ONDE A CORUJA DORME
Márcia Derraik e Simplício Neto, Brasil, 2006

Mais do que nas versões em curta e em média-metragem, é no longa Onde a Coruja Dorme que a idéia de um painel toma corpo. Não um painel dos compositores da periferia do Rio de Janeiro ou do samba de morro – universo com o qual lida o documentário –, mas algo talvez mais ambicioso: os diretores Márcia Derraik e Simplício Neto procuram traçar o painel de um país, ou melhor, de um determinado entendimento de país. A palavra é dada a compositores da Baixada Fluminense como Popular P, 1000tinho, Paulinho Alicate, entre outros, em grande parte desconhecidos do grande público, mas autores de alguns dos maiores sucessos gravados por Bezerra da Silva.

Onde a Coruja Dorme não é um retrato de Bezerra da Silva (no estilo "vida e obra"), muito embora o sambista ocupe um lugar privilegiado no conjunto do documentário. Também não procura ser o registro do cotidiano dos compositores em suas diversas outras profissões (bombeiro, carteiro, técnico de refrigeração etc.). O principal personagem de Onde a Coruja Dorme é a palavra, o discurso – e o seu ritmo. Letra e música, prosa e poética: o país é dito e lido pela ótica dos sambistas da Baixada Fluminense. Márcia Derraik e Simplício Neto registram essa leitura e a reelaboram num documentário de extrema fluidez e agilidade.

É Bezerra da Silva quem de certa forma dá corpo e unidade a esse discurso. Em um dado momento, um dos compositores afirma ter em casa uma enorme quantidade de músicas de amor. Nenhuma delas gravadas, pois Bezerra da Silva não canta o amor: "seria hipocrisia". A conversa é necessariamente outra.

"Você com o revólver na mão é um bicho feroz/ Sem ele anda rebolando e até muda de voz". Via Bezerra da Silva, é a ética da malandragem a base do discurso que interessa a Márcia Derraik e a Simplício Neto. Bem entendido: malandragem significa inteligência, nas palavras do próprio Bezerra. Longas seqüências do documentário dedicam-se a refletir sobre essa guerra entre malandros e otários, quase uma metáfora política do país. Através das rodas de samba, dos depoimentos e das imagens de arquivo (algumas delas fabulosas), discute-se o tráfico de drogas e de armas, os políticos picaretas e ladrões, os falsos pais-de-santo, os marginais otários e os marginais malandros, a violência generalizada da tortura policial, do racismo, da "deduragem" e de outras manifestações de falta de ética inadmissíveis para quem não vive a realidade da classe média e dos dóceis valores de solidariedade domingueira em torno da Lagoa ou da orla-Zona Sul.

A própria indústria fonográfica é acusada de explorar os anônimos compositores. Bezerra da Silva é o elo que une os dois pólos. Não por acaso, surge caminhando por uma favela e dando um depoimento com o morro em segundo plano, ou em seu escritório, cercado de discos de platina pendurados na parede. Bezerra da Silva tem livre trânsito entre os "homens de negócio" e a "malandragem" e provoca a mistura de uns com os outros, procurando reverter a situação para o lado mais fraco: acusado de fazer apologia à bandidagem, capitaliza sabiamente – malandramente – essa imagem que lhe impingem, como atestam as geniais e cinematográficas capas dos discos em que Bezerra surge como um criminoso, acuado num beco ou sendo levado para o xadrez.

De forma mais sutil, o próprio documentário, em sua inclinação antropológica, coloca-se em xeque, mais uma vez por intermédio do discurso. A gíria, forma de resistência e de afirmação, torna evidente a distância entre as classes sociais, entre os dois mundos contrapostos pelos personagens de Onde a Coruja Dorme. Os intelectuais e universitários falam uma língua ininteligível para a maior parte da população, e é dessa forma que a classe dominante exerce o seu poder; da mesma forma, o povo responde com a gíria, e se ela não consegue transformar o quadro de dominação, ao menos desequilibra a força do opositor. No filme, alguns personagens exemplificam para os entrevistadores determinadas expressões e códigos, e os explicam em seguida. O documentário assume seu "lugar".

Tendo a honestidade de se colocar distante do universo retratado e, ao mesmo tempo, não cedendo à piedade típica dos documentários que insistem em ver no "povo" um inesgotável armazém de bondade humana, a tônica de Onde a Coruja Dorme é, enfim, a simpatia. Os documentaristas são bastante simpáticos aos compositores e estes, por sua vez, estão muito à vontade diante da câmera, o que evidencia um cuidado exemplar na condução das conversas, editadas com mestria. O que chama a atenção, porém, é que aqui não percebemos a intenção de transformar o documentário numa janela a revelar, por meio dos depoimentos, uma pretensa "realidade" até então não "notada". O documentário é bastante explícito ao se assumir como recorte: o que interessa é dar voz, substância ao pensamento dos que estão sendo ali entrevistados.

Dar voz ao morro, como naquela clássica canção de Zé Kéti, é exatamente o que faz Bezerra da Silva. Com um gravador, o intérprete instrui os compositores desconhecidos a deixarem gravados os seus sambas; com o acesso que tem nas gravadoras, imortaliza essas criações que, sem essa intermediação, restariam provavelmente perdidas. São extremamente felizes as imagens em que os compositores, às vezes pouco à vontade, estão diante do gravador cantando suas composições acompanhados pelo ritmo das palmas da mão. A atitude que Márcia Derraik e Simplício Neto têm para com Bezerra da Silva parece ser conduzida pela admiração provocada por uma comunhão de propósitos: o grande sambista é antes de mais nada um grande documentarista.

Do nacional-popular ao musical-popular, Márcia Derraik e Simplício Neto sintonizam-se com uma particular sensibilidade contemporânea, isto é, ritmo e letra. Onde a Coruja Dorme pode ser visto como uma homenagem ao "cinema brasileiro possível", aquele que se encontra não propriamente nas imagens, mas sobretudo na música.


Luís Alberto Rocha Melo