GAROTINHO BOBO
Lionel Baier, Garçon stupide, Suíça/França, 2006

Pois além de bobo o garotinho também é burro. Não sabe quem foi Hitler, chama Renoir de Lenoir, porque também não sabe o que é impressionismo, ouviu a palavra "blasfêmia" e, sem saber o que significava, começou a repeti-la fora de contexto. Fred precisa ser educado, e isso sabemos desde o começo. Do banco carona de um carro, o rapaz começa a desfiar seu rosário pouco articulado em defesa das relações rápidas e sem envolvimento, fala do número de parceiros com quem já transou, em como os caça pela internet ou em bares por aí, sempre certo de que não haverá uma segunda noite com nenhum deles. Pois além de bobo e burro, nosso garotinho também não sabe amar, e no projeto educativo de Lionel Baier a primeira tarefa é despertar algum sentimento que não a frieza nesse coração. Naquele mesmo carro da primeira seqüência, sentado no banco do motorista, estava um sujeito que nunca veremos, pois sempre representado através de uma câmera que filma em ponto-de-vista. Ouvimos a voz, acompanhamos várias conversas dessa nova amizade, vemos a reação de Fred à suas palavras, mas o rosto permanece incógnito. O nome desse sujeito, personagem de Garotinho Bobo, é também Lionel, e quando dizíamos "projeto educativo" não havia nenhum exagero nisso.

Estamos já acostumados ao modo como Garotinho Bobo irá se apresentar, o vídeo digital sempre cercando personagens e situações com uma volúpia estranha, jump-cuts como profissão de fé da montagem, a associação automática entre a sujeira e a mobilidade da imagem com a idéia de um documentário. Que Lionel Baier assuma a assinatura desse olho de maneira tão direta, não só incluindo-se no universo ficcional do filme, mas também guardando para si o papel de real transformador da vida do protagonista, faz pensar numa certa disposição autoral que transcenda a organização de uma encenação, que já não se contenta apenas com esse serviço, por uma necessidade quase instintiva de tomar parte dela, e aí deixar de ser apenas organizador, virar também objeto da encenação, arriscando-se à se influenciar como criatura naquilo que é sua própria criação. Esse reposicionamento de Baier, ao contrário de garantir espaço para que Garotinho Bobo se relacione com seus personagens e temas de maneira mais livre, acaba instalando no interior dele uma sensação de controle próxima do insuportável, porque o diretor nunca consegue realmente colocar-se como personagem. Quando seu ponto-de-vista aparece na tela, sua voz não deixa nunca de soar como a de uma instância superior a instruir um rebanho.

Acabamos por assistir Fred numa bateria de testes e exercícios que terão certamente a conquista da capacidade de amar como meta. No caminho a idéia de ascensão ao paraíso não será negada, pelo contrário. Se essa trajetória simples, um tanto surrada mas ainda assim passível de algum interesse, encontra nesse garotinho bobo um desafio (é alguém que conta para a melhor amiga, feliz da vida, que ganhou 300 francos na noite anterior transando com um homem de 85 anos), nada em Fred justificava a radicalidade da experiência a que Lionel Baier o submete. Filho de um cinema que urge pelo acontecimento, necessariamente trágico, incapaz que é de admitir a condução de uma narrativa que de fato se desenvolva, sem que nenhum tratamento de choque precisa tirá-la sempre do chão, Garotinho Bobo vai eventualmente matar uma personagem importante, suicida sem motivo aparente e com alguma culpa atribuída ao próprio protagonista, ele mesmo só definitivamente transformado e entrado no time dos que amam depois de sofrer um acidente de carro e ir parar no hospital. Nenhum problema nessa vontade doutrinária de Baier. Mas o que o espectador que não quer tomar lições de vida de um filme tem a ver com isso?


Rodrigo de Oliveira