de Locke. Primeiro, porque aquelas imagens que sabíamos antes apenas por procuração, vistas pela garota através da janela, nos serão recuperadas por Antonioni tão logo o plano-seqüência final avance na direção do pátio em que todas elas aconteciam. É como se a vida tivesse armado suas ações cotidianas aos olhos da personagem e o filme, “chegando atrasado” – mas ainda assim profundamente interessado em ver, por si mesmo, aquilo que só conhecia pelo verbo –, rebobinasse a realidade, de modo que ainda pudéssemos acompanhar o menino e a senhora discutindo, o velho se coçando, um outro garoto atirando pedras, sem que nenhuma poeira (nenhum intermediário entre nosso olho e a vida) estivesse no caminho. Esta é a beleza do mundo, isto é o que o tal cego da história primeiro enxergou, mas nosso deslumbre não pode esquecer aquilo que já sabemos existir e que o cego, no êxtase da nova experiência, nem suspeitava. A feiúra é a própria morte de Locke, mas também não caberia aqui escapar dela com um suicídio (ou no caso, forjando um fim para o filme que evitasse o momento da morte, que nos fizesse despedir de Locke quando ele ainda estivesse vivo).



Começo e fim do plano-seqüência: um corpo sem rosto, uma morte invisível

Antonioni brigou consigo mesmo, com seus filmes anteriores, para conquistar o direito de escapar, de produzir imagens agora centrífugas, dispersas, e mesmo puramente imaginadas. Foi Antonioni quem quis ver uma grande explosão em Zabriskie Point, foi ele quem quis encenar aquilo com que o personagem apenas sonhara, do mesmo modo como quis ver nos espaços vazios da seqüência final de O Eclipse as figuras ausentes de Monica Vitti e Alain Delon. Agora ele se depara com algo que não quer ver, e exerce este seu direito – ou melhor, filma esta falta de vontade. E, para isso, o plano-seqüência, tornado aqui a única maneira possível de se fugir da imagem da morte. Como havia dito Pier Paolo Pasolini em suas Observações Sobre o Plano-Seqüência, de 1967, este tipo de registro é o limite realista máximo de qualquer técnica audiovisual, porque é um investimento claramente subjetivo que pretende a reprodução do presente. Pasolini ataca o plano-seqüência como a tentativa de se alongar a vida no máximo possível, forjando uma extensão temporal que “engana” a morte ao prescindir da montagem, ao prescindir daquilo que, de acordo com o teórico, é o que dá sentido a nossa existência. “A morte realiza uma montagem fulminante da nossa vida”, e assim filmar a morte de Locke desta maneira, não filmando, não mostrando, e ao mesmo tempo a envolvendo num plano que tenta reproduzir a vida que ainda acontece, como se embalsamássemos Locke num pedaço de existência evidentemente fadada a tal “montagem fulminante” mas onde, idilicamente, temos a sensação de que tudo ainda pode ser diferente, não passar de um susto ou um engano (e é determinante que, ao longo de todo o plano, nunca vejamos o rosto de Locke, como se sua última mudança de identidade fosse a de desaparecer por trás de um corpo sem face, sem aquilo que o diferencia de todos os outros corpos), enfim, filmar a morte de Locke desta maneira é traçar um limite, que é moral acima de qualquer outra coisa. Antonioni sempre lidou com a vida, mas até O Deserto Vermelho acreditava que só era possível restituí-la no cinema através de uma agenda de trabalho que inibisse sua manifestação natural e a tornasse, portanto, dominável. Profissão: Repórter é o lado oposto da moeda. Um cinema de olhar fragmentário, às vezes contraditório, que pulsa na mesma batida daqueles a quem acompanha. Um Antonioni que trabalha exclusivamente com os tempos vivos.

Rodrigo de Oliveira

(DVD: Sony Pictures)

 













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