Nas comédias românticas com
protagonistas que já passaram da casa dos trinta, em
geral reina uma lógica de que vai ficando cada vez mais
difícil encontrar o par ideal. Rob
Reiner, em sua eternamente
simpática comédia romântica Harry & Sally, aparentemente confirma a tese,
mas sua aposta é um tanto mais enfática do que parece.
Para ele, perceber que você quer passar o resto da vida
com uma determinada pessoa não é nada fácil, sobretudo
nesse universo afetivo desencontrado que ele retrata
no final dos anos 80. Harry
e Sally, assim sendo, precisam
esperar mais de dez anos (na diegese)
e mais de uma hora e meia (na duração do filme) para
finalmente formarem um casal. O filme é de 1989, mas
essa espera nos faz lembrar de comédias sentimentais
muito mais antigas, de um tempo em que o cinema se esbaldava
com dois personagens que precisavam de toda uma coletânea
de pequenos acontecimentos até que pudessem começar
um romance. Entre um e outro “ato” de Harry & Sally, aparecem casais de velhinhos
que contam como se conheceram e se uniram, à maneira
de um documentário (vale lembrar que o primeiro longa-metragem
de Reiner, This Is Spinal Tap, era todo ele um falso documentário). Não seria nada
estranho se houvesse, ilustrando os depoimentos, imagens
de filmes de Leo McCarey. Esses amores de outros
tempos não são apenas a nostalgia de um certo cinema,
mas também a voz e o corpo de uma constatação estruturante
para o enredo: a de que cada casal tem sua história
própria, e essa história é o que há de singular no amor,
é o que diferencia um casal do outro. Que Harry e Sally vão ficar juntos,
todos já sabem desde o início, isso é óbvio. O que importa
para Rob Reiner é o trajeto que vai conduzi-los
até lá.
Embora o subtítulo brasileiro diga que eles são feitos
um para o outro, o filme começa apresentando Harry
e Sally como pessoas que não
têm nada a ver. A música “It had
to be you”
entra já nos primeiros minutos para comentar a falsa
incompatibilidade dos dois – e ela retornará nos créditos
finais, ressignificada, recuperando
sua mensagem de “opostos que se atraem”. A primeira
seqüência do filme, ambientada em 1977, com Harry
e Sally viajando de carro
de Chicago até Nova York, retoma exatamente o mesmo
duelo romântico de The Sure Thing, que Reiner fizera quatro
anos antes (passava semana sim, semana não no SBT com
o genial título de Garota
Sinal Verde). Os personagens ficam testando um ao outro,
o atrevimento de Harry afronta
o jeito careta e metódico de Sally.
A atração nasce justamente do jogo de provocações. Na
cena de reencontro no tempo “atual”, ele a vê numa livraria.
Ela, ao lado da melhor amiga, vasculha a seção de auto-ajuda,
mais especificamente na mesa onde estão expostos aqueles
livros na linha Homens São de Marte, Mulheres São de Vênus.
Hoje é especialmente interessante ver de que forma a
personagem de Meg Ryan, fresca e cheia de manias,
não conseguia esconder seu lado apaixonante nem mesmo
quando parecia se esforçar para isso (há uma frase de
Harry que incide disfarçadamente
nesse ponto: “Você devia usar saia mais vezes”, ele
aconselha). Com o passar do tempo – e lá se vão praticamente
duas décadas desde o lançamento do filme –, Sally
fica cada vez mais simpática e bonita, principalmente
se lembramos que Meg Ryan fez aquela plástica desastrosa nos lábios e que o diário
da mulher de trinta dos anos 2000 está sendo escrito
por malas como a Bridget Jones ou aquela personagem da Sarah Jessica Parker em Sex and the City. Sally certamente escreveria
um almanaque sentimental mais agradável.
Egresso do teatro, Rob Reiner
leva para Harry & Sally uma
grande atenção aos diálogos e ao entrosamento do elenco.
