EXPRESSO PARA BORDEAUX
Jean-Pierre Melville, Un Flic, França/Itália, 1972

Apesar da importância da obra de Jean-Pierre Melville, apenas este seu último trabalho e a obra-prima O Samurai (1967) estão disponíveis no mercado brasileiro de dvd. Cineasta de características bem particulares, Melville, em especial a partir de Técnica de um Delator (1962), trabalha especificamente com brilhantes transposições do universo do film noir para o cenário europeu. Do gênero clássico, o cinema de Melville guarda os protagonistas silenciosos e taciturnos, de moral dúbia, que podem tanto ser policiais ou criminosos, mas que na maioria das vezes relativizam os limites que separam os universos da lei e do crime. As intrincadas tramas criminais dos filmes de Melville são entremeadas por longos silêncios e uma série de elipses que acabam por convergir para um interessante exercício de tempo narrativo, que pode se dilatar ou se comprimir, respectivamente, ao sabor das intenções do diretor, que sabe conduzi-las com inequívoca maestria.

Neste sentido, Expresso Para Bordeaux – que fora exibido nos cinemas com o título Dinheiro Sujo – guarda em si essas características de Melville, que as torna explícitas já nas primeiras seqüências. Estas retratam de forma bastante detalhista um roubo a um banco. Vemos um carro trafegar pelas ruas desertas de uma cidade praiana durante um dia frio de inverno. Um silêncio gélido banha toda a cena. Em seguida vemos, de forma metódica, o assalto, durante o qual um dos criminosos é ferido, e a fuga do bando comandado por Simon (Richard Crenna). Por outro lado, a esse exemplo de dilatação temporal – em especial naqueles que antecedem a ação criminosa – seguem-se momentos da também já citada compressão temporal nas cenas que retratam o dia-a-dia do detetive Coleman (Alain Delon) em sua ronda diária pela região parisiense dos Champs Elisés.

Inserido, desse modo, desde os primeiros momentos no universo temático e estético de seu autor, Expresso Para Bordeaux, apesar de suas incontestáveis qualidades, fica situado num patamar inferior na obra de Melville, em especial se comparado com O Samurai e o igualmente brilhante O Círculo Vermelho (1970). Sim, aí está a trama criminal com personagens imbuídos de uma vontade e uma ética que parecem superiores a eles e que os guiam igualmente (criminoso e policial) com espantosa frieza no cumprimento de suas missões. Temos também uma linha tênue que reflete sobre os limites das relações de amizade – Coleman e Simon são amigos – e de amor – ambos também partilham uma mesma amante, Cathy (Catherine Deneuve). Esta última também um belo exemplo das personagens femininas de Melville, e não há como negar o fato de sua obra ser carregada de franca misoginia. As mulheres em Melville são sempre pouco confiáveis e retratadas como meros “pontos de passagem” para o trajeto dos protagonistas masculinos.

Mas, uma vez que Expresso Para Bordeaux traz em si tantas das características do cinema de Melville, por que não atinge o mesmo brilho de seus antecessores citados? A resposta poderia vir primeiramente do fato de que, em alguns momentos, as coisas no filme correm um tanto apressadas demais, em especial durante o tempo final, e nesse caso as elipses por vezes parecem buracos narrativos. Outro fator primordial seria que a frieza e o cerebralismo tão comuns ao autor são aqui substituídos por momentos rocambolescos como o da ação durante a viagem no trem que dá o título do DVD. Nada que desabone em excesso esse trabalho, tornando-o um filme medíocre ou esquecível. Mas não há como negar que estamos diante de um momento menor da carreira de um mestre.

Gilberto Silva Jr.

(DVD: Classicline)

 













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