VOLVER
Pedro Almodóvar, Volver, Espanha, 2006

Em A Flor do Meu Segredo, a personagem principal, interpretada por Marisa Paredes, é uma escritora que assina com o pseudônimo de Amanda Gris e publica romances água com açúcar até que seu próprio relacionamento desmorona e ela não sabe o que fazer. O romance seguinte ganha outros contornos, fora do registro de consumo fácil em que seus outros livros eram tidos. A história: uma mãe descobre que sua filha matou o pai quando este tentava estuprá-la, e esconde o corpo do marido no freezer do restaurante abandonado ao lado de sua casa. Onze anos depois, Almodóvar pega essa história "recusada" e transforma em uma das tramas de Volver, filme cujo título poderia muito bem caber em qualquer um de seus filmes de 1995 pra cá. Pois os heróis de Almodóvar – ao menos nos últimos sete filmes – são figuras que retornam, que precisam se recuperar de mortes ou acontecimentos traumáticos que lhes diminuem a capacidade de agir. Não um cinema pós-mortem, um cinema de mortos-vivos, mas um cinema da volta à vida dos quase mortos. Um cinema da convalescença e da volta à forma. E é isso que comove nos filmes mais recentes de Almodóvar: a capacidade que o ser humano tem de superar seus entraves e voltar das suas dificuldades mais extremas.

Em Volver, como o nome já indica, tudo é função de voltar. Voltar ao mundo dos vivos, como Irene (Carmen Maura), ou dar a volta por cima, como Raimunda (Penélope Cruz), que reconstrói sua vida reabrindo o mesmo restaurante em que escondera o corpo de seu marido. Tem cineastas que fazem suas carreiras inteiras como espécies de gigolôs da depressão, encenando traumas intransponíveis. Mas Almodóvar não é desses. Um corpo de marido pode ser algo difícil de se livrar, mas ainda assim, é possível fazê-lo, e ainda assim enterrá-lo com dignidade. Além dos percursos individuais de Irene e Raimunda, temos, claro, a confraria das mulheres, que não víamos em plena potência desde Tudo Sobre Minha Mãe: mortos os homens, elas precisam se reconciliar de um passado nebuloso e cheio de mistérios, até refazerem uma partilha dos destinos e das atribuições de culpa em busca de um novo equilíbrio. Em Volver, o clima que se instala é de uma paciência e de uma serenidade impressionantes. Um clima de eterna suspensão que é cadenciado por momentos em que se chora (a canção "Volver" em particular) e momentos em que se ri, sem que uma sensação, alegria ou tristeza, venha atrapalhar outra. Os filmes de Almodóvar evoluem numa simplicidade aparente que, no fundo, é sustentada por uma arquitetura minuciosa e complexa da evolução da narrativa. Em Volver, como antes em Carne Trêmula ou Tudo Sobre Minha Mãe, a cena mais importante do ponto de vista da ação acontece logo no começo do filme, e o prolongamento do filme é visto apenas como uma lenta progressão em busca de um novo equilíbrio.

Mas Volver, de certa forma, se distancia um pouco dos moldes de feitura de suas três obras-primas em seqüência (Carne Trêmula, Tudo Sobre Minha Mãe, Fale Com Ela). O clima de melodrama se desfaz um pouco no registro do cotidiano, a comédia se insinua com mais força, a riqueza na caracterização dos personagens passa em momentos a interessar mais do que a trama propriamente dita: Paula que não desgruda do celular com seus SMS, Agustina com seus cigarros de maconha, os beijos de despedida e os "no no no" ditos pelas protagonistas ou as geniais personagens secundárias que Raimunda encontra na rua e a ajudam a colocar o restaurante funcionando. Almodóvar constrói sua arte dosando com muita astúcia um respeito aos moldes clássicos de construção narrativa (romance, teatro e cinema) com uma atenção grande ao ainda inexplorado, aos territórios ficcionais que ainda restam a ocupar (que cineasta que se assume acima de tudo como um contador de histórias, como é o caso de Almodóvar, pode comparar-se nos "argumentos originais" tão originais?). Volver sai da matriz básica da narrativa de fantasmas, passando por Henry James e Oscar Wilde, e instala uma outra reação, mais ambígua: Irene aparece como fantasma, é considerada pela narrativa como um fantasma, mas não se comporta como um fantasma, e sim como uma pessoa de carne e osso, com objetivos que são os de uma pessoa de carne e osso. Filme fantástico, comédia dramática ou drama humorístico? Como todos sabem, Almodóvar não se contenta com apenas um gênero, e é um verdadeiro mestre em mesclá-los sem tirar a harmonia do todo.

Em um determinado momento de Volver, passa na televisão Belíssima, de Luchino Visconti. Assim como em Carne Trêmula, em que passava o Ensaio de um Crime de Buñuel, a citação cinematográfica dá a chave de decifração do filme. Penélope Cruz se espelha em Anna Magnani, mesmo sem sabê-lo, na confrontação ao marido e na tentativa de criar um futuro melhor para sua filha. No percurso, a heroína italiana de 1951 e a heroína espanhola de 2006, corpulentas e exuberantes, fazendo do improviso a arte de seus sucessos, conseguem ganhar a consciência do estar-no-mundo, de tomar as rédeas de sua própria vida. Esta entrega, este clima de perdão absoluto, de um percurso da ficção que só termina quando os personagens principais podem enfim olhar para frente (ou, no caso de Irene, para os outros, para suas filhas, para Agustina) é o que encanta em Volver. Uma estética da sinceridade, que encontra seu oposto na estética da baixaria proporcionada pelo programa vespertino da irmã de Agustina, equivalente espanhol de um Casos de Família ou Márcia Goldschmidt da vida. A televisão, em Volver, ocupa o papel dos chacais, dos urubus, das figuras ávidas por sensacionalismo. É contra isso que Almodóvar arma sua estética, sua estratégia: esconder o corpo do marido, ser fantasma, incendiar a casa de dois adúlteros nada tem de escandaloso ou espetacular. O espetáculo está em como o ser humano consegue sobreviver apesar de tudo isso. E é isso que encanta a cada encontro que temos com o cinema de Pedro Almodóvar.

Ruy Gardnier

 

 





Irene...


...e Raimunda: duas formas de "voltar" (Volver)