A formação teatral se faz sentir também num inabalável
princípio de cenicidade, uma
concentração de todos os esforços da mise en scène nos
mecanismos do drama e da transmissão de emoções. Mesmo
o fora-de-quadro é na verdade
um fora-de-cena, uma complementação
da ação dramática em quadro. Tem uma cena, por exemplo,
quase no final, em que Sally está conversando com um sujeito bastante chato na festa
de reveillon. Nitidamente desinteressada da conversa,
ela vira para o lado e “discretamente” comunica à amiga
seu desejo de ir embora da festa naquele momento. A
amiga e seu marido estavam antes fora de quadro e, no
momento em que Sally demonstrou
seu fastio em relação ao pretendente, a câmera realizou
uma leve panorâmica à esquerda convidando o casal a
participar da cena, como se este estivesse ali só esperando
seu momento de entrada (mas os atores não precisam entrar
na cena como se entra no palco, basta a
câmera os fisgar com uma simples pan).
Outro aspecto visual marcante no filme é a composição
de ambientes que volta e meia subvertem o entorno, inscrevem
os protagonistas num conto de fadas do qual não se tornaram
ainda conscientes. Boa parte das imagens em que Harry e Sally estão juntos destacam
algum tipo de vazio ao redor dos dois. Na cena do avião,
todos os acentos vizinhos estão ocupados, mas só os
dois protagonistas conversam e se mexem no plano, os
figurantes à volta bem podiam ser substituídos por bonecos
de papelão. Na cena da primeira festa de reveillon,
eles se afastam dos outros convidados na hora da virada,
ficando no canto do terraço, à frente de luzes que funcionam
como estrelas. No passeio no Central Park,
não há ninguém por perto, apenas folhas secas atapetando
o chão num cenário outonal que combina com personagens
que lutam para atingir a maturidade (o outono da vida,
por assim dizer). Em todas essas cenas, Harry
está sempre à direita, Sally
à esquerda. No plano final, é a vez deles aparecerem
dando seu depoimento “documental”, participando, junto
aos demais casais do filme, de um grande álbum de retratos.
As posições neste plano estão invertidas, Harry
à esquerda e Sally à direita,
em postura fixa que sugere a estabilização do movimento
de troca-troca instalado pela cena da viagem de carro
no começo do filme: eles ficavam se revezando no volante
(e, conseqüentemente, alternando o lado que ocupavam
no quadro), prefigurando as idas e vindas da narrativa.
O joguete de enquadramento resume a relação de Reiner com o artifício. Como bom homem de teatro, ele encara
o acréscimo de artifício (a exemplo da peruca de Billy
Crystal no início do filme
ou do split screen recorrente) não como aquilo que
viabiliza o espetáculo (por um certo ângulo, bastariam
os atores e a câmera para o filme acontecer), mas como
o conjunto de detalhes que o torna mais sedutor ao nosso
olhar.
Após rever When Harry Met Sally, bate uma imensa vontade
de resgatar esse Rob Reiner
que parecia ter a senha de acesso a um imaginário romântico
quase infalível (digo “quase” porque sempre têm uns
ranzinzas de plantão). Essa sensibilidade foi sumindo
ao longo dos seus filmes nos anos 90, pondo fim àquele
cinema de narrativa simples e personagens tão bons de
se acompanhar em suas descobertas amorosas. Um cinema
que testemunhava uma predisposição cada vez maior ao
sentimentalismo... Talvez tenha sido o refluxo das duas
décadas pregressas, severas e analíticas demais, muito
empolgadas com a idéia de desconstrução
para deixar que uma história de amor clichê como essa
de Harry e Sally
pudesse ter uma platéia tão cativa (Reiner precisou, como já dito antes, pular algumas décadas
e buscar filiação nas comédias românticas dos anos 30,
40). Em termos de Rob Reiner, eu continuo preferindo
Conta Comigo. E The Sure Thing, que
permanece um filme romântico adolescente encantador.
Mas quando Harry encontra Sally, algo definitivamente
nos faz muito bem.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(DVD:
Fox)
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