XIFÓPAGOS E ROQUEIROS
Keith Fulton e Louis Pepe, Brothers of the head, Reino Unido, 2005

Comecemos pelo fim. No último plano de Xifópagos e Roqueiros, os irmãos Barry e Tom, depois de todo o périplo traçado ao longo do filme, de freaks enjeitados pelo pai a freaks amados pela cena punk inglesa, e já nem mesmo freaks, tendo passado obrigatoriamente por uma re-humanização, depois mesmo de suas mortes trágicas, anunciadas em cada um dos planos anteriores como a única forma possível de se terminar esse percurso, num clipe que pretende dar conta resumidamente de toda loucura e transgressão atribuídas a esses dois personagens na hora e meia decorridas, vemos em velocidade baixa a última imagem dos siameses, olhando direto para a câmera, e sua posição no quadro vai se ajustando até que tenhamos uma combinação totalmente harmônica dos dois rostos, como se fossem um só, ao mesmo tempo em que não se nega a natureza diversa dessas metades reunidas. A beleza plástica dessa imagem, sem nenhuma vergonha de denunciar-se artifício puro, sua idéia muito clara e nada metaforizada sobre a relação que os irmãos tinham entre si, a postura ameaçadora diante do mundo, o dedo-em-riste atribuído ao rock'n'roll como se fosse uma de suas prerrogativas, e ali naquele último plano Xifópagos e Roqueiros entrega suas armas, despede-se de todo acúmulo de seriedade e importância que vinha exigindo para si ao longo de todo o filme, e se diverte finalmente com a chance de ter seus protagonistas livres da agenda pesada de compromissos narrativos a que estiveram submetidos. Pena que este seja o fim, e não o começo.

Porque antes disso há a encenação de um documentário sobre os irmãos xifópagos, aquele mesmo expediente cansado de intercalar imagens da saga dos protagonistas (aqui disfarçadas de um cinediário filmado nos anos 70, no auge da banda The Bang Bang) com depoimentos dos sobreviventes daquela loucura, os “personagens da vida real”, envelhecidos em relação às imagens de época, que rememoram suas experiências já com o peso e a revisão crítica que os anos obrigam, e com direito mesmo à presença de gente famosa, como o diretor inglês Ken Russell, que teria realizado uma biografia filmada de Barry e Tom, nunca concluída. Nada em Xifópagos e Roqueiros justifica essa sua necessidade de se mostrar documentário. A vontade de atribuir à trama uma espécie de verdade fundamental, da qual o gênero estaria automaticamente investido, se ridiculariza diante do tom quase épico assumido pelos depoimentos, todos eles iluminados com aquela luz cretina dos programas-verdade da tevê, dando à essa pompa uma graça quase infantil. Pois se não era de verdades que o filme precisava ser preenchido, do que seria? Talvez uma tentativa de fabulação mais evidente, que ligasse pontos e pusesse pingos nos is, e para isso a urgência do relato. Dar um pouco de ordem ao caos, domá-lo com o verbo, e essa também se mostra uma escolha equivocada.

Xifópagos e Roqueiros sofre por ter personagens principais bons demais. Não pelo que se tenta dizer a respeito deles, o psicologismo da rejeição paterna, a submissão aos empresários pilantras e guarda-costas violentos, os conflitos armados, as situações pelas quais Keith Fulton e Louis Pepe os obrigam a passar. Toda vez que estão em cena, os jovens atores Luke e Harry Treadaway impregnam o filme de uma insanidade cheia de carinho por seus excessos, e tudo o que essa postura carrega consigo, uma carga de homoerotismo que naturaliza as sugestões incestuosas como apenas mais uma das ligações possíveis, a impossibilidade do controle pela absoluta falta de previsão com que agem os irmãos, tudo isso será negado pela narrativa sempre que um momento-problema for sufocado por um depoimento do tipo “ele era muito solitário” ou “havia muita raiva naqueles olhos”. Enquanto figuras do passado, Barry e Tom não deixam nunca de ser borrões de uma tentativa pobre de delimitação de suas histórias. Quando são atualizados, quando falam e se mostram por si mesmos, assumem esse zeliguianismo torto, e se transformam naquilo que está ao seu lado, um no outro, nos microfones, nas guitarras, no público que bate cabeça com suas músicas. Ali Xifópagos e Roqueiros consegue se libertar do peso de se filmar punk com estética gospel, ali se aproxima de seu belo último plano, porque nem conteúdo, nem cartesianismo de personagem, nem obrigação de sentido, porque ali é apenas pulso, entrega, vertigem.


Rodrigo de Oliveira