O AMIGO DA FAMÍLIA
Paolo Sorrentino, L'amico di famiglia, Itália, 2006

Como fazer um filme cujo protagonista é um agiota? Esse parece ser o desafio mais interessante de O Amigo da Família, filme estranho, díspar, irregular, com alguns arroubos de inteligência mas no geral muito fraco (o que não impede que alguns momentos ele seja fascinante). Este terceiro longa-metragem de Paolo Sorrentino (depois de L'uomo in più e As Conseqüências do Amor) é uma verdadeira colcha de retalhos, misto entre a tradicional comédia italiana e o próprio delírio dela, entre o desejo de artesão e o de demiurgo, entre o banal e o sublime. Certos planos e climas podem inclusive nos remeter a belos filmes dos últimos anos (Não se Mova de Sergio Castellitto, os filmes de João César Monteiro ou David Lynch), para em seguida os planos seguintes nos denotarem a insuficiência artística do diretor. Nessa confusão toda existe espaço para uma liberdade do espectador, o espaço para um gosto, um prazer? Um pouco.

A graça de O Amigo da Família, mesmo que mínima, reside na forma como Sorrentino filma seu protagonista. Além de agiota, Geremia é velho, sujo, usurário, corcunda, grotesco e mais alguns aspectos que o tornam repugnante como um todo. Apesar disso, e aí está o resíduo de poder da ficção que sustenta o interesse do filme, a câmera insiste sobre ele, a narração pede que passemos a investir um outro olhar sobre ele, que consideremos pelo menos por algum momento que essa figura absolutamente desinteressante tenha de fato algum motivo para receber uma consideração mais generosa. E isso acaba instalando O Amigo da Família num regime de dissonância de identificação que tem um gosto distinto, incomum no cinema. Ao mostrar como esse personagem bizarro e interesseiro (ou seja, alguém que não merece identificação ficcional) é ao mesmo tempo alguém solitário, já que todo mundo só desenvolve relações com ele na base da troca, o filme acaba instalando o espectador num lugar interessante, em que ele não tem as regras do jogo para seguir e precisa consatruir sozinho seu próprio caminho.

Ao mesmo tempo, fica claro que tudo que o filme faz com isso não é suficiente. Na confusão de reunir o mundo real e o imaginário do personagem, de estabelecer uma narrativa que vai de episódio em episódio sem uma âncora precisa que os una, o filme acaba se fragmentando demais e perde rapidamente um maior interesse. A escolha de Sorrentino por filmar tudo de maneira meio estranha, entre bizarro-Coen e virtuoso-De Palma, às vezes ganha bons trunfos (como o belo plano das pernas que se abrem por trás do corpo de Geremia, ou a breve seqüência da menina dormindo de seios nus na árvore), mas em geral é de uma irregularidade e de uma falta de coesão que fazem a feiúra saltar aos olhos. Experiência limitada e interessante, O Amigo da Família ao menos revela uma grande distância do rame-rame de comédias sentimentais para pessoas de bom coração que infesta o circuito exibidor brasileiro. Já é alguma coisa.

Ruy Gardnier