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                          Bang!
 O Eclipse é particularmente marcante em relação 
                          a uma característica presente em muitos filmes de Antonioni: 
                          a narrativa como uma espera pelo desfecho, uma jornada 
                          de fadiga dilatada justamente para que o final sobressaia 
                          em maior intensidade. O filme dá todos seus sinais de 
                          cansaço, pede pelo fim, e este por sua vez vem como, 
                          a um só tempo, justificativa e revisão de todo o resto. 
                          O Eclipse apresenta aquele tipo de desfecho 
                          arrebatador que Blow Up reprisaria 
                          em versão singela e Zabriskie Point e Profissão: Repórter fermentariam consideravelmente. O 
                          final de Zabriskie Point, pra dizer 
                          a verdade, pode ser visto como a versão psicodélica 
                          do eclipse de O Eclipse. São duas das melhores seqüências 
                          de Antonioni, duas apoteoses abstratas, cada uma correspondendo 
                          a uma fase distinta na obra do diretor. Enquanto Zabriskie Point testemunha, na continuação de Blow Up, um impulso de dissolução em terras 
                          estrangeiras (o autor se apaga – e, dialeticamente, 
                          se torna ainda mais presente – para ser o receptor das 
                          palpitações, das impregnações atmosféricas de um espaço 
                          e sua cultura), O 
                          Eclipse, salvo um ou outro momento de tédio puro, 
                          é o filme mais “acabado” da tetralogia com a Monica 
                          Vitti, mais até que o posterior 
                          Deserto Vermelho. 
                          Todo o estudo plástico e estrutural do preto-e-branco 
                          iniciado em A Aventura (ok, 
                          O Grito já 
                          era quase a mesma coisa sem a musa Vitti) 
                          parece ter ali naquela seqüência final de O 
                          Eclipse um ponto de chegada do qual Antonioni é 
                          o artífice hiper-consciente. Se há algo a reprovar nos 
                          filmes dele da primeira metade da década de 60, aliás, 
                          é o excesso de controle sobre os efeitos – em outras 
                          palavras, o auto-maneirismo 
                          de certos planos saturados de plasticidade, de mestria 
                          gráfica, quiçá de antonionices, figuras de estilo recalcadas sob um desejo de 
                          pintura e de arquitetura que tornava os filmes peças 
                          de museu precoces. Mas O Eclipse, assim como A Aventura, realmente mantém, quatro décadas depois, aquela opacidade irredutível 
                          que sempre gerou fascínio em Antonioni, e que o faz 
                          escapar às armadilhas de marcas autorais levadas a sério 
                          demais.
 
 O que nutre as narrativas dos filmes de Antonioni é 
                          uma forma filtrada de mistério, talvez um mistério em 
                          estado puro. O Eclipse, exemplarmente, não pretende chegar ao segredo que há por 
                          trás da narrativa, pois esta é o próprio desenho desse 
                          segredo. O elemento secreto não está lá como ponto de 
                          chegada, mas sim como estrutura, como planta – no sentido 
                          arquitetônico: o desenho geométrico que precede a construção. 
                          No nível plástico, isso permite que Antonioni trabalhe 
                          o plano como um espaço vazio de sentidos a priori, uma 
                          superfície na qual ele pode livremente imprimir signos, 
                          mover peças, tratar personagens como manchas de tinta. 
                          No nível narrativo, isso significa que o diretor tem 
                          um plano traçado para seus personagens, embora eles 
                          não saibam. Podemos até suspeitar que o filme opera 
                          a dissolução simultânea de todos os 
                          mapas, geográficos e mentais, que estariam em sua base. 
                          Antonioni, contudo, não desvia de certas rotas preestabelecidas: 
                          continua valendo para os personagens de O Eclipse a mesma sina de desaparição e separação de A Aventura. Quando ameaçam desenvolver 
                          relações entre eles, os personagens somem na poeira, 
                          no vento, na noite, no eclipse.
 
 A personagem de Monica Vitti 
                          em O Eclipse passeia 
                          pelo mundo munida de uma atenção redobrada; ela percebe 
                          detalhes visuais e sonoros numa quantidade acima do 
                          normal, está imantada aos movimentos e aos caracteres 
                          irrelevantes da realidade (mas irrelevantes somente 
                          de um ponto de vista não cinematográfico). O filme desvenda 
                          esses pequenos eventos escondidos entre as coisas, sem 
                          que os personagens se entreguem a situações concretas. 
                          Tudo permanece muito fluido e informe, nem mesmo uma 
                          relação amorosa consegue se concretizar, sendo apenas 
                          vivida em fragmentos – entre os personagens de Vitti e Alain Delon surge um namoro 
                          muito frágil, muito truncado. O Antonioni da era preto-e-branco 
                          vive um momento-limite: o uso do mistério como pretexto 
                          narrativo e como rede de segurança para a pesquisa formal 
                          já se torna por demais esquemático. A prova de que há 
                          uma fronteira sendo ultrapassada está no fato de que 
                          algumas partes do filme são realmente chatas, parecem 
                          feitas meio em piloto automático, soando como frias 
                          demarcações de estilo (a passagem para o colorido de 
                          Deserto Vermelho virá em boa hora). Fica faltando alguma coisa, possivelmente 
                          algum elemento forte na ficção propriamente dita, algo 
                          mais que cenas posadas e retraídas. Nas cenas na bolsa 
                          de valores essa impressão diminui, porque ali parece 
                          haver um elemento ficcional mais interessante (apesar 
                          de eu achar aquele “minuto de silêncio” feito em meio 
                          ao caos da bolsa uma ênfase desnecessária, e uma obviedade 
                          em termos tanto de efeito-cinema quanto de comentário 
                          irônico).
 
 Logo que o filme começa, Vitti 
                          abre as cortinas da casa de seu namorado, enquanto discute 
                          com ele, e a vista que surge pela janela é de um espaço 
                          estranhamente futurista e desconexo. O movimento do 
                          filme fica estabelecido como do interior para o exterior, 
                          mas sem sair da cápsula asfixiante de um universo mental 
                          confuso e paralítico. O espaço funciona como a continuação 
                          da fragilidade e da súbita desfamiliaridade 
                          em que os personagens são apanhados internamente. Os 
                          dez minutos finais irão condensar o movimento de “exteriorização” 
                          (embora nesse filme o espaço faça pouco mais do que 
                          refletir a interioridade, o que já é em si um clichê 
                          antonioniano), em tomadas externas que menos encerram do que 
                          congelam o filme. O final é quase um curta-metragem 
                          de bônus, um pequeno documentário poético sobre o dia 
                          em que a Terra parou. Há em Antonioni uma confessa influência 
                          do expressionismo abstrato, que permeia todo o filme 
                          e que nessa cena é levada ao extremo. O eclipse gera 
                          um lusco-fusco existencial, e de uma hora pra outra 
                          nenhuma presença é 100% assegurável.
 
 Nos filmes de Antonioni, mesmo o desligamento narrativo 
                          mais radical nasce de um desabrigo subjetivo, uma sensação 
                          de perda de si totalmente colada às veleidades dos protagonistas. 
                          Essa sensação, quando identificada ao olho mecânico 
                          e impessoal da câmera, rende uma profunda neutralidade, 
                          quase um olhar de vigilância, tamanha a desafecção 
                          que veicula. A tarefa desse olhar é fazer uma minuciosa 
                          decupagem de espaços neutros, 
                          exatamente como na seqüência final de O Eclipse. A figura humana é aquilo que precisa sumir da frente da 
                          câmera, as pessoas evaporam em si mesmas, desaparecem 
                          como figura e se tornam descasos da matéria, transeuntes 
                          que estão no filme por acidente, corpos fugidios, comparáveis 
                          ao líquen e aos insetos, afogados na entropia do universo. 
                          Deve sobrar apenas o espaço. Temos a impressão de que 
                          o cenário vazio ali restante pode se prolongar para 
                          além do filme randomicamente, reproduzir-se ao infinito 
                          do fora-de-quadro (como em 
                          Mondrian). O regime figurativo 
                          é deglutido por uma espécie de hecatombe abstracionista. 
                          Na última imagem do filme, aquele close no poste de 
                          luz, é como se o diretor prestasse seu tributo, através 
                          da explosão do branco, às revoluções artísticas que 
                          havia herdado. Antonioni encontra na nova sensibilidade 
                          espacial da modernidade o solo fértil ideal para seu 
                          paisagismo abstrato – por isso ninguém pode dizer que 
                          ele reprova moral ou esteticamente os tecidos urbanos 
                          modernos, nem que os enxerga com negativismo. Nesse 
                          terreno ele é mestre. Os minutos finais de O Eclipse não só fazem valer o restante 
                          do filme, como estão entre os mais violentos investimentos 
                          de energia criadora do cinema de Antonioni.
 
 
  Luiz Carlos Oliveira Jr. (DVD: 
                          Versátil)
 
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